A
dinâmica social é a ciência do progresso humano. Foram expostas acima as
condições principais. Um resumo só pode dar uma pobre ideia do vasto quadro
histórico que Comte nos deixou, sob a ideia directriz da continuidade humana.
Basta fazer pressentir aqui que as
ideias positivas referentes à real condição humana fornecem à partida a
descrição histórica das formas ou dos quadros que permitem ligar num único
tecido as instituições, as ideias e os acontecimentos, sem nenhuma dessas
suposições maquiavélicas de que os historiadores demasiado pouco familiarizados
com a ordem exterior, e as necessidades reais, abusaram durante muito tempo,
como se a hipocrisia, a astúcia e a mentira fossem as verdadeiras molas da
política. Na verdade, a necessidade inumana conduz quanto ao principal o mundo
dos homens, os quais não podem nunca imprimir ao curso natural das coisas
políticas senão fracas variações, a despeito das ambições, sempre estéreis, dos
reformadores utópicos.
Toda
a civilização se encontra de início presa na rede das necessidades biológicas,
que a submetem às condições físicas, geográficas, astronómicas e matemáticas,
estas condições sendo mais rigorosas e menos modificáveis à medida que são mais
simples e mais abstractas. Não há nenhum modo de mudar uma soma se as partes
forem dadas, e os astros estão fora do nosso alcance. Em todo o lado o inferior
carrega o superior, como se pode ver em todos os tempos que o frio e a fome regulam inexoravelmente as
combinações dos políticos, embora aqui já nos seja possível comandar
obedecendo. Todavia, a necessidade biológica reconduz-nos sempre a ela,
sobretudo quando tentamos desafiá-la; é assim que em cada um de nós a
inteligência e mesmo os sentimentos dependem primeiro da saúde; e a humilde
condição do sono e do alimento é imposta ao maior génio, que está em perigo
logo que tenta esquecê-la. Esta ideia sobre a condição animal do homem não nos
deve levar a vãs declamações. Pelo contrário, é bom notar que, por esta pressão
contínua, se encontra limitada a fantasia das acções, e sobretudo a dos
pensamentos, sempre estéreis e mesmo prejudiciais quanto menos sentem o
constrangimento das necessidades inferiores. Porque de qualquer modo temos de
construir sobre o que resiste, como fazem os pedreiros. E a história das
utopias faz ver que o progresso é muitas vezes atrasado e mesmo directamente
contrariado pela ilusão de que se pode sempre mudar o que desagrada. É assim
que os costumes, debaixo da teocracia inicial, foram o que podiam ser,
enquanto, pelas condições exteriores suficientemente estáveis, se pôde obedecer
às necessidades biológicas apenas, e respeitar, na organização do trabalho, as
regras espontaneamente fornecidas pelo regime familiar. E, longe de nos surpreendermos por algumas sociedades
terem vivido durante tanto tempo sob leis tão diferentes das nossas, era
preciso que nos surpreendêssemos que elas tivessem podido mudar, se as mesmas
necessidades de população e de subsistência não tivessem conduzido ao regime
militar conquistador que rompeu as castas, unificou a educação, mas no entanto
sem poder mudar o regime da maternidade nem o da primeira infância. De resto,
as necessidades da guerra móbil formaram, acima da inflexível ordem biológica, uma
outra ordem não escolhida, uma opinião pública, virtudes, e mesmo uma religião
correspondendo às exigências do imenso império. Na sequência, foi ainda uma
pressão da ordem biológica que fez transbordar nas fronteiras um fluxo de populações selvagens, e mudou a
política de conquista em política defensiva. Donde se pode compreender a
constituição feudal, os centros fortificados, a autonomia combinada com a
dependência, e uma estreita ligação
restabelecida entre os defensores e o solo; mudança que explica bastante bem os novos costumes, senão
a nova religião composta do politeísmo local e do monoteísmo oriental, e que
teve pelo menos de se adaptar a uma estrutura política espontânea. Estas
observações, que dão uma fraca ideia da análise histórica efectuada por Comte,
são apenas para dar a entender que a inflexível realidade não cessa jamais de
regular as nossas tentativas de organização.
É
preciso definir a ordem pelos costumes, as instituições e os métodos de acção
que respondem, em cada situação, às necessidades
invencíveis, e os progressos pelas invenções que resultam do conhecimento directo
dessas necessidades. O que o estudo da época
industrial não cessou de confirmar amplamente. Assim, a ideia que domina toda a interpretação da
história é que a resistência às inovações metafísicas, conduzindo sempre a
inteligência ao nível dos problemas reais, é também o que assegura o progresso.
Nada é mais próprio a fazê-lo entender do que o contraste entre a civilização
grega e a romana. Na primeira, o gosto das especulações abstractas, não
suficientemente temperado pelas necessidades militares, depressa produziu a
decomposição dos costumes sob o reino dos discursadores, de modo que os serviços
eminentes assim prestados ao progresso humano não impediram uma decadência
irremediável. Em lugar do que, na outra, a ordem militar, pela necessidade de
conquistar para conservar, resistiu fortemente às improvisações; donde essa
poderosa organização política e jurídica, ainda viva em toda a ordem ocidental.
Da
mesma maneira, na Idade Média, durante a longa transição monoteica, quase
sempre mal apreciada, o contraste é notável entre um método de pensar
inteiramente subtraído a toda a verificação, e um sentimento profundo das necessidades sociais,
que se traduz por uma luta contínua contra toda a improvisação, mesmo de pensamento,
sabedoria prática que assegurou essa difícil passagem contra as divagações
metafísicas. Porque o dogmatismo, em que a experiência falta, é dispersivo.
Donde se compreende um poder espiritual energicamente conservador, sempre
inspirado, sem o saber, pelas necessidades da ordem social apoiada ela própria
sobre a ordem exterior, única reguladora, no fundo, de todo o pensamento. Do
que é fácil julgar equitativamente se se consideram as fantasias utópicas que
caracterizam a anarquia moderna e o advento do livre pensamento. Compreende-se
talvez o bastante, mesmo a partir deste resumo, que a razão não se pode definir
fora do seu conteúdo real, e que enfim
os pensadores, se não estão de todas as maneiras apoiados no
objecto, não têm bom senso nenhum.
Vê-se
que não é tão fácil, como se poderia crer, explicar a célebre divisa: “Ordem e
progresso”, esclarecida pelo aforismo menos conhecido: “O progresso nunca é
mais do que o desenvolvimento da ordem.” O escolho dos resumos, não exceptuo
aqueles que o próprio Comte deu da sua doutrina, é que passamos duma ideia a
outra, nós que lemos, pelo caminho mais vulgar, e recaímos assim nos
lugares-comuns. Cada um teve ocasião de
pensar que ama o progresso, mas que também está empenhado na ordem, o que não
tem saída. A ideia de Comte, na aparência tão simples, é uma das mais profundas
e das mais difíceis de apreender. Ele tomou-a certamente dos seus estudos
astronómicos, considerando, no sistema solar, as variações compatíveis com as
leis estáveis. E era só formar, no caso mais favorável, uma justa noção das
leis naturais, cuja constância se exprime pelas próprias variações. E a
amplitude das variações está ligada à complexidade do sistema, donde esta consequência
importante que a ordem mais complexa é também a mais modificável. Mas esta ideia
deve ser preparada pela contemplação positiva duma ordem que nos seja inacessível; porque é
vulgar que o sucesso da acção apague a ideia mesma da lei natural, somente
representada então sob a forma duma vontade superior à nossa. Pelo contrário, conduzindo os nossos
pensamentos ao mesmo tempo segundo a ordem enciclopédica e segundo a
experiência, nós devemos chegar a compreender completamente o obscuro axioma de
Bacon: "O homem só triunfa da natureza obedecendo-lhe”; e as dificuldades que
encerra esta fórmula tão conhecida vêm de que, sendo evidente de facto, ela é
inconcebível segundo as ficções quase equivalentes dum mundo fechado e dum Deus
perfeito; mas a estrita ligação da teoria e da experiência leva a exorcizar o
fantasma da fatalidade, que surge então como metafísica, quer dizer, tão
inconcebível quanto inverificável. O verdadeiro pensador, esclarecido quanto a
isso pela lei dos três estados, que lhe
representa a marcha de todos os nossos pensamentos, qualquer que seja o
objecto, transporta em todo o estudo e até na sociologia esta noção capital de
que as leis imutáveis permitem modificações tanto mais amplas quanto a ordem de
que se trata é mais complexa.
A
noção positiva do poder humano, que é a da liberdade real, encontra-se aqui,
mas não acessível sem uma profunda cultura enciclopédica. Porque, coisa digna
de ser notada, enquanto que a ordem aparece sozinha na contemplação
astronómica, é o progresso pelo contrário que ocupa todo o espírito na
contemplação sociológica. Trata-se então, no decurso dum estudo conduzido
segundo a série das seis ciências, de conservar a ordem sem por isso perder o progresso, desde o momento
crítico da física, em que o homem se encontra parte actuante nos acontecimentos
considerados. A nossa análise pára aqui, porque nada pode dispensar a lenta
formação positiva. Traduzamos somente a ideia, ainda abstracta, em termos
políticos; ela significa que o progresso não pode alterar mais a ordem do que
as variações dum sistema violam as leis mecânicas. De facto, esta ideia foi
esclarecida, aos olhos do mestre, duma maneira decisiva, pelas ideias de
Broussais sobre a saúde e a doença, uma
e outra pertencendo à mesma ordem, e verificando as mesmas leis. Esta ideia
biológica, já bastante escondida, pareceu-lhe suficientemente madura para que a
transportasse para o domínio da ciência social, onde seguramente ela é ainda mais difícil de apreender,
enquanto as leis da ordem, que são o objecto de Estática Social, não forem
suficientemente conhecidas. Foi por isso que insisti sobre isto que a ordem não
deve ser tomada como uma concepção ideal, mas como representando um conjunto de
necessidades inferiores, progressivamente conhecidas e elucidadas pelas
ciências precedentes. Para dar um exemplo que é ainda mais claro hoje do que o
era no tempo de Comte, as reivindicações feministas relevam da utopia metafísica, e mascaram
quase inteiramente, na opinião, outros progressos que o nosso filósofo concebe
bem mais amplos, quanto à dignidade e à missão da mulher, e que, bem longe de
mudarem a ordem biológica, pelo contrário a desenvolvem obedecendo-lhe. Este
exemplo pode advertir-nos disto, que se a Dinâmica Social pode fazer-nos
apreender de facto a relação do progresso à ordem, só a Estática Social pode
esclarecer-nos sobre isso, segundo o célebre exemplo da mecânica racional, onde
se vê bem que a dinâmica seria temerária sem as investigações da estática. Que se
compreenda somente a dificuldade das especulações políticas, e a preparação que
elas supõem, e este resumo, embora insuficiente, não será de todo inútil.
Alain
(Tradução de José Ames)
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