Desde
que, pelos progressos conexos da ciência e da indústria, o espírito moderno se
libertou de toda a teologia, o homem ocidental não é mais disciplinável a não
ser através duma lei demonstrável. A fim de ganhar tempo sobre as discussões
irritantes que aqui se poderiam levantar, quero apenas notar que os modernos
apologistas invocam menos uma existência verificável do que uma necessidade do
coração que Comte nunca desconheceu, e à qual tenciona, finalmente, dar
satisfação. Posto pois que o homem que procura a ordem a procura segundo o que
sabe melhor, Comte estima que os estudos sociológicos estão agora bastante
preparados para que se faça entrar na ordem das ciências naturais os preceitos
de conduta social que a sabedoria prática sempre ensinou, embora ela os
fundasse, como se viu, em doutrinas completamente inverificáveis. A ideia
de fundar a fidelidade conjugal e o
casamento indissolúvel na obediência a
um Deus abstracto e inconcebível, caracteriza bem a insuficiência e mesmo o
perigo dessas arbitrárias construções teóricas, que desviam os espíritos das
verdadeiras provas, situadas no entanto bem mais perto deles. Por isso, não nos
devemos surpreender que com o triunfo moderno da anarquia metafísica, as mais
simples regras da ordem social tenham sido arrastadas pela ruína das fracas
doutrinas às quais o espírito teológico as tinha imprudentemente ligado.
Todavia, a aberração monoteica nunca
chegou a prescrever, segundo o dogma, o amor maternal, directamente glorificado
no símbolo da Virgem Mãe. É uma razão para perceber nessa relação original, o primeiro tipo de existência
social, como o mais poderoso dos instintos altruístas. Mas é também por isso
mais necessário explicar o estranho erro do espírito metafísico, que, quer ele
conserve uma sombra abstracta de Deus, quer se refugie num materialismo não
menos abstracto, chega sempre ao individualismo pela negação mais ou menos
decidida dos sentimentos altruístas naturais.
O
individualismo está ligado ao monoteísmo pela doutrina da salvação pessoal, que
tende, apesar da natureza, a dissolver
os laços sociais e a isolar o homem face a Deus. Esta abstracção, no pleno
sentido da palavra, preparava a ideologia
racionalista, sempre inclinada para o empirismo céptico, segundo a qual
as sociedades são apenas
instituições de prudência e necessidade,
às quais o indivíduo consente pela preocupação em conservar-se. A doutrina dos
direitos do homem apenas traduz na prática estas estranhas construções
teóricas, a existência social estando então fundada numa espécie de contrato,
sempre submetido ao cálculo dos lucros e dos encargos, sob a ideia de igualdade
radical. É preciso convir, de resto, que esta ideia negativa, e no fundo
anárquica, contribuiu muito para libertar o espírito de investigação,
observação que faz entender uma vez mais as dificuldades e os atrasos do
progresso humano. O espírito liberto deve voltar atrás, examinando por ordem
todas as questões, com a certeza de reencontrar todo o humano, porque tudo
finalmente deve tomar o seu lugar nas concepções positivas, tanto a negação
metafísica como a enérgica posição teológica; porque tudo se explica enfim pela
estrutura e pela situação humana.
Neste
grande tema da moral, que é o resultado de toda a investigação razoável, o
espírito positivo considera a existência social como um facto natural ao mesmo
título que a estrutura do homem.
Estas
notas demasiado abstractas serão esclarecidas por uma tentativa de moral real
que resolvi acrescentar a este estudo sobre Comte, como uma muito útil
conclusão. Já o disse o bastante que os grandes filósofos devem reformar todas
as nossa ideias. Neste Ensaio duma Sociologia da família quis mostrar
como se pode aplicar os princípios de Comte e dar um exemplo dum tal uso dum
sistema, quer dizer, fazer ver que um bom leitor pode propor-se uma tarefa bem
mais importante do que explicar o sistema, que é, seguindo também Hegel,
Descartes e Platão, inventar por si segundo o método do Mestre que se escolheu.
Assim, a moral sociológica num sentido repousa sobre a experiência da vida
social, mas ainda mais sobre a experiência da utilização do pensamento dum
verdadeiro sociólogo.
Alain
(Tradução de José Ames)
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