segunda-feira, 2 de abril de 2012

ORDEM E PROGRESSO




A dinâmica social é a ciência do progresso humano. Foram expostas acima as condições principais. Um resumo só pode dar uma pobre ideia do vasto quadro histórico que Comte nos deixou, sob a ideia directriz da continuidade humana. Basta fazer pressentir aqui  que as ideias positivas referentes à real condição humana fornecem à partida a descrição histórica das formas ou dos quadros que permitem ligar num único tecido as instituições, as ideias e os acontecimentos, sem nenhuma dessas suposições maquiavélicas de que os historiadores demasiado pouco familiarizados com a ordem exterior, e as necessidades reais, abusaram durante muito tempo, como se a hipocrisia, a astúcia e a mentira fossem as verdadeiras molas da política. Na verdade, a necessidade inumana conduz quanto ao principal o mundo dos homens, os quais não podem nunca imprimir ao curso natural das coisas políticas senão fracas variações, a despeito das ambições, sempre estéreis, dos reformadores utópicos.

Toda a civilização se encontra de início presa na rede das necessidades biológicas, que a submetem às condições físicas, geográficas, astronómicas e matemáticas, estas condições sendo mais rigorosas e menos modificáveis à medida que são mais simples e mais abstractas. Não há nenhum modo de mudar uma soma se as partes forem dadas, e os astros estão fora do nosso alcance. Em todo o lado o inferior carrega o superior, como se pode ver em todos os tempos que  o frio e a fome regulam inexoravelmente as combinações dos políticos, embora aqui já nos seja possível comandar obedecendo. Todavia, a necessidade biológica reconduz-nos sempre a ela, sobretudo quando tentamos desafiá-la; é assim que em cada um de nós a inteligência e mesmo os sentimentos dependem primeiro da saúde; e a humilde condição do sono e do alimento é imposta ao maior génio, que está em perigo logo que tenta esquecê-la. Esta ideia sobre a condição animal do homem não nos deve levar a vãs declamações. Pelo contrário, é bom notar que, por esta pressão contínua, se encontra limitada a fantasia das acções, e sobretudo a dos pensamentos, sempre estéreis e mesmo prejudiciais quanto menos sentem o constrangimento das necessidades inferiores. Porque de qualquer modo temos de construir sobre o que resiste, como fazem os pedreiros. E a história das utopias faz ver que o progresso é muitas vezes atrasado e mesmo directamente contrariado pela ilusão de que se pode sempre mudar o que desagrada. É assim que os costumes, debaixo da teocracia inicial, foram o que podiam ser, enquanto, pelas condições exteriores suficientemente estáveis, se pôde obedecer às necessidades biológicas apenas, e respeitar, na organização do trabalho, as regras espontaneamente fornecidas pelo regime familiar. E,  longe de nos surpreendermos por algumas sociedades terem vivido durante tanto tempo sob leis tão diferentes das nossas, era preciso que nos surpreendêssemos que elas tivessem podido mudar, se as mesmas necessidades de população e de subsistência não tivessem conduzido ao regime militar conquistador que rompeu as castas, unificou a educação, mas no entanto sem poder mudar o regime da maternidade nem o da primeira infância. De resto, as necessidades da guerra móbil formaram, acima da inflexível ordem biológica, uma outra ordem não escolhida, uma opinião pública, virtudes, e mesmo uma religião correspondendo às exigências do imenso império. Na sequência, foi ainda uma pressão da ordem biológica que fez transbordar nas fronteiras  um fluxo de populações selvagens, e mudou a política de conquista em política defensiva. Donde se pode compreender a constituição feudal, os centros fortificados, a autonomia combinada com a dependência, e  uma estreita ligação restabelecida entre os defensores e o solo; mudança que  explica bastante bem os novos costumes, senão a nova religião composta do politeísmo local e do monoteísmo oriental, e que teve pelo menos de se adaptar a uma estrutura política espontânea. Estas observações, que dão uma fraca ideia da análise histórica efectuada por Comte, são apenas para dar a entender que a inflexível realidade não cessa jamais de regular as nossas tentativas de organização.

É preciso definir a ordem pelos costumes, as instituições e os métodos de acção que  respondem, em cada situação, às necessidades invencíveis, e os progressos pelas invenções que resultam do conhecimento directo dessas necessidades.  O que o estudo da época industrial não cessou de confirmar amplamente. Assim,  a ideia que domina toda a interpretação da história é que a resistência às inovações metafísicas, conduzindo sempre a inteligência ao nível dos problemas reais, é também o que assegura o progresso. Nada é mais próprio a fazê-lo entender do que o contraste entre a civilização grega e a romana. Na primeira, o gosto das especulações abstractas, não suficientemente temperado pelas necessidades militares, depressa produziu a decomposição dos costumes sob o reino dos discursadores, de modo que os serviços eminentes assim prestados ao progresso humano não impediram uma decadência irremediável. Em lugar do que, na outra, a ordem militar, pela necessidade de conquistar para conservar, resistiu fortemente às improvisações; donde essa poderosa organização política e jurídica, ainda viva em toda a ordem ocidental.

Da mesma maneira, na Idade Média, durante a longa transição monoteica, quase sempre mal apreciada, o contraste é notável entre um método de pensar inteiramente subtraído a toda a verificação, e um  sentimento profundo das necessidades sociais, que se traduz por uma luta contínua contra toda a improvisação, mesmo de pensamento, sabedoria prática que assegurou essa difícil passagem contra as divagações metafísicas. Porque o dogmatismo, em que a experiência falta, é dispersivo. Donde se compreende um poder espiritual energicamente conservador, sempre inspirado, sem o saber, pelas necessidades da ordem social apoiada ela própria sobre a ordem exterior, única reguladora, no fundo, de todo o pensamento. Do que é fácil julgar equitativamente se se consideram as fantasias utópicas que caracterizam a anarquia moderna e o advento do livre pensamento. Compreende-se talvez o bastante, mesmo a partir deste resumo, que a razão não se pode definir fora do seu conteúdo real, e  que enfim os pensadores, se  não estão de todas as maneiras apoiados no objecto, não têm bom senso nenhum.

Vê-se que não é tão fácil, como se poderia crer, explicar a célebre divisa: “Ordem e progresso”, esclarecida pelo aforismo menos conhecido: “O progresso nunca é mais do que o desenvolvimento da ordem.” O escolho dos resumos, não exceptuo aqueles que o próprio Comte deu da sua doutrina, é que passamos duma ideia a outra, nós que lemos, pelo caminho mais vulgar, e recaímos assim nos lugares-comuns. Cada um teve  ocasião de pensar que ama o progresso, mas que também está empenhado na ordem, o que não tem saída. A ideia de Comte, na aparência tão simples, é uma das mais profundas e das mais difíceis de apreender. Ele tomou-a certamente dos seus estudos astronómicos, considerando, no sistema solar, as variações compatíveis com as leis estáveis. E era só formar, no caso mais favorável, uma justa noção das leis naturais, cuja constância se exprime pelas próprias variações. E a amplitude das variações está ligada à complexidade do sistema, donde esta consequência importante que a ordem mais complexa é também a mais modificável. Mas esta ideia deve ser preparada pela contemplação positiva duma  ordem que nos seja inacessível; porque é vulgar que o sucesso da acção apague a ideia mesma da lei natural, somente representada então sob a forma duma vontade superior  à nossa. Pelo contrário, conduzindo os nossos pensamentos ao mesmo tempo segundo a ordem enciclopédica e segundo a experiência, nós devemos chegar a compreender completamente o obscuro axioma de Bacon: "O homem só triunfa da natureza obedecendo-lhe”; e as dificuldades que encerra esta fórmula tão conhecida vêm de que, sendo evidente de facto, ela é inconcebível segundo as ficções quase equivalentes dum mundo fechado e dum Deus perfeito; mas a estrita ligação da teoria e da experiência leva a exorcizar o fantasma da fatalidade, que surge então como metafísica, quer dizer, tão inconcebível quanto inverificável. O verdadeiro pensador, esclarecido quanto a isso pela lei dos três estados, que lhe  representa a marcha de todos os nossos pensamentos, qualquer que seja o objecto, transporta em todo o estudo e até na sociologia esta noção capital de que as leis imutáveis permitem modificações tanto mais amplas quanto a ordem de que se trata é mais complexa.

A noção positiva do poder humano, que é a da liberdade real, encontra-se aqui, mas não acessível sem uma profunda cultura enciclopédica. Porque, coisa digna de ser notada, enquanto que a ordem aparece sozinha na contemplação astronómica, é o progresso pelo contrário que ocupa todo o espírito na contemplação sociológica. Trata-se então, no decurso dum estudo conduzido segundo a série das seis ciências, de conservar a ordem sem  por isso perder o progresso, desde o momento crítico da física, em que o homem se encontra parte actuante nos acontecimentos considerados. A nossa análise pára aqui, porque nada pode dispensar a lenta formação positiva. Traduzamos somente a ideia, ainda abstracta, em termos políticos; ela significa que o progresso não pode alterar mais a ordem do que as variações dum sistema violam as leis mecânicas. De facto, esta ideia foi esclarecida, aos olhos do mestre, duma maneira decisiva, pelas ideias de Broussais sobre a saúde e a doença,  uma e outra pertencendo à mesma ordem, e verificando as mesmas leis. Esta ideia biológica, já bastante escondida, pareceu-lhe suficientemente madura para que a transportasse para o domínio da ciência social, onde seguramente  ela é ainda mais difícil de apreender, enquanto as leis da ordem, que são o objecto de Estática Social, não forem suficientemente conhecidas. Foi por isso que insisti sobre isto que a ordem não deve ser tomada como uma concepção ideal, mas como representando um conjunto de necessidades inferiores, progressivamente conhecidas e elucidadas pelas ciências precedentes. Para dar um exemplo que é ainda mais claro hoje do que o era no tempo de Comte, as reivindicações feministas  relevam da utopia metafísica, e mascaram quase inteiramente, na opinião, outros progressos que o nosso filósofo concebe bem mais amplos, quanto à dignidade e à missão da mulher, e que, bem longe de mudarem a ordem biológica, pelo contrário a desenvolvem obedecendo-lhe. Este exemplo pode advertir-nos disto, que se a Dinâmica Social pode fazer-nos apreender de facto a relação do progresso à ordem, só a Estática Social pode esclarecer-nos sobre isso, segundo o célebre exemplo da mecânica racional, onde se vê bem que a dinâmica seria temerária sem as investigações da estática. Que se compreenda somente a dificuldade das especulações políticas, e a preparação que elas supõem, e este resumo, embora insuficiente, não será de todo inútil.


Alain
(Tradução de José Ames)

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