VII
“O que eu queria dizer, é que não nos devemos enganar com essas coisas de que só gostamos com vista a um fim superior amado, e que dele não são mais do que fantasmas.”
Toda a gente crê saber o que é o amor platónico, e, bem melhor, toda a gente o sabe. Este culto espontâneo, raro, infalível, que fez dum nome próprio uma palavra usual da linguagem comum, mostra-nos o centro do sistema. Nós olhamos, e não sabemos bem onde bater. O amor do bem é universal, mas vai direito ao seu objecto através do vazio; o amor do bem não faz nada. O amor do belo está mais próximo da terra; agarra-se-nos mais ao corpo; as doces lágrimas o testemunham; o bem aqui ele mesmo tem um corpo; o bem toca-nos; admirai esta imperiosa metáfora. Todavia, estamos ainda muito longe de Hipotales passando por todas as cores; estamos muito longe desses ciclones de sangue e de humores que dão a conhecer os amorosos. Pensai no despeito, na cólera, no delírio, nesse corpo que se enrosca, em vez de dormir, como uma serpente cortada. Tal é a prova de todos, e cada um compreende o hino: “Eros, invencível aos homens e aos deuses.” Ora eu creio que é preciso olhar de perto estes impetuosos movimentos que resultam, no corpo humano, dum tão ligeiro toque, da visão, e as mais das vezes duma imagem fugitiva. Ninguém explicaria esta perturbação estranha pela atracção dum prazer; cada um estima por um olhar justo o imenso espaço que se estende entre o desejo e o amor. Todos esses dramas que se lêem, que cada um receia para si, e esse nariz de Cleópatra, tudo isso está muito longe dum prazer curto e animal. Tudo isso é de alma, e mesmo de espírito. Nesta ambição de agradar, e de agradar ao ser mais alto e mais difícil, ao ser que se quer tal, mostra-se logo a mais nobre ambição, que procura o semelhante mais alto do que si, e que se lhe quer juntar. Alceste sofre por Celimene ser vulgar e baixa; ele qué-la sublime; pressente-a tal. É dum espírito que quer louvor, e livre louvor. É decerto belo de ver, esforçando-se em todas as suas acções por merecer esse elogio que ele espera; mas a Celimene faltou a coragem. Ora, uma vez que o teatro testemunha para todos, é evidente que para o juízo dos filhos da terra todo o amor é celeste, todo o amor é platónico. Assim, dum olhar, e bem facilmente, nós percorremos toda a extensão deste grande tema.
Mas demasiado depressa, sem dúvida; demasiado facilmente esquecidos desse animal rugidor e de pé; ainda bem mais esquecidos desse animal que digere que só está feliz deitado. Platão, de mil maneiras, e sem nenhuma preparação, expõe-nos o nosso lote; aqui muitas vezes violento, feridor, ofensivo; atento, parece-me, a desagradar, pela viva pintura dos movimentos súbitos, os quais, se bem que participando do mais alto da alma, não importa, não mexem menos, nesse turbilhão indivisível, toda a vasa marinha sobre a qual repousa a nossa transparência. Há pior do que Hipotales vermelho e suado; há o Cármides, onde o próprio Sócrates ressente um choque confuso, e, coisa que importa saber, é todo empolgado por um celeste desejo, por uma incorporal amizade. Não pode ser de outra maneira porque a nossa alma, no seu movimento imitado das esferas superiores, não deixa de nos arrastar e de formar, com grande perigo, uma argila pesada. As doces lágrimas, dizia eu, o testemunham; ora este suor de lágrimas sublimes é da mesma água e do mesmo sal que todo o suor. Platão toma o homem tal como o encontra, abaixo dele mesmo e sem limites que se possam marcar, desde que ele não está em cima. Se, pela mudança dos costumes, Platão vos afecta escandalosamente, e abaixo do que pensais poder ser, a advertência não é senão mais forte. Seguindo Platão que nunca mentiu, que me descreveu a mim mesmo tal como posso ser e pior, e que, tal como sou, me reconheceu imortal, escrevi pois à frente deste capítulo o nome de Alcibíades, mau companheiro.
Sócrates amava-o. Sócrates amava-o porque ele era belo. Mas não tenhais receio. Sócrates é grande e puro. Sócrates salvou-se todo; quem não se salva todo não salva nada. Somente é preciso não ler primeiro o Banquete, escandalosa mistura. Todavia àqueles que se surpreenderiam com o Banquete, como àqueles que creriam aqui descer abaixo de si mesmos, eu pergunto o que é que se faz num banquete, o que trituram os fortes dentes, de que óleo espesso se alimenta essa chama do pensamento. Mas uma vez que o comum dos homens não está disposto como Sócrates, a esvaziar a grande taça de oito cótilos sem se embriagar, eu aconselho a ler antes o Primeiro Alcibíades, sempre novo para todos, porém, bastante familiar também, pois que aí se vê a mais brilhante virtude acabar mal, depois de ter brilhado um momento sobre a aparência política. Vê-se aí Sócrates que perseguia Alcibíades com os seus olhos fixos e maravilhados. É que a beleza é um sinal de sabedoria; e todos o sabem; todos compreendem o que a miraculosa Grécia não cessa de dizer pelas suas estátuas. Mas uma estátua é apenas mármore. Quanto mais emocionante não é o homem na sua flor, quando, pelo menor dos seus traços, ele anuncia um justo equilíbrio, e a participação de todos os membros no espírito governante! Milagre, anunciação. Assim Sócrates segue com os olhos essa forma perfeita, espiando essa alma, admirando esse crédito maravilhoso, essa graça, essa marca de Deus. Atento, e não sem censura; Alceste na mesma; porque todo o homem pressente que uma grande alma é também algo de ameaçador, e de poderosa ruína. Assim Sócrates olha para ele, Sócrates que não teve esta graça de ser belo. Eu ousaria dizer que ele olha com uma espécie de nobre ciúme. Tudo prometer, e tudo recusar! Primavera, esperança do mundo, e já glacial decepção. Sabe-se que a vida de Alcibíades foi primeiro frivolidade, corrupção, vaidade proverbial; e que no fim, intrigas, baixezas, traições, foi a mais desprezível talvez de toda a história. Compreendo que Alcibíades perguntasse, com uma espécie de impaciência e talvez de vergonha: “Sócrates, que me queres tu?” Por isso esta conversa tão jovem soa como a derradeira conversa. Alcibíades faz luzir a última esperança, por uma curiosidade viva e forte; e Sócrates também dá a última advertência. No Banquete, agora, Alcibíades responde com esse sublime elogio erguendo-se do inferno, e que eu creio inútil citar. “Esta minha forma prometia de mais.” Assim, diante de algum Sócrates rústico, falou mais de um filho do sol, antes de se precipitar. O leitor sente aqui como no seu rosto este ar da manhã que Sócrates respira, quando sai puro dessa embriaguês, e volta à sua vida habitual. Foi por uma dessa manhãs, aposto, que Platão deixou a política.
Tendo colocado tudo no lugar tanto quanto pude, não posso agora enganar-me sobre esse discurso do Banquete, nem sobre essa mitologia de Aristófanes, o homem das Nuvens, nem sobre esse discurso mais especioso de Pausânias, opondo a Vénus terrestre à Vénus Urânia. Fedro continua a esperar. Fedro não foi liberto desta emoção sublime que visa demasiado alto e demasiado baixo. Agora Sócrates fala, e este conto de mulher do povo que ele nos relata reúne o céu e a terra. Só há um amor, filho de Riqueza e de Pobreza, natureza misturada. Pobreza, porque procura, beleza, sabedoria, não a tem. Mas Riqueza, porque estes altos bens, num sentido, ele os tem; como se pode dizer que aquele que procura não é completamente ignorante; aquilo que procura, ele tem-no. Riqueza; por isso não nos devemos admirar se os primeiros movimentos do amor, diante do enigma da beleza, estejam como que sobrecarregados de pensamentos. E só isso mostra que o deseja não é o amor. Mas a cólera, mais nobre do que o desejo, não é também o amor. O que é procurado, e raramente encontrado, é o outro espírito, o semelhante e outro, procurado pelos maiores sinais, nesse tumulto logo ambíguo, em que o orgulho, o pudor, a decepção, o aborrecimento entrecruzam as suas mensagens. O que é amado, é o universal; é o incorruptível; sim, nesses corpos semelhantes ao de Glauco o marinheiro, todo recoberto de lama e de conchas. Compreendamos que mais uma vez Platão reúne; que Platão só nos fala a nós, e de todos os nossos amores. Mas é preciso insistir um pouco, pois que os homens não acreditam nisso, ou então, se acreditam, logo querem saltar fora deles mesmos. Sim, nestas crianças, que tão bem testemunham, que esclarecem tão bem o Amor cego, que procuramos e que amamos nós senão os sinais do espírito? Que procuramos senão o eterno, nesta duração da espécie que é a metáfora do eterno? Mas mesmo no primeiro amor, tão carregado de desejo, que procuramos nós? De modo nenhum a captura violenta, nem o prazer roubado. Não; mas confiança, mas consentimento, mas acordo livre. Sim, cada um o quer livre; cada um quer uma promessa de espírito. E. depois da beleza, que é o primeiro sinal, ainda outros sinais do entendimento e da aprovação. Um duplo aperfeiçoamento que encarece os elogios e que cumpre as promessas. Donde o amante quer engrandecer aquela que ama, e primeiro crê que é tal como a quer, e ela, ele. Dois espíritos livres, felizes, salvos. Não há uma palavra de amor que não dê este som; não há uma violência, um desejo nu, um acto de senhor, que não seja uma ofensa ao amor. Por isso não há amor que receie o tempo e a idade, e que não ultrapasse os primeiros sinais. Esta espécie de culto, que a morte não interrompe, é talvez o pai de todos os cultos e de todas as religiões. O amor terrestre vai pois naturalmente ao amor celeste, por esta fé no espírito, que procura e que encontra o pensamento no outro. E, pelo contrário, se a união dos corpos não alcançar servir em comum o espírito, o melhor que se sabe entendê-lo, é prontamente amor rompido e querela miserável. Assim cada um sabe bem que todo o amor é platónico, e é talvez Alcibíades caído que o sabe melhor. Donde veio a Platão esta glória difusa, que ele partilha com os estóicos, de ter enriquecido com o seu nome próprio a linguagem comum.
(Lísias)
Toda a gente crê saber o que é o amor platónico, e, bem melhor, toda a gente o sabe. Este culto espontâneo, raro, infalível, que fez dum nome próprio uma palavra usual da linguagem comum, mostra-nos o centro do sistema. Nós olhamos, e não sabemos bem onde bater. O amor do bem é universal, mas vai direito ao seu objecto através do vazio; o amor do bem não faz nada. O amor do belo está mais próximo da terra; agarra-se-nos mais ao corpo; as doces lágrimas o testemunham; o bem aqui ele mesmo tem um corpo; o bem toca-nos; admirai esta imperiosa metáfora. Todavia, estamos ainda muito longe de Hipotales passando por todas as cores; estamos muito longe desses ciclones de sangue e de humores que dão a conhecer os amorosos. Pensai no despeito, na cólera, no delírio, nesse corpo que se enrosca, em vez de dormir, como uma serpente cortada. Tal é a prova de todos, e cada um compreende o hino: “Eros, invencível aos homens e aos deuses.” Ora eu creio que é preciso olhar de perto estes impetuosos movimentos que resultam, no corpo humano, dum tão ligeiro toque, da visão, e as mais das vezes duma imagem fugitiva. Ninguém explicaria esta perturbação estranha pela atracção dum prazer; cada um estima por um olhar justo o imenso espaço que se estende entre o desejo e o amor. Todos esses dramas que se lêem, que cada um receia para si, e esse nariz de Cleópatra, tudo isso está muito longe dum prazer curto e animal. Tudo isso é de alma, e mesmo de espírito. Nesta ambição de agradar, e de agradar ao ser mais alto e mais difícil, ao ser que se quer tal, mostra-se logo a mais nobre ambição, que procura o semelhante mais alto do que si, e que se lhe quer juntar. Alceste sofre por Celimene ser vulgar e baixa; ele qué-la sublime; pressente-a tal. É dum espírito que quer louvor, e livre louvor. É decerto belo de ver, esforçando-se em todas as suas acções por merecer esse elogio que ele espera; mas a Celimene faltou a coragem. Ora, uma vez que o teatro testemunha para todos, é evidente que para o juízo dos filhos da terra todo o amor é celeste, todo o amor é platónico. Assim, dum olhar, e bem facilmente, nós percorremos toda a extensão deste grande tema.
Mas demasiado depressa, sem dúvida; demasiado facilmente esquecidos desse animal rugidor e de pé; ainda bem mais esquecidos desse animal que digere que só está feliz deitado. Platão, de mil maneiras, e sem nenhuma preparação, expõe-nos o nosso lote; aqui muitas vezes violento, feridor, ofensivo; atento, parece-me, a desagradar, pela viva pintura dos movimentos súbitos, os quais, se bem que participando do mais alto da alma, não importa, não mexem menos, nesse turbilhão indivisível, toda a vasa marinha sobre a qual repousa a nossa transparência. Há pior do que Hipotales vermelho e suado; há o Cármides, onde o próprio Sócrates ressente um choque confuso, e, coisa que importa saber, é todo empolgado por um celeste desejo, por uma incorporal amizade. Não pode ser de outra maneira porque a nossa alma, no seu movimento imitado das esferas superiores, não deixa de nos arrastar e de formar, com grande perigo, uma argila pesada. As doces lágrimas, dizia eu, o testemunham; ora este suor de lágrimas sublimes é da mesma água e do mesmo sal que todo o suor. Platão toma o homem tal como o encontra, abaixo dele mesmo e sem limites que se possam marcar, desde que ele não está em cima. Se, pela mudança dos costumes, Platão vos afecta escandalosamente, e abaixo do que pensais poder ser, a advertência não é senão mais forte. Seguindo Platão que nunca mentiu, que me descreveu a mim mesmo tal como posso ser e pior, e que, tal como sou, me reconheceu imortal, escrevi pois à frente deste capítulo o nome de Alcibíades, mau companheiro.
Sócrates amava-o. Sócrates amava-o porque ele era belo. Mas não tenhais receio. Sócrates é grande e puro. Sócrates salvou-se todo; quem não se salva todo não salva nada. Somente é preciso não ler primeiro o Banquete, escandalosa mistura. Todavia àqueles que se surpreenderiam com o Banquete, como àqueles que creriam aqui descer abaixo de si mesmos, eu pergunto o que é que se faz num banquete, o que trituram os fortes dentes, de que óleo espesso se alimenta essa chama do pensamento. Mas uma vez que o comum dos homens não está disposto como Sócrates, a esvaziar a grande taça de oito cótilos sem se embriagar, eu aconselho a ler antes o Primeiro Alcibíades, sempre novo para todos, porém, bastante familiar também, pois que aí se vê a mais brilhante virtude acabar mal, depois de ter brilhado um momento sobre a aparência política. Vê-se aí Sócrates que perseguia Alcibíades com os seus olhos fixos e maravilhados. É que a beleza é um sinal de sabedoria; e todos o sabem; todos compreendem o que a miraculosa Grécia não cessa de dizer pelas suas estátuas. Mas uma estátua é apenas mármore. Quanto mais emocionante não é o homem na sua flor, quando, pelo menor dos seus traços, ele anuncia um justo equilíbrio, e a participação de todos os membros no espírito governante! Milagre, anunciação. Assim Sócrates segue com os olhos essa forma perfeita, espiando essa alma, admirando esse crédito maravilhoso, essa graça, essa marca de Deus. Atento, e não sem censura; Alceste na mesma; porque todo o homem pressente que uma grande alma é também algo de ameaçador, e de poderosa ruína. Assim Sócrates olha para ele, Sócrates que não teve esta graça de ser belo. Eu ousaria dizer que ele olha com uma espécie de nobre ciúme. Tudo prometer, e tudo recusar! Primavera, esperança do mundo, e já glacial decepção. Sabe-se que a vida de Alcibíades foi primeiro frivolidade, corrupção, vaidade proverbial; e que no fim, intrigas, baixezas, traições, foi a mais desprezível talvez de toda a história. Compreendo que Alcibíades perguntasse, com uma espécie de impaciência e talvez de vergonha: “Sócrates, que me queres tu?” Por isso esta conversa tão jovem soa como a derradeira conversa. Alcibíades faz luzir a última esperança, por uma curiosidade viva e forte; e Sócrates também dá a última advertência. No Banquete, agora, Alcibíades responde com esse sublime elogio erguendo-se do inferno, e que eu creio inútil citar. “Esta minha forma prometia de mais.” Assim, diante de algum Sócrates rústico, falou mais de um filho do sol, antes de se precipitar. O leitor sente aqui como no seu rosto este ar da manhã que Sócrates respira, quando sai puro dessa embriaguês, e volta à sua vida habitual. Foi por uma dessa manhãs, aposto, que Platão deixou a política.
Tendo colocado tudo no lugar tanto quanto pude, não posso agora enganar-me sobre esse discurso do Banquete, nem sobre essa mitologia de Aristófanes, o homem das Nuvens, nem sobre esse discurso mais especioso de Pausânias, opondo a Vénus terrestre à Vénus Urânia. Fedro continua a esperar. Fedro não foi liberto desta emoção sublime que visa demasiado alto e demasiado baixo. Agora Sócrates fala, e este conto de mulher do povo que ele nos relata reúne o céu e a terra. Só há um amor, filho de Riqueza e de Pobreza, natureza misturada. Pobreza, porque procura, beleza, sabedoria, não a tem. Mas Riqueza, porque estes altos bens, num sentido, ele os tem; como se pode dizer que aquele que procura não é completamente ignorante; aquilo que procura, ele tem-no. Riqueza; por isso não nos devemos admirar se os primeiros movimentos do amor, diante do enigma da beleza, estejam como que sobrecarregados de pensamentos. E só isso mostra que o deseja não é o amor. Mas a cólera, mais nobre do que o desejo, não é também o amor. O que é procurado, e raramente encontrado, é o outro espírito, o semelhante e outro, procurado pelos maiores sinais, nesse tumulto logo ambíguo, em que o orgulho, o pudor, a decepção, o aborrecimento entrecruzam as suas mensagens. O que é amado, é o universal; é o incorruptível; sim, nesses corpos semelhantes ao de Glauco o marinheiro, todo recoberto de lama e de conchas. Compreendamos que mais uma vez Platão reúne; que Platão só nos fala a nós, e de todos os nossos amores. Mas é preciso insistir um pouco, pois que os homens não acreditam nisso, ou então, se acreditam, logo querem saltar fora deles mesmos. Sim, nestas crianças, que tão bem testemunham, que esclarecem tão bem o Amor cego, que procuramos e que amamos nós senão os sinais do espírito? Que procuramos senão o eterno, nesta duração da espécie que é a metáfora do eterno? Mas mesmo no primeiro amor, tão carregado de desejo, que procuramos nós? De modo nenhum a captura violenta, nem o prazer roubado. Não; mas confiança, mas consentimento, mas acordo livre. Sim, cada um o quer livre; cada um quer uma promessa de espírito. E. depois da beleza, que é o primeiro sinal, ainda outros sinais do entendimento e da aprovação. Um duplo aperfeiçoamento que encarece os elogios e que cumpre as promessas. Donde o amante quer engrandecer aquela que ama, e primeiro crê que é tal como a quer, e ela, ele. Dois espíritos livres, felizes, salvos. Não há uma palavra de amor que não dê este som; não há uma violência, um desejo nu, um acto de senhor, que não seja uma ofensa ao amor. Por isso não há amor que receie o tempo e a idade, e que não ultrapasse os primeiros sinais. Esta espécie de culto, que a morte não interrompe, é talvez o pai de todos os cultos e de todas as religiões. O amor terrestre vai pois naturalmente ao amor celeste, por esta fé no espírito, que procura e que encontra o pensamento no outro. E, pelo contrário, se a união dos corpos não alcançar servir em comum o espírito, o melhor que se sabe entendê-lo, é prontamente amor rompido e querela miserável. Assim cada um sabe bem que todo o amor é platónico, e é talvez Alcibíades caído que o sabe melhor. Donde veio a Platão esta glória difusa, que ele partilha com os estóicos, de ter enriquecido com o seu nome próprio a linguagem comum.
Alain
(Tradução de José Ames)
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