segunda-feira, 9 de abril de 2012

O PAI




Deus Pai, é em primeiro lugar uma espantosa metáfora. O pai, é a força encadeada por si, melhor, pela sua extensão; é o conjunto das coisas que pesam, e uma severidade dos factos consumados. Todo o interior, a mãe, as crianças, as próprias coisas, exprimem os hábitos e os afectos, o recomeço, a suficiência; tudo anuncia que amanhã se parecerá com hoje. Mas o pai, quer seja ministro,  motorista, ou lenhador, fez o seu sulco no mundo, sulco que é a sua jornada, em que  encontrou  e mudou mil acções, sem contar as coisas que não estavam na sua vontade. Esta grande fricção é o que faz o peso do trabalho e o preço do tempo. Só há atrasos no mundo dos trabalhos, congestionamentos e tumulto, como se vê nas encruzilhadas das grandes cidades; e que encruzilhadas as que um ministro tem à sua guarda! Mas essa paz dos campos, também é muito enganadora, porque é preciso sempre esperar, nessa marcha cerrada das causas que não se apressam nunca. Na verdade, cada pequena causa arrasta o mundo inteiro; assim é preciso esperar que aquela grande chuvada seque. O mundo não se governa como essa casa limpa, tão bem fechada. Aqui o trabalho é regulado segundo o homem, e cada um sabe logo o que tem de fazer; por isso o governo aí é fácil. O outro governo, que se vem sentar à mesa familiar, é como que estranho e revestido de necessidade. Este olhar dirige-se para o longe e através das paredes, recusando sempre considerar aquilo que agrada. A criança, cuja situação é a de tudo obter pela súplica, acredita naturalmente que se lhe recusam alguma coisa, é porque não gostam dela o suficiente; esta política pueril é sem dúvida o que o homem compreende menos no mundo. Resta um pouco dessa puerilidade na mulher, por isto que no seu governo próprio ela acusa sempre, e justificadamente, a negligência e a má vontade. A essa oferenda, a essa promessa, a essas esperanças, o homem  não pode responder; a sua política própria é a de nunca lhes responder; a sua missão não é agradar. Se ele o ignora, é porque permanece criança; isso pode encontrar-se no caso em que a existência é assegurada sem trabalho, ou depende somente do favor; mas são casos raros, e mesmo abstractos, não duráveis. Uma das causas então, que fazem que o espírito familiar se perca em fracos juízos e em loucas esperanças, é sempre que o trabalho e os serviços, na fricção do mundo, são tidos em muito pouca conta, e que os sucessos e os reversos são unicamente atribuídos a preferências do coração ou do humor, segundo o método das crianças. Nos casos normais, o pai é como o piloto que olha ao longe e que não se preocupa com as tagarelices. É preciso chamar tagarelice a esse género de conversação vazio e agradável, em que as simpatias, as antipatias, os movimentos do coração humano, as singularidades do carácter e do humor, são o objecto principal. Há assim duas histórias; uma que é feminina e anedótica, em que tudo depende finalmente de agradar ou desagradar; a outra que é masculina, em que tudo depende dos trabalhos e dos serviços. O historiador engana-se aí facilmente se faz profissão de lisonjear. Mas o homem do comum, quer esteja colocado alto ou baixo, vive necessariamente nos trabalhos e pelos trabalhos; ele dificilmente suporta os planos e os projectos que não têm lugar. Talvez se irrite com uma reivindicação justa, e que só pretende ser justa, mais do que com qualquer outra coisa; porque é penoso recusar aquilo que se gostaria de conceder. Enfim, ele é governo por traços como este; ele é o poder. Exerce essa ingrata função, sempre mal compreendida, que não tem o direito de amar, nem de agradar, e que carrega o fardo de querer sempre sem nunca escolher. Por essa oposição de natureza entre o governo e a opinião, a paz do casal estaria muitas vezes ameaçada, e está-o com efeito sempre um pouco. Felizmente a experiência mostra que o amor verdadeiro faz aqui milagre. Por um lado, o homem  facilmente dá audiência ao arrazoado feminino que, é verdade, está sempre um pouco ao lado das verdadeiras causas, mas que, em contrapartida,  alegra o trabalho masculino por picantes observações sobre os caracteres; e é por aí que o homem se interessa pelo homem. Por outro lado, a mulher dá-se primeiro como um respeito de religião pelo trabalho masculino e, muitas vezes, consegue desenredar alguma coisa dos interesses reais e das dificuldades reais. Esta troca do romanesco e do positivo, numa confiança plena, e em que cada um sabe descobrir as marcas de amor em cada palavra, explica algumas conversas intermináveis e deliciosas, e a feliz passagem do amor selvagem à mais bela amizade.

Esta facilidade não se encontra a mesma nas relações entre o pai e o filho. A criança encontra-se mais afastada do pai do que da mãe pelos pensamentos; sem contar que o sentimento natural é aqui menos directo, menos forte, menos apoiado nessa harmonia dos movimentos que é a sequência duma existência biológica primeiro rigorosamente indivisível. É preciso dizer também que os trabalhos do pai o afastam da criança de qualquer modo, ao passo que o trabalho próprio da mãe a aproxima da criança, primeiro materialmente, o que é muito; também em espírito, pois que a primeira atenção da mãe é de adivinhar o que quer exprimir o bebé. O pai acha-se portanto um pouco estranho aos seus filhos. Ele é-o sem dúvida ainda mais relativamente aos filhos varões à medida que crescem; porque  a lei do homem, pela necessidade do trabalho, é que ele esqueça e apague continuamente a sua própria infância: e até, tanto quanto dela conserve a lembrança, pensará naturalmente em todos esses erros do espírito romanesco, relativos ao favor, à ocasião, à sorte, e quererá que o seu filho deles se afaste. Mas a marcha das idades não depende das vontades, e a experiência da idade madura não pode ser compreendida pela adolescência. Um dos traços do pai é que ele gostaria que o seu filho fosse tão exacto, tão sério, tão positivo como ele mesmo.

Esta observação explica já um paradoxo bastante forte, que consiste nisto que o pai não sabe instruir o filho. Todavia, para esclarecer um pouco melhor esta difícil questão, é preciso contar com os sentimentos vivos, que facilmente tiranizam, como diz Aristóteles. As esperanças dum pai são belas e tocantes; ele revê-se no seu filho, de novo rico em juventude e futuro; aquilo que não soube fazer, o seu filho o fará. Ele quer, portanto, ganhar tempo sobre a idade; não compreende a falta, porque compara o seu filho consigo mesmo, não com os jovens da mesma idade. O professor tem sobre o pai esta vantagem que ele julga as faltas por comparação com muitas outras crianças e jovens;  sabe o que se pode exigir, esperar, desejar de cada idade. Ele espera sem impaciência esses progressos súbitos e miraculosos que a natureza prepara, nesse crescimento rápido. Mas o professor em todos os graus tem ainda uma outra vantagem, que é a de que ele não ama os seus alunos, nem de longe, como amaria os seus próprios filhos; assim, não esperando também muito dos seus corações, não dá à ligeireza da idade as cores negras da ingratidão; ora é o que o pai nunca deixa de fazer, tomando todo o trabalho, toda a atenção, como medida do afecto, o que faz dramas, e reconciliações ainda mais prejudiciais aos estudos.

O filho, pelo seu lado, nunca deixa de aplicar, em presença do poder paterno, a política dos afectos, procurando sempre as provas do coração, o que leva muitas vezes a observar até que ponto se pode desagradar. Porque ele ama, porque se sente amado, quer vencer a severidade por outros meios que não os do trabalho; se não o consegue, irrita-se, e logo cai num verdadeiro desespero, cujas marcas são naturalmente ambíguas. Só na escola os trabalhos são pacientes, sem paixões vivas, e as faltas são pesadas segundo a idade e sem cólera verdadeira. Esta oposição entre a escola e a família dá um grande tema, e bastante novo. Eu gostaria de mostrar somente por algumas notas que os laços de sentimento entre o pai e os filhos não se formam facilmente sem a intercessão da mãe. È preciso aqui notar uma dupla imitação. O pai imita naturalmente os sentimentos da mãe, já que a felicidade da mãe é também a sua. Acaba, conforme o amor que sente por ela, por admirar quando ela admira, por perdoar quando ela perdoa, e é por aí  que de início ele aprende a amar os seus filhos como é preciso e segundo a verdadeira caridade, supondo sempre o melhor, e, por essa esperança, fazendo que seja. Não que ele atinja alguma vez essa arte de chocar que é a arte das mães, e que, por uma paciência e uma confiança incomparáveis, educa o bebé até à linguagem, até às primeiras ideias, até às primeiras virtudes. Agora devo citar uma das mais belas fórmulas de Comte, e das menos conhecidas: “Censurando o amor de ser muitas vezes cego, esquece-se que o ódio o é muito mais, e num grau muito mais funesto.” O facto dos moralistas masculinos não terem sabido dominar aqui um lugar comum bastante fraco mostra bem que o espírito do homem depressa encontraria os seus limites perante a infância, se o exemplo e o contágio do amor materno não viesse esclarecê-lo; mas insuficiente luz, como eu dizia, se o sentimento se limita a agir, sem nunca se exprimir.

Por outro lado, o filho imita naturalmente os sentimentos da mãe, sobretudo na primeira idade; e, tanto quanto a mãe dá provas de respeito, de obediência, de amor em relação ao chefe temporal, a criança forma sentimentos do mesmo género, que se compõem de seguida com a ambição que tem de ser homem, formando uma bela mescla, e uma admiração que nada pode desviar. Todavia, se a este sentimento faltasse  a força, dever-se-ia pensar que ao amor conjugal faltaria também. De resto, os sentimentos entrelaçam-se e reagem uns com os outros de mil maneiras; porque acontece que a mãe está mais atenta em marcar o respeito pelo pai, pela ideia de formar as crianças à obediência; e a astúcia que encontra a mãe, de sempre comandar em nome do pai, é mais do que hábil, é bela.

É preciso notar, a respeito da piedade filial, que ela é a fonte de toda a virtude e para toda a vida; por essa religião natural que se chama comemoração; mas tenho de me limitar a esboçar somente esta grande ideia. De facto, pela diferença de idades, por essa situação de chefe temporal, sempre ingrata, pois que se comanda então segundo a necessidade, não segundo os sentimentos, e enfim de acordo com essa severa impaciência que é própria do pai, o filho não se encontra muitas vezes em condições de admirar conforme gostaria. As fraquezas da idade contribuem ainda para deformar essa bela imagem que a criança se faz primeiro do seu pai. A morte tem o privilégio de repor todos os sentimentos  no seu primeiro estado. Hegel diz que pela morte começa a vida do espírito; isso pode entender-se em mais de um sentido; pelo menos, eu percebo aqui como se forma a piedade pela ideia. A imagem miserável estando apagada, o antigo sentimento de veneração, pelo qual a criança cresceu, reencontra enfim o seu objecto, e faz entrar a ideia na existência pelos contos, ou recordações compostas, que são propriamente lendárias. Por este belo trabalho, o filho devolve aos seus pais esse imenso crédito que recebeu, Da mesma maneira que eles supunham na criança todas as virtudes, e delas espiavam todos os sinais, todavia sem serem senhores dessa existência em desenvolvimento a ponto de não ficarem desiludidos, ou pelos menos de não serem chamados à razão, do mesmo modo, a criança tornada homem empreende também ela um culto, mas com pleno sucesso, pela morte do deus. Diz-se que o tempo é o irreparável; isso é verdadeiro do tempo próximo e que acaba de passar; isso é verdade quando a causa pesa ainda nos nossos assuntos; isso é verdade, tanto quanto se lê o passado imediato nos seus efeitos; mas quando se lê no seu próprio espírito o passado já longínquo, quando a existência já recobriu os antigos factos como por uma maré, então é preciso dizer, pelo contrário, que o passado é reparável segundo o sentimento, de modo que não existe no mundo filho ou filha que não se represente enfim os seus pais mais dignos, mais íntegros, mais heróis do que eles foram. Donde veio, pelo concerto da história, esse preconceito das famílias ilustres, e esse peso do nome, sempre difícil de carregar. Nós nunca queremos crer que os nossos predecessores foram servis, incoerentes, medíocres e sempre faltando à ideia, como nós fazemos no nosso segredo. Este preconceito nunca é tão forte como quando é sustentado pela piedade filial, e sobretudo a partir do momento em que se lamenta em vão não  ter sido melhor defendida. Estes modelos que formamos são as nossas mais naturais ideias, e talvez as únicas. Os efeitos deste culto estão profundamente escondidos em cada um. O que se mostra nos comuns discursos respeita aos grandes homens, e encontra-se purificado, mas abstracto e menos eficaz. Como é que cada um interpreta recordações nítidas e inapagáveis, como é que traços de juízo, de firmeza, de finura, de grandeza de alma são desenhados no fim, a partir de testemunhos medíocres e pior do que medíocres, isso raramente é sabido; de qualquer modo, em todo o homem essas ideias de contorno humano são os seus deuses domésticos; o seu pensamento real não é mais do que oração a eles e invocação deles; digo mesmo, o filho do usurário, talvez o próprio usurário; apesar disso, ele seguirá alguma humilde regra acima do acontecimento, e alguma prudência de religião. O dia em que Eugénia Grandet, morto o seu pai, diz por sua vez e no mesmo tom que ele: “Nós veremos isso”, alguma coisa da avareza estava já salva, alguma coisa de preciso e de forte, que começou então a existir, uma virtude sem nome, muito próxima da natureza, e própria a regulá-la. É nesse sentido que Comte entende essa frase célebre e muitas vezes mal compreendida, de que os mortos governam os vivos. Não está aqui a hereditariedade de natureza; bem antes é o remédio para ela.


Alain
(Tradução de José Ames)





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