XI
“O vício não poderia conhecer a virtude nem conhecer-se a si mesmo.”
(A República)
Depois de todos estes desvios e desta longa exploração dos campos Elísios, que estão aqui em baixo, e dessas sombras lamentosas que são estes homens e nós, eis que a sabedoria esclarece um pouco essas existências errantes e tacteantes; eis que suspeitamos um pouco de que é que elas se queixam, a quem elas acusam, e o género de salvação que esperam. Os pequenos leões perguntavam: “Não pode o injusto ser feliz?” Mas quem responderá? Se percorro o Estado tirânico, encontrarei sinais de felicidade, e mesmo arrogantemente erguidos, porque os impudentes desejos são senhores das ruas. É verdade também que os sábios estão na prisão; mas eu não os vejo. Não é o mesmo para a alma injusta? Porque também ela meteu a sabedoria no calabouço, e mesmo esqueceu-a aí. Uma tal alma jamais conheceu, nem sequer suspeitou, a felicidade do sábio. Por isso, esta espécie de furor que a toma, pode ser que lhe chame felicidade e até que negue de boa fé que haja uma outra felicidade. Mas é dizer demasiado sem dúvida. Não mais na alma tirânica do que no Estado tirânico há permissão de pensar. O homem desejo e o homem cólera são homens sem cabeça. Eles não pensam nada; com certeza não pensam que pensam. Num sentido, têm consciência de ser o que são; mas consciência turva, meio adormecida, esquecida, e como que cortada em postas. Será que a cólera se julga a ela mesma e sabe que é cólera? O desejo, que corre e se lança, sabe ele que corre e se lança? Um homem rico, e que vive como rico, julga-se ele? Todas estas vidas são arrebatadas e mecânicas. Elas vivem dos sinais que lhes lançam. Como Orion na necromancia da Odisseia, sombra de caçador perseguindo sombras de animais.
Há no entanto injustos que se lamentam, e que se dizem infelizes. Felizes, dizia Sócrates, se o choque da desgraça os advertisse. Feliz aquele que é punido. Mas é aqui que é preciso observar as sombras, e rever em pensamento todos os graus do saber. A opinião nunca julga pela ideia. O ambicioso desiludido que falhou, entendei, que tentará ainda a mesma mentira, as mesmas intrigas; a desgraça confirma-o. O malevolente na mesma; ele procura uma nova astúcia, qualquer outra manobra; espera uma ocasião melhor, e despreza um pouco mais. Um avarento roubado queixa-se de ter sido roubado, não se queixa de ser avaro. O tirano por sua vez aprisionado só pensa em tirania e prisão. O tirano expulso levanta um outro exército. E o vaidoso humilhado sonha com a vaidade triunfante. O que eles esperam vale à justa o que perderam. Deixai-os descer.
Na verdade, só o sábio, comparando as três vidas, de desejo, de poder, e de saber, pode julgar sãmente; porque ele conhece as três. A cabeça nunca devora o resto. Ele não ignora o prazer do ventre; cada dia a ele cede; mas retira-se e julga. Não ignora o prazer do coração; a cada minuto se prende aí e se desprende. Ele nomeia-os a um e a outro, ordena-lhes, salva-os; a sua justiça própria consiste nisso. É ele pois que é juiz. Os desejos e as cóleras, algumas vezes, cansados de rivalizar, esperam alguma ordem melhor em que o justo seja rei. É assim que a alma batida pela desgraça se representa uma outra vida, algum Minos, Éaco, ou Radamanto que o ensinará, explicando-lhe o seu infortúnio pela ideia, e acrescentando ainda um pouco de sofrimento para a desviar de provar sempre do mesmo prato. Haveria pois alguma esperança para todos?
Não há esperança. O sábio deixa-nos connosco. Deus deixa-nos connosco. Nem um nem o outro nos fazem a graça de nos punir. Deus, como significa o Timeu, é apenas ordem e sabedoria nesses movimentos profundamente justos, inumanamente justos, que acabam as nossas acções. “Justa e perfeita é a roda”, como diz o outro. Os efeitos respondem às causas, e cada um tem justamente aquilo que queria, embora muitas vezes não o reconheça de todo. O violento tem violência, e lamenta-se. Mas o que esperava ele? É preciso enfim julgar essas loucas esperanças e esses medos loucos, que adiam a justiça. Por muito tempo que possamos viver, será como agora.
O movimento natural da imaginação poética é fingir tempos melhores, seja atrás de nós, os quais, por nossa falta, não soubemos usufruir, seja à nossa frente, e onde discernimos uma espécie de recompensa. Uma certa oscilação é sempre a lei da imaginação, pois que em todos os seus movimentos a vida imita as voltas e as compensações celestes. Na provação pensa-se na felicidade; pelo contrário, a felicidade teme e inventa catástrofes. De qualquer modo, é uma outra vida que assim se pensa, outras situações, outras oportunidades. Não se ousa confessar, que se quereriam os prazeres do vício em recompensa da virtude, nem o poder de desprezar como consolação das dores do humilhado; mas esta confusa ideia mostra-se sempre muito e demasiado nas nossas preces. Porque é a inclinação comum relacionar a felicidade e a infelicidade com os encontros, as asperezas de homens e de coisas, a enfermidade do corpo. Neste jogo da outra vida, seja quando se a lamenta, seja quando se a espera, a intenção é sempre cumprida e purificada de sobressaltos, por uma atenção das coisas; e é o que se chama uma melhor sorte. E este mesmo poder, esta providência fora de nós, da mesma maneira que completa as almas benevolentes e fracas, corrige também os maus por uma escolha de circunstâncias, distribui aos despreocupados os tesouros do avaro, e eleva ao poder aquele que temeu, enquanto que o tirano é por sua vez escravo ou prisioneiro. São outros tempos, são outras leis; são graus de purificação pela experiência; são lições pela opinião e pela percepção; mundos mais bem feitos, ó Timeu! Todavia a imaginação popular pressente que a alma resistirá aos efeitos, e não será mudada tão depressa. Porque se vê que a perda não cura o jogador, nem a decepção o ambicioso. Donde essas durações imensas, esse crédito de mil anos e de mais mil anos que se acorda a esse progresso providencial, de que a política é como que a imagem. Estas visões de terra prometida flutuam entre céu e terra, como se a poesia tivesse a seu cargo ornamentar as nossas vidas medíocres, adiando e prometendo, prometendo sempre que a opinião valerá ciência. Decerto Platão desenrolou esta poesia, como em sacrifício a essa vida inferior que nós não podemos cortar de nós, e que é bem preciso divertir. Notemos que ele a desenrolou toda e até chegou a desencorajar os imitadores, talvez para usar em nós e esgotar esse prazer fácil de multiplicar os tempos. Mas é preciso não esquecer também que Platão não queria amar os poetas. É duro ver que Homero é expulso duas vezes de A República; com honra, com pena, mas expulso. Querer-se-ia sempre, e é o lote do homem, ganhar ao severo entendimento, e acomodar-se com as provas de opinião, mais clementes. Mas eis aqui uma grande e terrível prosa. Na conclusão de A República, tudo é esclarecido, e todos os tempos são reunidos num momento eterno.
Er, é o homem que foi ver. Tomado por morto, conduzido a Plutão, reconhecido vivo e reconduzido, ele conta o que viu lá em baixo. O que é que ele viu? Primeiro, o espectáculo da necessidade, e os verdadeiros fusos das Parcas, que são as sete órbitas dos corpos celestes segundo a lei. Mas sobretudo um juízo estranho, e que começa por uma grande voz que diz: “Deus está inocente.” Depois disso, diante das almas que vão voltar à vida, são lançadas sortes no prado, que são como embrulhos; aqui uma tirania, com tudo o que a acompanha, suspeitas, morte violenta, e o resto; ali, uma vida de agricultor, útil, ignorada, ocupada; e assim todas as espécies de destinos. As almas são convidadas a escolher segundo uma ordem ao acaso. Mas não receeis; se se encontrar uma alma sábia entre as últimas, encontrará ainda um bom destino; porque quase todas escolhem mal. E como seria de outra maneira, pois que as mais das vezes elas não têm experiência duma vida humana? Como dirá Aristóteles, é ao atleta que agradam as lutas, é ao geómetra que agradam as provas, e é ao homem de bem que agrada a virtude. Todavia, pois que elas estão privadas, na maior parte, do conhecimento pela ideia, falta-lhes ainda outra coisa; elas não têm qualquer explicação para a sua desgraça pelas verdadeiras causas. Elas crêem que um tirano é muito imprudente se não faz amigos; não sabem que um tirano não tem amigos. Se o glorioso é humilhado, se o pretensioso é tolo, se o ciumento é enganado, elas não vêem como é que os efeitos resultam das causas nesses destinos; mas antes crêem que tiveram pouca sorte, ou que pecaram por ligeireza e falta de atenção. E os que têm um carácter difícil, e são repelidos em todo o lado, tomam de facto a resolução de melhor escolher os seus amigos, nessa nova vida em que vão entrar. Por isso como estão agitadas, essas almas, pela ideia de escolher, de recomeçar tudo de novo, de tudo mudar, mas sem se mudarem! Adivinhais que, por falta de luzes da sabedoria, todos esses caracteres reunidos ali escolhem ser de novo como eram; assim o bêbedo escolhe beber, e o jogador, jogar, e o ambicioso, reinar, e o insolente, desprezar, pensando todos evitar as consequências do que são como se evita um limite ou um fosso. Eu abrevio com pena. Era preciso transcrever, porque este conto é sem dúvida o mais belo conto. Er viu, entre outras coisas, que a alma de Ulisses, que tanto vira e reflectira, não escolhia muito mal. Mas bem ou mal escolhido, é escolhido sem remissão. Cada um trazendo o destino da sua escolha ao ombro, conduzem-nos então ao rio Esquecimento, onde todos bebem. E ei-los de novo sobre a terra, exercendo a sua vã prudência, e acusando os deuses. Trabalhemos, diz Sócrates depois deste conto, trabalhemos em pensar direito, a fim de fazer uma boa escolha. Com este conselho se fecha A República.
Platão agora fechado, cabe-nos, penso eu, apreender pelo melhor o sentido deste conto. Porque nós percebemos, na nossa sinuosa viagem, mais de um clarão que nos mostrou o homem e a condição humana. Começamos a saber um pouco que Platão não mentiu. Suspeitamos que esta mistura de razão e de imaginação, que este sorriso e estes contos de mulher do povo, são justamente o que convém à nossa natureza encadeada. Pela virtude deste conto, os nossos pensamentos estão de pé, entendo aqueles que dormiam. Talvez se tenha compreendido, depois de tudo o que precede, que não é a nossa razão que tem tanta necessidade de razão. Aproveitemos pois a ocasião para fazer duas ou três observações, muito perto de terra, e que nos farão entender que este conto é bom para todos.
Primeiramente, eu noto que as nossas escolhas estão sempre feitas. Deliberamos depois de ter escolhido, porque escolhemos antes de saber. Seja uma profissão; como é que se escolhe? Antes de a conhecer. Onde, vejo uma negligência alerta, e uma espécie de embriaguês em se enganar, como algumas vezes nos casamentos. Mas vejo também nisso uma condição natural, pois que só se conhece bem um ofício depois de o ter feito por muito tempo. Em resumo, a nossa vontade empenha-se sempre, por muito razoável que seja, em salvar o que pode duma escolha que em nada foi razoável. Assim as nossas escolhas estão sempre atrás de nós. Como o piloto, que se arranja com o vento e a vaga, depois de ter escolhido partir. Mas digamos também que quase nenhum de nós abre o embrulho quando o podia fazer. E é verdade que cada um à nossa volta acusa o destino duma escolhe que ele mesmo fez. A quem não poderíamos dizer: “ Foste tu que o quiseste”, ou então, conforme o espírito de Platão: “Estava no teu embrulho”?
Ninguém nos vai crer. Essa escolha está esquecida. O rio Esquecimento não cessa de passar, e ninguém cessa de beber dele. Uma pretensão espantosa do homem é de ter uma boa memória, e de contar exactamente como, palavra puxa palavra, tudo aconteceu. Ninguém pode remontar ao começo; ninguém pode arrepiar caminho. Aquilo a que chamamos recordações, são os nossos pensamentos de agora, as nossas censuras de agora, a nossa defesa de agora. O que faz com que não tenhamos nunca uma recordação pura, é que nós sabemos o que veio a seguir. Assim, só temos de nos haver com o agora, e ele passa. A nossa vida passada é-nos tão desconhecida como essas vidas anteriores o são às almas depois de terem bebido do rio Esquecimento. E é verdade que vivemos milhares de vidas, e fizemos milhares de escolhas, das quais a custo sentimos atrás de nós a presença e em conjunto a ausência, e o inexplicável peso. Nada de nós é passado. O já feito pressiona-nos e corre diante de nós. Por muito estranha que seja esta condição, é bem a nossa. “Já não é tempo”, é a palavra dos dramas; e se pudéssemos remontar de instante em instante, a cada instante essa mesma palavra se teria de dizer: “Já não é tempo.” Em vão, pois, tentaremos remontar. Se há um remédio, e nós vivemos por sabermos que existe um, esse remédio está em saber estas coisas mesmas, mas segundo a essência, que não é passado, que não passa. Por exemplo, essa longa conversa de A República, se a tiverdes de novo convosco, em vós mesmos, Sócrates eterno em vós, e Platão, eterno em vós, ambos dominando dos seus círculos irrepreensíveis, como o deus do Timeu, se, digo eu, conduzirdes essa conversa, em vez de quererdes recuperar o que acaba de passar, é a melhor preparação para essa escolha, depois para essa outra, pelas quais, daí a pouco, ficareis comprometidos. Tudo é irreparável, neste sentido de que é vão querer que as nossas escolhas passadas tenham sido outras; mas, enquanto recriminais, outras escolhas de instante em instante vos são propostas, pelas quais tudo pode ainda ser salvo. Porque nós não paramos de continuar, e a maneira de continuar faz mais do que a escolha. O agricultor não escolhe ser agricultor, mas escolhe desbravar aqui, drenar acolá. Caminho feito, escolhe colocar pedras ou rodar esmagando a lama. E aquele que é casado também não escolhe estar casado, mas escolhe ser paciente, indulgente, justo, ou o contrário. Num sentido, ninguém começa; mas, noutro sentido, todos recomeçam. Assim esta cena que conta Er, o ressuscitado, é de todos os nossos momentos. É sempre bom fazer uma boa escolha, e o pior nunca é o único que pegar. Mas notei que aqueles que não pensam segundo a essência, entendei o saco, esta sociedade do sábio, do leão e da hidra, e que não desenharam antecipadamente em ideia a forma pelo menos do que pode resultar disso, notei que esses são sempre apanhados, a despeito duma longa experiência. Como aquele que não está encolerizado, crê de boa fé que nunca será dominado pela cólera; e aquele que comeu bem não crê que terá fome. O que se vê que acontece aos outros e a si não adverte nada, mas choca somente. Assim, em vez do eterno avanço daquele que sabe, o eterno atraso do que se lamenta.
Reparando bem, depende de nós juntar essas aparências do tempo num pensamento fora do tempo, o que é pensar. Cada momento é todo nosso, e cada momento basta; é bem preciso, sem o que, como diz Heraclito, nós vivemos a morte dos deuses, sombras caçadoras de sombras.
Tudo é Elísio e já morto nesta vida, se vivermos segundo a opinião. Mas há outra coisa, e o espírito mais positivo não o pode negar; porque, se tudo passasse, quem saberia que tudo passa? Assim o teu amor muda e passa, mas somente pelo amor que não passa; e, pela coragem que não passa, passa e torna-se a coragem; eis por que mais uma vez as nossas inumeráveis vidas são eternamente nossas. Esta grande ideia foi desenvolvida pela revolução cristã, e cem vezes retomada, até à palavra de Spinoza o imóvel. “Nós sentimos e experimentamos que somos eternos.” Mas sempre queremos procurar o eterno algures que não aqui; sempre voltamos o olhar do espírito para qualquer outra coisa que não a presente situação e a presente aparência: ou então esperamos morrer, como se todo o instante não fosse morrer e reviver. A cada instante uma vida nova nos é oferecida. Hoje, agora, imediatamente, só podemos pegar por aí. O que farei amanhã, não o posso saber, porque não estou no amanhã. O que posso fazer de melhor pelo amanhã, é ser sábio, temperante, corajoso, justo, hoje. E o passado, também não é meu. E até, coisa digna de atenção, só por este louco pensamento de que me possui é que ele me possui; porque o eterno movimento do Timeu faz-nos dias novos e minutos novos. Mas a nossa falta é tentar uma vez mais a velha astúcia, esperando em que Deus mudará. Eis por que me afeiçoei ao conto de ER, e quis fazer por mim essas escolhas eternas, e esse juízo, em todos os sentidos da palavra, de mim por mim mesmo a cada instante. A fim de que tu, leitor, e eu, sejamos dignos de Platão pelo menos um belo momento. Porque esta presença do eterno e ouso dizer esta familiaridade com o eterno, enfim esse outro mundo que é o mundo, e essa outra vida que é esta vida, é propriamente Platão. E este sentimento, que eu quis despertar, que é como um celeste amor das coisas terrestres, não soa em nenhum outro como nele.
Alain
(Tradução de José Ames)
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