O CASAL
A
sociedade que formam a mãe e a criança é primeira em importância, e modelo de
todas, como se explicará. De qualquer modo, o casal é primeiro no tempo. Eu
escolhi tratar primeiro o casal humano, estando bem entendido que o casal, como
sociedade, só chega à sua perfeição pelo exemplo e a reacção do sentimento
maternal. O amor, pela sua natureza, é antes anárquico e perturbador. Cada um vê bem que ele rompe uma família e separa
dela um ramo. Basta notar que o amor, na sua primeira glória e na sua admirável
suficiência, repele a própria ideia dum dever como indigna de si, procurando
pelo contrário o livre consentimento, sempre desfeito, sempre renovado pelos
jogos imemoriais da coquetaria. Ser escolhido a cada instante, e livremente
escolhido, recusar poder e tudo poder, tal é a ideia inebriante que está na
origem das maiores felicidades e das maiores desgraças nesta vida difícil. É
verdade que o juramento é natural nas primeiras horas do amor; mas é também
natural que se despreze o juramento, que dele se liberte o outro, e que enfim
se tente temerariamente esse poder que não se quer exigir. Um tal sentimento,
deixado a ele mesmo, envelhece mal. Para além do que a ocasião e o humor
conduzem muitas vezes a provocar ofensas que nem sempre se podem perdoar, as
forças biológicas não cessam de nos levar duma idade a outra, e intimam-nos
demasiado tarde a passar do amor à mais bela amizade. Se se quiser ver, numa
comovente pintura, como acabam os amores que se retiram do mundo humano para
viver da sua própria substância, é preciso ler as Memórias de dois jovens
casados de Balzac; aí se encontrará, em comparação com a trágica
aventura de Louise de Chaulieu, em que o romanesco perece pelos seus próprios
decretos, o sábio casamento de Renée de Maucombe, casamento de razão vivificado pelas crianças, exposto em todas
as partes pela ordem social que primeiro o consagrou. É dizer que a sabedoria
dos pais, orientada desde o princípio para o destino das crianças e a
transmissão dos bens, exige um juramento irrevogável, que o amor pode de facto
desprezar, mas que não pode recusar sem injúria. Tudo se acorda portanto para
que a sociedade real transforme o par amoroso numa sociedade à sua imagem, que
tem o seu governo, as suas leis e os seus usos. Donde o problema do direito dos
esposos.
O
amor, como se compreendeu, é profundamente estranho à ideia do direito. É
preciso mesmo dizer que a relação de duas liberdades, que é a relação de pessoa
a pessoa, é sempre profundamente perturbada, para não dizer ofendida, pelos
contratos públicos que a sociedade impõe. É preciso compreender aqui que o
direito não nasceu da dignidade das pessoas, mas antes do valor das coisas e
das regras da troca. É daí que ele remonta às pessoas, como é natural; porque a
necessidade das trocas não é de ordem mais elevada do que necessidade nua,
mas é em contrapartida demasiado
premente, e não consente que se a esqueça. Aqui ainda a lei biológica se
mostra, e imediatamente regula as funções superiores, porque é preciso
primeiramente viver, como se diz. E foi certamente a preocupação urgente em
proteger os mercados que levou a proteger também os mercadores. Do mesmo modo,
como se notou diversas vezes, é uma preocupação em regular o crescimento das
fortunas, a sua transmissão, o alcance dos compromissos, o apoio do crédito, os
direitos dos terceiros, enfim, que rege em primeiro lugar os nossos casamentos.
E isso é natural e chocante ao mesmo tempo, como é natural e chocante ao mesmo
tempo que os preços e as trocas não sejam fixados segundo a amizade. Aqui se mostra
a ordem, que age sempre de baixo para cima, conduzindo-nos sempre dos nossos
mais sublimes pensamentos à necessidade de obedecer. Como essa ideia nunca
agrada, e porque demasiadas vezes se
procura a principal causa nalguma usurpação do semelhante, não é mau descer
agora até às raízes. Nós não paramos de obedecer; por exemplo, à gravidade é
preciso obedecer; à fome, à sede, ao sono, é preciso obedecer. Uma pedra quer
obediência. A necessidade natural passa, e esmagar-nos-ia; mas muito antes de
nos esmagar, ela agarra-nos pela dor, eloquente lembrança, e muito brutal. O
inferior carrega o superior, como Comte continuamente recorda. É preciso obedecer
ao mar. O grande mecanismo das coisas é como um mar que nos leva; e não serve
de nada lamentarmo-nos. O executivo pode de facto crer que ordenará o que quer;
mas sempre acontece que ele não tem tempo para isso, demasiado ocupado como
está em anunciar o que é preciso. Ninguém obedece mais do que um rei.
Esta
ideia, mesmo sumariamente recordada, esclarece suficientemente o governo
doméstico, desde que se compreendam bem as forças e as aptidões de um e outro
sexo. Comte lembra-nos que o sexo masculino é o sexo activo, e que o sexo
feminino é o sexo afectivo. Trata-se só de compreender bem o que ele quis dizer.
Pela própria estrutura, e pelas funções biológicas, o papel do macho é
evidentemente perseguir esse trabalho de destruição, de conquista, de arranjo
sem o qual a nossa existência seria de imediato impossível. Caçar, pescar,
desbravar, transportar, construir, é
trabalho de homem. No que o homem nunca deixa de obedecer. A torrente, a
tempestade, a árvore, o leão, a serpente, são forças que é preciso em primeiro
lugar reconhecer, e exactamente avaliar. Nós queremos esquecer o estado selvagem, e acreditar que a
necessidade nos pressiona menos vivamente; mas não é nada assim. Franklin dizia
que "a fome olha pela janela do trabalhador, mas não ousa entrar”. Não se pode
dizer melhor. A necessidade nunca está longe. Indirectamente mesmo ela não
cessa de pesar sobre nós e de nos impor que a gravidade não pare de nos puxar
para a terra. O homem volta sempre pois deste combate e imediatamente regressa
a ele. Donde se compreende que o pensamento masculino é poderoso e curto,
sempre à procura da ferramenta, sempre no fio da ferramenta. Se é bom ou mau,
isso é adiado; se as coisas não seriam
melhores de outro modo, isso não ocupa nada o pensamento masculino; ele sonha
com isso, mas não pensa nisso. É pela sua fraqueza que forma tais ideias, não pela sua força. E tal
é a origem do comando; porque o que comanda, não é o homem, é a coisa, é a
situação real e presente. O governo do macho parece-se com todo o governo; os
seus decretos são sempre fundados num estado de facto que não tem respeito,
e que é preciso ter em conta, agrade
isso ou não. É preciso aqui desobstruir muito e abater muito. Segundo a função
natural do sexo activo, que é a de Hércules, o seu papel é anunciar a
necessidade exterior, e pôr fim às agradáveis fantasias. Quando a mulher se
subtrai ao poder masculino, imediatamente se encontra em presença das forças
reais, e não mudou de senhor.
Não
há qualquer dificuldade nisso. Hesita-se um pouco mais quando se trata de
caracterizar o pensamento feminino, ou, se se quiser, o génio feminino. Aqui
ainda é preciso simplificar audazmente, e ver somente as necessidades
biológicas, que nunca abrandam. Se a função de formar primeiro a criança, por
uma convergência fisiológica, e segundo a harmonia própria da espécie, não tivesse
relação com os pensamentos; se os cuidados que se seguem ao nascimento, e que
continuam a gestação por uma massagem contínua e pela mímica mais persuasiva
que se conhece, tivessem de ser reportados a um instinto separado, sem ligação
com a reflexão, seria preciso negar então a relação do pensamento ao corpo
vivo, ideia directriz tantas vezes verificada; seria preciso negar, bem mais, o
que é da experiência directa, que todos os nossos pensamentos têm a forma dos
nossos gestos, dos nossos sinais, das nossas atitudes. E, em resumo, se a
fisiologia não é o caminho que leva a explicar um pouco o
pensamento feminino, qual é então o caminho? Iremos investigar o que as
mulheres dizem ou escrevem elas mesmas, quando é evidente, por mil causas, que
as confidências masculinas são já enganadoras e afectadas, e que as das
mulheres devem sê-lo ainda mais, por causas quase todas honrosas, como são a
modéstia e o pudor? É preciso então ousar muito, e arriscar-se no começo. Na
sequência, e se se tiver firme a ideia directriz, contra fracas objecções, tudo
se esclarecerá.
Que
a mulher, segundo a natureza, seja por de mais ocupada a trazer a criança, a
educá-la, a dispor todas as coisas à volta no interior do abrigo para esse fim,
que assim esteja separada, quanto aos
seus pensamentos, da necessidade exterior que é a província masculina, é uma primeira
ideia, e que conduz já bastante longe. Esta ciência que obedece sempre, e que
só repousa na contemplação dum mecanismo completamente indiferente aos nossos
fins, sempre manejável e modificável também,
não sem esforço, não sem limites, mas pelo menos sem respeito, este
saber audacioso, mecânico e ímpio não é natural à mulher. Não que ela o não
possa compreender; as regras abstractas, o método, as provas são as mesmas para
todo o espírito; mas a natureza não está em nós igualmente disposta; e
compreende-se que as ideias de física, sempre viradas para a conquista do
universo antagonista, nunca serão para a mulher o objecto duma meditação
seguida e amada. Os seus mais queridos pensamentos, os seus pensamentos mais
naturais deverão voltar-se ao contrário para essa forma humana que os seus
gestos mesmo interiores, não cessam nunca de envolver e de proteger. O homem
teve, como se sabe, e não sem esforço, de rejeitar dos seus pensamentos
industriosos essa forma humana, antigamente e sempre adorada. O antropomorfismo
nem por isso, e de longe, deixa de ter utilidade. É inestimável, pelo
contrário, e até do mais alto preço, que o homem não esqueça nunca a sua própria
forma. Porque há duas maneiras de agir; a física verga-se às coisas, e
facilmente arrisca a forma humana, compreendei essa regra pela qual o homem se
conserva homem; e a outra maneira, que depende da moral, é em primeiro lugar dominada
pelo que o homem se deve a si mesmo. Percebe-se aqui que o tema do pensamento
feminino não é o que está fora de nós, que muitas vezes nos fere, sempre nos
ameaça, e frequentemente nos deforma, mas antes o que deve ser, o que é preciso
para que o homem seja homem e o continue a ser. A ordem moral, ou da perfeição,
seria então o objecto natural da contemplação feminina; mas eu quero remeter
esta ideia demasiado extensa para a medida dos objectos familiares.
A
ordem industrial é notável pela mudança, por uma luta, por ruídos inimigos, por
uma oposição entre a forma humana e as inumanas máquinas. Um estaleiro, uma
fábrica representam esse trabalho de quebrar, de esmagar, de afeiçoar a
matéria, de a fundir, de a forjar, de a limar, de a ajustar, segundo as nossas necessidades sempre, mas em
primeiro lugar segundo a própria matéria e segundo as forças hostis, gravidade,
chuva, calor, frio. Nesse sentido, a casa, obra de indústria, obra masculina,
recebe a sua forma dos elementos inumanos: as paredes, as traves, a abóbada são
conforme a gravidade; as janelas conforme o sol; o telhado conforme a chuva, a neve e o vento. A mais
simples das tendas, que é como um telhado poisado no chão, é de forma inumana.
Uma fortaleza, pelo seu exterior, nega também a forma humana pois que tem por fim afastá-la. O navio é feito em
primeiro lugar segundo o mar, não segundo o homem. Em todas estas invenções se
lê a frase premente: “é preciso” que sempre nos lembra forças estranhas e
inimigas. No interior, pelo contrário,
do que é bem chamado a morada, a mesma frase “é preciso” toma um outro
sentido; porque o leito, o sofá, a mesa, a escada são feitos para o homem; a
forma humana amolda-se-lhe em côncavo; ela reina aí tanto quanto se pode. Num
barco de pesca, num avião, num submarino, mesmo num paquete, a necessidade
exterior reduz o lugar do homem; o pensamento viril regula tudo aí. Por
oposição, compreendei como o pensamento feminino dispõe todas as coisas e as
conserva segundo a forma humana tanto quanto pode, como esse refrão da ordem
moral, poderoso pela constância: “ Era preciso.”
Uma
vez que o inferior sustenta o superior, uma vez que o homem é primeiro criança,
porque primeiro é preciso comer, pode
ser que um tal pensamento fique ao nível das necessidades animais, e sem
dúvida muitas vezes é levado aí. Mas
pode também remontar, mais facilmente talvez do que o pensamento masculino
remonta dos seus próprios trabalhos, porque não vai longe da forma humana
adorada ao espírito humano adorado; no entanto, como é natural à mãe esperar com fé e vigiar a cada minuto
qualquer perfeição que ainda não é, esta religião do espírito também nunca é
abstracta; e como o juízo é primeiro sentimento, e que é aí que encontra as
suas razões, os pensamentos também nunca se separam do ser vivo que os trará e que é o
objecto da ideia. A antecipação é humana; a experiência é humana; a humanidade
é o objecto constante das meditações femininas. Esta filosofia é positiva neste
sentido, como Comte viu; mas do mesmo modo que mais de um discípulo resistiu
face ao que ele chamava segunda filosofia de Comte, que julgava acrescentada,
também o pensamento feminino naturalmente se choca com os projectos e as provas
do sexo activo, e, bem pior, se encontra decaído; porque só pode reinar.
Esta
posição é a do poder espiritual. Sabe-se que o juízo moral nunca tem lugar no
arrebatamento das questões. A guerra é disso o maior exemplo; e sem dúvida o
espírito de guerra é profundamente estranho ao pensamento feminino. Todavia, é
preciso ver aqui de perto, porque não é raro que o tribunal das mulheres aclame
a força. Mas isso é ambíguo. Por um lado, a forma humana, entendida no seu
pleno sentido, é arriscada na guerra e por mais de uma maneira; não são apenas
os corpos que nela são mutilados. O inimigo age então como a própria
necessidade; ele passou ao nível de objecto. Esta acção é masculina; a mulher não
pode pensar isso a não ser para o negar tanto quanto pode, preparando-se para refazer
o que a guerra desfaz. Mas, por outro lado,
a guerra é o momento de admirar e de amar, pois que nesse perigo, como
em qualquer outro perigo, o homem ultrapassa a esperança. Eis por que aqui a
opinião feminina é comummente impenetrável. Mas a história da espécie
esclarece-nos melhor. Porque é evidente que pelos caminhos do amor, a
instituição da cavalaria era levada a procurar a prova, bem mais do que a
vitória da força. Assim, o espírito guerreiro foi tirado de alguma maneira para
fora da guerra, e subordinado à mais
profunda justiça, que sempre conduz a um generoso governo de si. Esta grande
ideia trazia a paz. Estava reservado à
época industrial, contra as previsões de Comte, transformar a guerra numa espécie
de trabalho de fábrica, o que faz com que a felicidade de admirar seja reduzida
a recusar, com uma espécie de violência, toda a luz real sobre as causas e os
meios. É uma das razões pelas quais o juízo feminino se fecha sobre si mesmo em
vez de se desenvolver.
É
preciso ver sobre o que se disputa. A mulher exerce um poder de facto que
muitos julgariam desmesurado. Mas por outro lado, surpreende que esse poder, em
direito estrito, seja como que nulo. Notemos que ele é tal justamente na situação
de esposa e de mãe, que é aquela em que se exerce mais, e que a mulher não
reivindica comummente o outro poder, que é de direito e masculino, senão na
medida em que não está na situação de exercer o seu poder próprio. Estas observações surpreendem
sem esclarecer, enquanto não se considerar o bastante o poder espiritual, que
escapa, pela sua natureza, a todas as
fórmulas do direito. Comte gosta de comparar o poder das mulheres a esse poder
político, que é imponderável, e que se chama opinião; e convenhamos que só falta à opinião saber o que quer e o que não quer; sem nenhum poder
definido, ela fará vergar todos os poderes até aos limites marcados pela
necessidade inumana; é claro que quase ninguém ousa esperar tanto. Os proletários
encontrar-se-iam também, segundo a nossa filosofia, e só pelo poder de recusa,
na situação de opor a toda a tirania uma invencível resistência e eficaz desde
logo, a partir do momento em que não tentassem tomar o
poder pela força; porque se encontrarão então decaídos do poder espiritual, e
pelo contrário submetidos à necessidade exterior e suspeitos por sua vez de a avaliar demasiado alto.
Estas ideias são boas de seguir, e ainda novas. A Igreja na sua força própria,
que não é pequena, oferece um melhor exemplo desta função de julgar, sempre
menos eficaz à medida que procura o apoio da força. Este paradoxo explica-se
por pequenas razões, por exemplo, que a força de converter se perde toda pelo
constrangimento, que significa aqui a ideia absurda de ser amado à força.
Mas a verdadeira razão é que o
pensamento que contempla não pode olhar o mesmo ponto que o pensamento que
realiza. A acção deforma sempre o pensamento, e mesmo mais do que era preciso,
mais até do que se pode temer; e é por aí que o poder de forçar anula
imediatamente a função de persuadir. O espírito não pode forçar. Ora se, em vez
de nos perdermos no espírito puro, definirmos o pensamento feminino pela função
de conservar a forma humana, lançada naturalmente à aventura, se
considerarmos o bastante essa função conservadora, sempre adiada, mas que
ninguém pode desprezar, compreenderemos que o poder feminino não é
absolutamente formulável em direito e nunca o será.
O
que exige atenção sem qualquer ameaça, sem que qualquer força se mostre, é
objecto de respeito e de culto. Esta nuança do sentimento não é logo visível
nos jogos do amor porque no começo se faz uma troca de graça, que reúne no
homem toda a resolução de obedecer, e na mulher toda a disposição para aprovar. É proverbial dizer
que este feliz estado não dura mais do que uma lua. Cada um sente bem que é
preciso que o amor se transforme pouco a pouco pelo efeito da idade; mas é
dizer pouco; o amor deve mudar completamente, e muito depressa; porque o toque
da necessidade não é de nenhum modo discreto. Por um lado, será preciso que a
mulher se retire desses jogos masculinos e dessa imitação heróica, para
responder ao primeiro anúncio da criança; é o começo dum longo trabalho sobre
si mesma e à volta dela, no abrigo comum, longe dos trabalhos que submetem e
transformam a natureza inanimada ou animal; longe mesmo dessa matéria humana,
inumana, que a sociedade faz sentir pelo
seu peso e a sua extensão. Como a mulher irá representar agora as necessidades,
tomadas no sentido mais amplo, o homem terá o governo dos meios. É preciso
voltar a dizer aqui que ninguém comanda, e que só a necessidade exterior
comanda; por isso é o homem que é naturalmente o mensageiro dessa potência
surda e muda. Papel ingrato, que é o de
todo o governo. Dupla ignorância aqui. Por um lado, a mulher está sujeita a
ignorar os verdadeiros meios de viver e
conseguir, crendo sempre demasiado que se obtêm os bens exteriores da mesma
maneira que uma mulher amada obtém o consentimento daquele que a ama. As experiências da infância, que obtêm tudo
pela súplica, fazem, que essa ideia
reine mais ou menos em todos; mas o homem liberta-se dela pela pressão
dos negócios e da lei das trocas. A dependência em que o homem se encontra, e
enfim a necessidade de pagar de todas as maneiras, é o que mais surpreende a mulher;
e muitas vezes a necessidade de obedecer
a toca mais vivamente no homem do que em si mesma. Em contrapartida, o homem
ignora mais profundamente ainda a verdadeira origem dos pensamentos, que se
encontra numa fé inquebrantável, que sempre cede, mas que sempre volta. Ele só está naturalmente certo
do incerto; tal é o fundo do sério masculino, forte diante da coisa, fraco
perante si mesmo. Pessimismo e cepticismo são as doenças masculinas. Na mulher,
a espécie faz mais do que concentrar-se e
crer em si; ela refaz-se e renova-se.
Está
fora de dúvida que cada um dos dois sexos se entende maravilhosamente na tarefa
que lhes é própria; é o que torna a espécie invencível e admirável. O amor
renova-se comummente por esta mútua admiração. E, porque não existe contradição
no fundo entre estes dois poderes, a harmonia estabelece-se e conserva-se
muitas vezes na existência imediata. Os romancistas não o desconheceram, como
se vê pelo exemplo do Sr. de Renal e de César Birotteau; o primeiro gostaria
ainda de consultar a sua mulher, no próprio momento em que dela desconfia; o
outro deveria ter de facto acreditado na sua. Somente, logo que a reflexão
desperta, não é sem inconveniente que cada um dos sexos admira o outro sem o
compreender, como o faria dum engenhoso animal, estranho pela estrutura e pelo
que está por baixo dos pensamentos. O ensino enciclopédico, que Comte quer o
mesmo para os dois, tem a dupla vantagem de esclarecer melhor cada qual sobre
os seus próprios passos, o homem pelas ciências, a mulher pelo estudo
continuado dos poetas e dos moralistas, e ao mesmo tempo ajudá-los a um e a
outro, por um efeito inverso, a recompor um único espírito. Mas, como a
natureza, junta à experiência, nunca deixa de confirmar cada um dos dois sexos
nos seus trabalhos próprios e nos seus pensamentos próprios, creio que é
preciso sobretudo dirigir a atenção para aquilo que a natureza apoia menos, e
conduzir a mulher, pelas ciências, principalmente a compreender essa
necessidade exterior, que é a província masculina, enquanto se levará o homem,
segundo a graça dos poetas, a compreender melhor, e mais humanamente, as exigências
do espírito. Os dois seguram-se e chegam a acordo. Não é o lugar de explicar como é
que Comte descobriu, partindo das ciências positivas, o domínio inteiro das
Humanidades e o segredo das religiões. De resto, há outros caminhos. Mas talvez
seja mais natural ao espírito feminino seguir a marcha inversa. Limito-me a
fazer notar que o problema humano, que é de acordar a mística com a ciência,
ou, como se diz na Escola, a liberdade com o determinismo, é o mesmo que o da
união conjugal. A despeito das enganadoras promessas do amor criança, é claro
que uma verdadeira conversação, e continuada, entre o homem e a mulher, supõe
toda a sabedoria humana; tantas tentativas temerárias, tantas vãs pesquisas,
com vista a compreender e ser compreendido, tantos dramas nascidos de reflexão
curta, e mesmo o silêncio do casal muitas vezes, o provam suficientemente. É
preciso dizer e voltar a dizer que a aplicação continuada em compreender o
outro, quando um movimento inverso a isso corresponde, dá o exemplo mais
acabado do pensamento, e talvez o único. Não existe homem que não tenha
necessidade da advertência feminina; não há mulher que não deva regular as suas
fantasias pela ordem exterior da qual o homem é o ministro. Finalmente, é o
casal que salvará o espírito, como a sociedade polida, nos seus tacteios, o
pressentiu sempre, subordinando, sem bem compreender porquê, a perfeição
masculina ao juízo do tribunal feminino.
Alain
(Tradução de José Ames)
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