Eis
agora o verdadeiro casal, e o modelo de toda a sociedade. Primeiro por isto que
a criança é verdadeiramente, sem nenhuma metáfora, a união dos esposos que
desceu das regiões da ideia, e que
chegou à existência. A existência dispensa razões; assim, por muito
divididos que estejam o pai e a mãe, e sempre por razões, pois que toda a
querela tem razões, não é menos verdadeiro que as duas naturezas se acordam
nessa criança, e por essa união
reencontram provisão de vida. Essa forte harmonia da criança, em que cada
um dos dois reconhece o outro misturado consigo, ambos inseparáveis, não
aconselha apenas o acordo, ela mostra-o feito e em desenvolvimento, de maneira
que a deliberação, se se deve continuar ou não, é desfeita pela necessidade,
que desenvolve de dia para dia em vez de deliberar. A atenção do casal inicial
encontra-se assim deslocada, e a sua vontade comum a trabalhar; donde uma
urgência em a seguir e de algum modo pilotar, embarcada que está sem regresso
possível, o que o crescimento da criança representa, recobrindo cada dia de
esquecimento e de perdão as experiências da véspera.
Toda
a obra em desenvolvimento, como uma fábrica, um comércio, uma propriedade
agrícola, tem esse privilégio de extinguir as estéreis deliberações sobre o que
poderia ter sido, e até sobre o que é. Porque a existência não espera. E a
vontade encontra enfim a sua verdadeira aplicação por uma impossibilidade de
escolher e uma intimação a continuar. Toda a obra realiza portanto o
desenvolvimento daquele que a faz, e revela-o a ele mesmo dum modo totalmente
diferente do que o pode fazer a meditação sobre si, sempre ambígua, sempre
recriminatória. É o que se observa na obra do artista; porque, afastando outras
invenções, ela solicita a verdadeira invenção, que salva o que é feito. Todavia,
a obra de arte algumas vezes é corrigida demasiado depressa, e algumas vezes
destruída, o que se apreende no trabalho do barro; o mármore do estatuário
defende-se melhor, e recondu-lo melhor a si mesmo; o edifício ainda melhor.
Quanto mais o artista é artesão, melhor ele se salva. Quanto mais também a arte
é tomada da natureza, os trabalhos, os contratos, as estações, melhor ela
sustenta o querer. Todas as grandes obras, de indústria, de comércio, de
arroteamento, formaram assim grandes caracteres, pela obrigação de perseverar.
Bastam estas observações resumidas para fazer compreender que a criança é a
obra por excelência, e entre todas benéfica por esse maravilhoso crescimento
que não espera. Os pensamentos reais do casal são remetidos sempre para esse
objecto, por essa experiência em curso, e que não se pode recusar. O amor
conjugal é agora um facto; a vida em comum é um vivo. A união dos corações só é
indissolúvel se se quiser; mas a união real, pela criança, é indissolúvel;
sobre isso pelo menos é preciso tomar partido. O casamento está feito; ele não
pode ser desfeito senão pela destruição das duas naturezas misturadas. Pela
criança o divórcio é julgado, e é julgado impossível. Cada um o sente bem pelos
efeitos; mas a verdade escondida nesses efeitos é que os esposos não podem aqui
partilhar o que trouxeram, nem retirar cada um da criança o que lá puseram. É
um facto; e é qualquer coisa um facto. O casamento sem filhos não é ainda um
facto; é só uma ideia, que é preciso salvar pelo juramento. E o que é o
juramento, senão o mais belo esforço humano para transformar a ideia em facto,
e apoiar o sentimento no irrevogável? Se
é verdadeiro dizer que só o juramento desenvolve o amor, pela obrigação de compreender,
de perdoar, de elevar e elevar-se, quanto mais evidentemente a existência da
criança, que está fora de deliberação,
não faz encontrar a cada um dos esposos essas razões de perseverança, que são,
em todo o ser humano, o melhor de si, e o único meio de descobrir o que é verdadeiro de si! Aqui se mostra a reacção
da criança sobre o casal; ideia imensa, que não se pode desenvolver o
suficiente. Mas é preciso primeiro esclarecer a outra relação, a maravilha
humana, o modelo e a fonte ao mesmo tempo de todos os sentimento humanos.
O
amor maternal, e essa graça pela qual a criança responde primeiro, é o único
amor que é plenamente natural, porque os dois seres fazem de início apenas um.
A vida estritamente e intimamente comum, a lenta formação de um no próprio seio
do outro, enfim, essas condições primeiramente animais, fazem aqui uma
sociedade incomparável, que não visa formar de dois seres um, mas pelo
contrário de um dois. O apego a si não se distingue primeiro do amor que se tem
pelo outro. Comte disse sobre isso o essencial. Primeiro, que o amor de si, que
mal é amor, é um sentimento forte, e tão profundamente natural que não se pode recusá-lo sem recusar viver. Em seguida,
que o amor de outrem, tomado abstractamente como um dever universalmente
reconhecido, como uma perfeição em todo o lado venerada, é natural também, como a sociedade é natural, mas é também
sempre mais fraco do que se gostaria de admitir, em comparação com esse
poderoso instinto que nos prende ao nosso próprio ser, e que nos intima tão violentamente a conservá-lo. Felizmente a natureza
mostra-nos um caminho que conduz de se amar a si a amar o seu semelhante. Já o amor conjugal,
digamos simplesmente amor, oferece esse carácter biológico que faz, pelas
repercussões do desejo no animal pensante, que a felicidade de um dependa
imediatamente da felicidade do outro, e até não se possa mais dela separar logo
que os sinais mágicos voam como flechas entre um e outro. O egoísmo aqui comunica ao amor essa
força do sangue de que a sublime ideia se encontra de início desprovida. Temos
de aprender a amar; e a experiência do amor agarra-se-nos ao corpo, o que dá
alimento aos mais generosos pensamentos. Mas essa preparação não está ainda
suficientemente próxima de nós. O amor maternal abre uma comunicação mais
directa entre o selvagem amor de si e o sublime amor que nunca escolhe e que
nunca tem a perdoar.
Aqui
as ideias comprimem-se. Não se pode esgotar este imenso assunto. Pelo menos,
ele se acha todo reunido nesse mito da Virgem Mãe e do Menino Deus, nesse culto
espontâneo bem mais clarividente do que toda a teologia, nas suas inumeráveis
imagens em que os pintores e os escultores representaram sem se cansar essa
atenção da mãe, que é adoração, e essa confiança infantil que, pelo movimento
mais livre possível, se lança no seu próprio ser e nele se esconde. Aqui todas
as perfeições do amor; porque ele não escolhe nem sequer pensa em escolher, mas
antes deseja e espera; bem melhor, ele ajuda; não cessa de ajudar; e esse outro,
que não se sabe o que será, da sua substância alimenta-o todo, regozijando-se
com os menores progressos, adorando os menores sinais de liberdade e de força,
por de mais recompensado em ver crescer o outro e em o ver feliz. Decerto são
apenas momentos; o humor sempre resmunga, e a natureza nunca basta; em nenhum
caso ela acompanha melhor a boa vontade. Por isso, há qualquer coisa de
maternal em todo o amor feminino, e, por imitação, em todo o amor; por
recordação também, pois que é da mãe que todos nós aprendemos a amar em
primeiro lugar.
A
criança recebe primeiro e sempre mais do que aquilo que dá. Mas esta condição
não rebaixa em nada a piedade filial; porque o homem sendo feito de tal maneira
que gosta mais de dar do que receber, é uma grande parte da educação do coração
aprender a receber; e essa outra
generosidade, de que fizemos a virtude de reconhecimento, importa ainda mais do
que a primeira em toda a sociedade. A criança aprende em primeiro lugar o mais
perfeito reconhecimento; porque é primeiro por ser próspero e feliz, é primeiro
por ser forte, que diz obrigado; o reconhecimento na sua origem nega a
humilhação. Donde tiraremos lições sem fim, para a nossa existência difícil. O
livro Dos Benefícios, que seria preciso ainda escrever e de novo
escrever, deveria começar e recomeçar por uma fisiologia da criança sentada no
côncavo do braço maternal; por onde se veria que a falta do ingrato é sempre e
somente de não ser feliz, e que a perfeição do benefício é de tornar aquele que
o recebe mais livre, mais forte, menos dependente
do que era. Os menores movimentos da criança, tantas vezes representados pelos
maiores pintores, exprimem essa ideia e mil outras; donde só quero reter esta,
porque é muitas vezes esquecida, é que
não há melhor maneira de responder a todo o amor como a toda a amizade, nem
mesmo outro modo senão ser feliz; e tal é a nuança que, na graça, se acrescenta
ao reconhecimento.
A
mãe e o seu filho são a perfeição dessa sociedade natural; os nossos mitos aqui
exprimem tudo, e gostaria de se dizer mais do que tudo, por essa imagem
audaciosa do menino Deus, e essa nuança de respeito na mãe que faz ressoar o
outro amor com esse, trazendo como que ao centro do conselho aquilo que faz a
sua invencível força, e que é a vontade de obediência. O pequeno homem é já
aquele que terá o pesado fardo de ser forte, o que é de qualquer modo mandar
obedecendo. À partida, o coração feminino perdoa-lhe todas essas guerras
que fará, e mesmo o tiro de canhão a
mais, pelo qual a força se assina. Há outras nuanças na sociedade duma mãe e da
sua filha; menos cuidados talvez, por uma familiaridade de deveres e provas; em
contrapartida, um entendimento de finura, uma mais íntima
aliança, e um governo também mais seguro.
Alain
(Tradução de José Ames)
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