quinta-feira, 5 de abril de 2012

A MÃE E A CRIANÇA




Eis agora o verdadeiro casal, e o modelo de toda a sociedade. Primeiro por isto que a criança é verdadeiramente, sem nenhuma metáfora, a união dos esposos que desceu das regiões da ideia, e que  chegou à existência. A existência dispensa razões; assim, por muito divididos que estejam o pai e a mãe, e sempre por razões, pois que toda a querela tem razões, não é menos verdadeiro que as duas naturezas se acordam nessa criança, e por essa união  reencontram provisão de vida. Essa forte harmonia da criança, em que cada um dos dois reconhece o outro misturado consigo, ambos inseparáveis, não aconselha apenas o acordo, ela mostra-o feito e em desenvolvimento, de maneira que a deliberação, se se deve continuar ou não, é desfeita pela necessidade, que desenvolve de dia para dia em vez de deliberar. A atenção do casal inicial encontra-se assim deslocada, e a sua vontade comum a trabalhar; donde uma urgência em a seguir e de algum modo pilotar, embarcada que está sem regresso possível, o que o crescimento da criança representa, recobrindo cada dia de esquecimento e de perdão as experiências da véspera.

Toda a obra em desenvolvimento, como uma fábrica, um comércio, uma propriedade agrícola, tem esse privilégio de extinguir as estéreis deliberações sobre o que poderia ter sido, e até sobre o que é. Porque a existência não espera. E a vontade encontra enfim a sua verdadeira aplicação por uma impossibilidade de escolher e uma intimação a continuar. Toda a obra realiza portanto o desenvolvimento daquele que a faz, e revela-o a ele mesmo dum modo totalmente diferente do que o pode fazer a meditação sobre si, sempre ambígua, sempre recriminatória. É o que se observa na obra do artista; porque, afastando outras invenções, ela solicita a verdadeira invenção, que salva o que é feito. Todavia, a obra de arte algumas vezes é corrigida demasiado depressa, e algumas vezes destruída, o que se apreende no trabalho do barro; o mármore do estatuário defende-se melhor, e recondu-lo melhor a si mesmo; o edifício ainda melhor. Quanto mais o artista é artesão, melhor ele se salva. Quanto mais também a arte é tomada da natureza, os trabalhos, os contratos, as estações, melhor ela sustenta o querer. Todas as grandes obras, de indústria, de comércio, de arroteamento, formaram assim grandes caracteres, pela obrigação de perseverar. Bastam estas observações resumidas para fazer compreender que a criança é a obra por excelência, e entre todas benéfica por esse maravilhoso crescimento que não espera. Os pensamentos reais do casal são remetidos sempre para esse objecto, por essa experiência em curso, e que não se pode recusar. O amor conjugal é agora um facto; a vida em comum é um vivo. A união dos corações só é indissolúvel se se quiser; mas a união real, pela criança, é indissolúvel; sobre isso pelo menos é preciso tomar partido. O casamento está feito; ele não pode ser desfeito senão pela destruição das duas naturezas misturadas. Pela criança o divórcio é julgado, e é julgado impossível. Cada um o sente bem pelos efeitos; mas a verdade escondida nesses efeitos é que os esposos não podem aqui partilhar o que trouxeram, nem retirar cada um da criança o que lá puseram. É um facto; e é qualquer coisa um facto. O casamento sem filhos não é ainda um facto; é só uma ideia, que é preciso salvar pelo juramento. E o que é o juramento, senão o mais belo esforço humano para transformar a ideia em facto, e apoiar o sentimento  no irrevogável? Se é verdadeiro dizer que só o juramento desenvolve o amor, pela obrigação de compreender, de perdoar, de elevar e elevar-se, quanto mais evidentemente a existência da criança, que está fora  de deliberação, não faz encontrar a cada um dos esposos essas razões de perseverança, que são, em todo o ser humano, o melhor de si, e o único meio de descobrir o que  é verdadeiro de si! Aqui se mostra a reacção da criança sobre o casal; ideia imensa, que não se pode desenvolver o suficiente. Mas é preciso primeiro esclarecer a outra relação, a maravilha humana, o modelo e a fonte ao mesmo tempo de todos os sentimento humanos.

O amor maternal, e essa graça pela qual a criança responde primeiro, é o único amor que é plenamente natural, porque os dois seres fazem de início apenas um. A vida estritamente e intimamente comum, a lenta formação de um no próprio seio do outro, enfim, essas condições primeiramente animais, fazem aqui uma sociedade incomparável, que não visa formar de dois seres um, mas pelo contrário de um dois. O apego a si não se distingue primeiro do amor que se tem pelo outro. Comte disse sobre isso o essencial. Primeiro, que o amor de si, que mal é amor, é um sentimento forte, e tão profundamente natural que não se  pode recusá-lo sem recusar viver. Em seguida, que o amor de outrem, tomado abstractamente como um dever universalmente reconhecido, como uma perfeição em todo o lado venerada, é natural também,  como a sociedade é natural, mas é também sempre mais fraco do que se gostaria de admitir, em comparação com esse poderoso instinto que nos prende ao nosso próprio ser,  e que nos intima tão violentamente  a conservá-lo. Felizmente a natureza mostra-nos um caminho que conduz de se amar a si  a amar o seu semelhante. Já o amor conjugal, digamos simplesmente amor, oferece esse carácter biológico que faz, pelas repercussões do desejo no animal pensante, que a felicidade de um dependa imediatamente da felicidade do outro, e até não se possa mais dela separar logo que os sinais mágicos voam como flechas entre um e  outro. O egoísmo aqui comunica ao amor essa força do sangue de que a sublime ideia se encontra de início desprovida. Temos de aprender a amar; e a experiência do amor agarra-se-nos ao corpo, o que dá alimento aos mais generosos pensamentos. Mas essa preparação não está ainda suficientemente próxima de nós. O amor maternal abre uma comunicação mais directa entre o selvagem amor de si e o sublime amor que nunca escolhe e que nunca tem a perdoar.

Aqui as ideias comprimem-se. Não se pode esgotar este imenso assunto. Pelo menos, ele se acha todo reunido nesse mito da Virgem Mãe e do Menino Deus, nesse culto espontâneo bem mais clarividente do que toda a teologia, nas suas inumeráveis imagens em que os pintores e os escultores representaram sem se cansar essa atenção da mãe, que é adoração, e essa confiança infantil que, pelo movimento mais livre possível, se lança no seu próprio ser e nele se esconde. Aqui todas as perfeições do amor; porque ele não escolhe nem sequer pensa em escolher, mas antes deseja e espera; bem melhor, ele ajuda; não cessa de ajudar; e esse outro, que não se sabe o que será, da sua substância alimenta-o todo, regozijando-se com os menores progressos, adorando os menores sinais de liberdade e de força, por de mais recompensado em ver crescer o outro e em o ver feliz. Decerto são apenas momentos; o humor sempre resmunga, e a natureza nunca basta; em nenhum caso ela acompanha melhor a boa vontade. Por isso, há qualquer coisa de maternal em todo o amor feminino, e, por imitação, em todo o amor; por recordação também, pois que é da mãe que todos nós aprendemos a amar em primeiro lugar.

A criança recebe primeiro e sempre mais do que aquilo que dá. Mas esta condição não rebaixa em nada a piedade filial; porque o homem sendo feito de tal maneira que gosta mais de dar do que receber, é uma grande parte da educação do coração aprender a receber;  e essa outra generosidade, de que fizemos a virtude de reconhecimento, importa ainda mais do que a primeira em toda a sociedade. A criança aprende em primeiro lugar o mais perfeito reconhecimento; porque é primeiro por ser próspero e feliz, é primeiro por ser forte, que diz obrigado; o reconhecimento na sua origem nega a humilhação. Donde tiraremos lições sem fim, para a nossa existência difícil. O livro Dos Benefícios, que seria preciso ainda escrever e de novo escrever, deveria começar e recomeçar por uma fisiologia da criança sentada no côncavo do braço maternal; por onde se veria que a falta do ingrato é sempre e somente de não ser feliz, e que a perfeição do benefício é de tornar aquele que o recebe  mais livre, mais forte, menos dependente do que era. Os menores movimentos da criança, tantas vezes representados pelos maiores pintores, exprimem essa ideia e mil outras; donde só quero reter esta, porque  é muitas vezes esquecida, é que não há melhor maneira de responder a todo o amor como a toda a amizade, nem mesmo outro modo senão ser feliz; e tal é a nuança que, na graça, se acrescenta ao reconhecimento.

A mãe e o seu filho são a perfeição dessa sociedade natural; os nossos mitos aqui exprimem tudo, e gostaria de se dizer mais do que tudo, por essa imagem audaciosa do menino Deus, e essa nuança de respeito na mãe que faz ressoar o outro amor com esse, trazendo como que ao centro do conselho aquilo que faz a sua invencível força, e que é a vontade de obediência. O pequeno homem é já aquele que terá o pesado fardo de ser forte, o que é de qualquer modo mandar obedecendo. À partida, o coração feminino perdoa-lhe todas essas guerras que  fará, e mesmo o tiro de canhão a mais, pelo qual a força se assina. Há outras nuanças na sociedade duma mãe e da sua filha; menos cuidados talvez, por uma familiaridade de deveres e provas; em contrapartida,  um  entendimento de finura, uma mais íntima aliança, e um governo também mais seguro.


Alain
(Tradução de José Ames)

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