Se
se entende pelo termo Psicologia o estudo da natureza humana considerada nos
seus apetites, nos seus afectos e nos seus pensamentos, pode-se decidir que a
observação do homem pelo homem, tantas vezes tentada por ambiciosos literatos,
nunca chegou além do que a experiência doméstica e a linguagem popular torna
sensível a todos, e sobretudo às mulheres, que têm todas de governar um pequeno
reino, e que dependem mais do que os homens das opiniões e dos afectos.
Sobretudo, se esse conhecimento prático é esclarecido pela leitura ordinária
dos melhores poetas, será sempre verdadeiro que a família, completada pelo
círculo dos amigos e dos cooperantes, é o lugar de escolha em que a criança se
exercitará a adivinhar e a prever as reacções dos seres humanos diante da
surpresa, da injúria, da decepção, da contradição, do elogio, da censura, do
desprezo, da miséria. E decerto, há mais verdade nesta sabedoria comum e
proverbial, do que nas máximas misantrópicas, inspiradas quer pelo dogma teológico,
quer pela crítica metafísica. Todavia, essa prática está ainda muito longe duma
ciência verdadeira. As relações reais da acção, do sentimento, e da
inteligência só são cientificamente observáveis na espécie, como já se notou a
propósito da lógica real, que é também uma psicologia da inteligência. Que o
espírito sociológico seja o único capaz de analisar correctamente a relação das
hipóteses à experiência, é o que ensina já a série das seis ciências
fundamentais, considerada como um primeiro esboço do progresso humano. Os três
estados, como sem dúvida se compreendeu, vivificam este primeiro esboço,
restabelecendo o sentimento no seu justo lugar, donde continuamente antecipa,
pelo culto, as investigações ulteriores do entendimento. Não é preciso menos
que o conjunto do progresso humano para revelar ao indivíduo o segredo da sua
própria infância teológica e da sua adolescência metafísica. É por este método,
ainda novo hoje, que o observador da natureza humana será liberto das fantasias e das aberrações individuais
que atraem a curiosidade e permitem também todas as hipóteses. Mas o erro mais
natural, uma vez que todo o psicólogo com pretensões científicas
era mais espectador do que actor, e mais inteligente do que afectuoso, é
ter considerado que o motor humano é sempre a inteligência, que regula a partir
das suas leis próprias os afectos e as acções. Donde, esse erro derivado, e de
grande consequência, que aparece ao mesmo tempo que o espírito crítico ou
metafísico, e que consiste em desconhecer a existência natural das inclinações
altruístas, erro comum aos padres monoteístas, aos físicos laicos, aos
empiristas, e aos cépticos. A ideia de que os cálculos do interesse pessoal levam só por eles
a fazerem-se aliados, amigos e compatriotas não podia deixar de seduzir
pensadores tão diferentes quanto à cultura, porque, faltando a todos as luzes
da sociologia positiva, partiam sempre do indivíduo para compreender a
sociedade. Donde uma ideologia misantrópica, que só a sociologia podia
directamente corrigir, a existência individual aparecendo então como uma abstracção
viciosa, pois que a vida social não é menos natural ao homem do que comer e
dormir.
Esta
primeira reforma do juízo era ainda apenas negativa. A observação da infância
humana na história sociológica permite aperceber a fonte de todos esses
sofismas metafísicos, que é tão-só um desconhecimento do passado humano.
Primeiro a observação das religiões, sejam primitivas, sejam elaboradas, faz
aparecer segundo a sua justa importância um género de pensamentos que a ordem
exterior nunca verifica, análogas àquelas que se encontram no delírio, no
sonho, na loucura, e que mostram que o espírito divaga naturalmente, em relação
ao verdadeiro, sob o impulso do sentimento, sobretudo fortificado pelas
necessidades sociais. Essas crenças não são de modo nenhum arbitrárias, pois
que o espírito criança tinha de se
conduzir primeiro diante da natureza inumana, segundo uma analogia suposta
entre as forças exteriores e o mundo humano, que é o primeiro conhecido, e, em todas
as idades, a primeira fonte, pelo menos na aparência, de quase toda a nossa
infelicidade. Mas a ligação por fim apreendida,
conforme a lei dos três estados, entre as ingénuas crenças e o
desenvolvimento dos conhecimentos positivos, devia fazer entender que o
sentimento é normalmente o primeiro motor da investigação em todos os sujeitos.
Se não se sabe reconhecer a inteligência nas ficções monoteístas, politeístas,
e mesmo fetichistas, tem de se renunciar a compreender a continuidade humana, e
por consequência a conhecer-se a si mesmo. Digamos pois, em segundo lugar, que essa história da nossa longa infância, se
se sabe aceitar como ela é, dominando o orgulho metafísico, esclarece como é
preciso o regime actual tal qual se encontra nos espíritos mais cultivados. Por
que é preciso admitir que fora do conhecimento da ordem exterior segundo o
método positivo ao qual o espírito se verga sem dificuldade desde que saiba, as
opiniões de todos respeitando aos problemas mais difíceis e mais urgentes não
tem por sustentáculo real quaisquer argumentos de advogado que aparecem nas
discussões, mas sempre um sentimento que corresponde às relações da família, de
cooperação ou de amizade. Esses sentimentos nunca são sem verdade, uma vez que
traduzem necessidades sociais, e, por elas, necessidades cósmicas, mas
evidentemente antes dum conhecimento positivo de uns e de outros. Donde resulta uma vez mais que as crenças
ingénuas são o verdadeiro esboço das noções mais elaboradas. Deve-se portanto
reconhecer, em conclusão destas observações concordantes, que a inteligência
recebe sempre os seus impulsos do sentimento como recebe as suas regras da
acção. Donde se segue que uma inteligência liberta destes laços preciosos
estaria condenada a uma divagação sem limites, e que enfim o entendimento só é
seguro e capaz de corrigir a acção e o entendimento tanto quanto se modelar, através da ciência real, pela inflexível e imutável ordem exterior.
“Agir por afecto e pensar para agir”, esta divisa positivista é para
ultrapassar a orgulhosa insubordinação da inteligência, que caracteriza o
espírito metafísico, mas estas condições são também aquelas que o espírito
metafísico, de acordo com as intrigas académicas, que favorecem as especialidades,
rejeita mais energicamente.
Depois
deste preâmbulo, puramente sociológico, o pensador está em estado de desenhar,
para si, um quadro das funções mentais relacionado ao seu órgão, que é o
cérebro. Esta teoria cerebral, em que está exposta em detalhe a psicologia
positiva, não deve ser menosprezada segundo a crítica cerrada que reduziu muito
a ambiciosa doutrina das localizações cerebrais. Comte diz explicitamente que a
biologia não está em condições de investigar a sede das diversas funções
mentais, por falta duma doutrina sociológica que determine essas funções
segundo a ordem da dignidade crescente e da energia decrescente. De resto, o
nosso autor não esquece nunca que o conjunto do cérebro como a unidade do
organismo inteiro, são a condição de todas. Bem compreendidas estas reservas, a
série cerebral das funções mentais forma um plano de psicologia irrepreensível.
Comte, esclarecido pelas relações de dependência que explicam a série,
sentimento, acção, inteligência, de modo nenhum se enganou ligando o sentimento
à parte posterior da massa cerebral, a acção à parte média situada no alto do
crânio, e a inteligência à extremidade anterior que vem bater e encolher-se
contra a fronte. As subdivisões, segundo o próprio princípio desta construção,
que é sociológico, valem mais para as próprias funções do que para as partes
que se supõe estarem com elas relacionadas, e cuja experiência biológica apenas
dará um conhecimento imperfeito, sobretudo a respeito das operações superiores.
A
afectividade divide-se segundo o egoísmo e o altruísmo; e o egoísmo é evidentemente
o primeiro, seja quanto ao desenvolvimento, seja quanto à energia. Os instintos
egoístas são o nutritivo, o sexual, o
maternal. Depois destes instintos conservadores colocam-se naturalmente os
instintos de aperfeiçoamento, o primeiro militar, que diz respeito à destruição
dos obstáculos, e o segundo industrial, que se manifesta pela construção dos
meios. A transição do egoísmo ao altruísmo efectua-se pelo orgulho e a vaidade,
dos quais é muito preciso observar a
ordem. Que a vaidade tenha naturalmente
menos energia do que o orgulho, mas mais do que a dignidade, é o que
surpreenderá menos se se definir a vaidade pela necessidade de aprovação. A
vaidade faz assim a passagem entre o egoísmo e o altruísmo. O altruísmo enfim,
compreende os três graus da simpatia, afeição, veneração, bondade, que acabam a
série dos afectos.
Quanto
às funções intelectuais, é importante livrarmo-nos das vagas faculdades como
atenção, memória, vontade. É preciso distinguir duas funções propriamente
mentais, relativas uma à expressão e a outra à concepção, a expressão estando
mais próxima da acção, portanto, primeira em energia, e segunda em dignidade.
Quanto às funções mais altas, elas dividem-se, sempre segundo a mesma ordem, em
contemplação e em meditação, a primeira compreendendo a observação dos seres,
depois a dos factos, a segunda a indução e a dedução. Quanto à relação precisa
de todas estas funções com qualquer parte seja lateral seja mediana do cérebro,
é inútil aqui insistir. A psicologia positiva não está, como se pode ver,
dependente dessas discussões, talvez sem fim, que não podem deixar de ser
levantadas pelos anatomistas e os fisiologistas. Fora destas suposições, o quadro
das funções, que acabo de resumir, não está exposto a graves críticas, e não
comporta, parece-me, quaisquer rectificações importantes. Todas as pesquisas
ulteriores da psicologia se lhe conformaram. De resto, a ingratidão em relação
a Comte , que é o facto geral do nosso tempo, vem principalmente de que as suas
doutrinas são daquelas que não se perdoaria ter alguma vez desconhecido.
Alain
(Tradução de José Ames)
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