terça-feira, 3 de abril de 2012

MORAL SOCIOLÓGICA




Desde que, pelos progressos conexos da ciência e da indústria, o espírito moderno se libertou de toda a teologia, o homem ocidental não é mais disciplinável a não ser através duma lei demonstrável. A fim de ganhar tempo sobre as discussões irritantes que aqui se poderiam levantar, quero apenas notar que os modernos apologistas invocam menos uma existência verificável do que uma necessidade do coração que Comte nunca desconheceu, e à qual tenciona, finalmente, dar satisfação. Posto pois que o homem que procura a ordem a procura segundo o que sabe melhor, Comte estima que os estudos sociológicos estão agora bastante preparados para que se faça entrar na ordem das ciências naturais os preceitos de conduta social que a sabedoria prática sempre ensinou, embora ela os fundasse, como se viu, em doutrinas completamente inverificáveis. A ideia de  fundar a fidelidade conjugal e o casamento indissolúvel na obediência  a um Deus abstracto e inconcebível, caracteriza bem a insuficiência e mesmo o perigo dessas arbitrárias construções teóricas, que desviam os espíritos das verdadeiras provas, situadas no entanto bem mais perto deles. Por isso, não nos devemos surpreender que com o triunfo moderno da anarquia metafísica, as mais simples regras da ordem social tenham sido arrastadas pela ruína das fracas doutrinas às quais o espírito teológico as tinha imprudentemente ligado. Todavia, a  aberração monoteica nunca chegou a prescrever, segundo o dogma, o amor maternal, directamente glorificado no símbolo da Virgem Mãe. É uma razão para perceber nessa relação  original, o primeiro tipo de existência social, como o mais poderoso dos instintos altruístas. Mas é também por isso mais necessário explicar o estranho erro do espírito metafísico, que, quer ele conserve uma sombra abstracta de Deus, quer se refugie num materialismo não menos abstracto, chega sempre ao individualismo pela negação mais ou menos decidida dos sentimentos altruístas naturais.

O individualismo está ligado ao monoteísmo pela doutrina da salvação pessoal, que tende, apesar da natureza,  a dissolver os laços sociais e a isolar o homem face a Deus. Esta abstracção, no pleno sentido da palavra, preparava a ideologia  racionalista, sempre inclinada para o empirismo céptico, segundo a qual as sociedades  são apenas instituições  de prudência e necessidade, às quais o indivíduo consente pela preocupação em conservar-se. A doutrina dos direitos do homem apenas traduz na prática estas estranhas construções teóricas, a existência social estando então fundada numa espécie de contrato, sempre submetido ao cálculo dos lucros e dos encargos, sob a ideia de igualdade radical. É preciso convir, de resto, que esta ideia negativa, e no fundo anárquica, contribuiu muito para libertar o espírito de investigação, observação que faz entender uma vez mais as dificuldades e os atrasos do progresso humano. O espírito liberto deve voltar atrás, examinando por ordem todas as questões, com a certeza de reencontrar todo o humano, porque tudo finalmente deve tomar o seu lugar nas concepções positivas, tanto a negação metafísica como a enérgica posição teológica; porque tudo se explica enfim pela estrutura e pela situação humana.

Neste grande tema da moral, que é o resultado de toda a investigação razoável, o espírito positivo considera a existência social como um facto natural ao mesmo título que a estrutura do homem.

Estas notas demasiado abstractas serão esclarecidas por uma tentativa de moral real que resolvi acrescentar a este estudo sobre Comte, como uma muito útil conclusão. Já o disse o bastante que os grandes filósofos devem reformar todas as nossa ideias. Neste Ensaio duma Sociologia da família quis mostrar como se pode aplicar os princípios de Comte e dar um exemplo dum tal uso dum sistema, quer dizer, fazer ver que um bom leitor pode propor-se uma tarefa bem mais importante do que explicar o sistema, que é, seguindo também Hegel, Descartes e Platão, inventar por si segundo o método do Mestre que se escolheu. Assim, a moral sociológica num sentido repousa sobre a experiência da vida social, mas ainda mais sobre a experiência da utilização do pensamento dum verdadeiro sociólogo.


Alain
(Tradução de José Ames)

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