quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

CÁLICLES

VIII



“Não é porque se receia cometê-la, mas porque se receia sofrê-la que se censura a injustiça.”
(A República)



Trata-se agora do justo e do injusto, e não para amanhã. Não para os outros, não a respeito dos outros. Não. Cada um encerrado na sua forma e reduzido a si, cada um tem o que baste de si próprio, o bastante para se salvar. Entre os loucos ou entre os sábios, não importa. Se a tua justiça dependesse do vizinho, tu poderias esperar; gostarias talvez de esperar. Sem dúvida é bom, a fim de corrigir esta ideia em toda a sua força, deixar agora Deus como ele nos deixa, repetindo esta palavra de Marco Aurélio: “ Mesmo que o universo estivesse entregue aos átomos, que esperas para pôr ordem em ti?” Esta ideia estendeu-se, mas também se dispersou, separada das suas fortes razões; tão velada hoje como nesses tempos pelo nevoeiro político. Eis por que o primeiro erro, e de grande consequência, é crer que A República é um tratado de política; este erro será corrigido; mas é preciso começar pelo Górgias. Aqui se encontra a mais forte lição de política, tão forte que os mais fortes a custo ousariam seguí-la. Por uma vez o ambicioso falou.

Mas a fim de imitar passavelmente esse ar de sabedoria, essa impaciência, essa ironia, essa bonomia, esse cinismo, enfim a importância apoiada na instituição, seria preciso reunir o círculo de sofistas, entendei homens de Estado, advogados, juristas, críticos, onde se veria Protágoras o profundo, Górgias o indiferente, Pólos o brilhante, Pródicos o subtil, Cálicles o violento, Trasímaco o espesso, e ainda Hípias o ingénuo, Íon o vaidoso, aos quais se juntaria Laques e Clínias, generais do exército, homens de mão e de empreendimento. Enfim, reunir o congresso do pensamento. E seria preciso mesmo formar com todos esses rostos um único rosto, em que a cortesia, o espanto, a impaciência e o aborrecimento passassem cada um por sua vez como nuvens sobre posições inexpugnáveis, enquanto Sócrates, na sua busca do homem, e tomando por verdadeiras estas forças, mais uma vez procurasse acordo e pensamento comum. Ora, naquilo que ele diz, há coisas que são evidentes, sobre o bem e o útil, porque são palavras que ninguém despreza; também sobre a coragem, a temperança, a sabedoria; porque estes homens de experiência não vivem à maneira dos animais, mas estimam muito pelo contrário um regime de elegância, de segurança, e de força governada, de que as estátuas dos Deuses são as justas imagens. Todavia, Sócrates dizendo que vale mais ser justo do que poderoso vai um pouco longe, embora isso seja fácil de dizer e de fazer crer. Sócrates dizendo que vale mais ser justo e passar por injusto do que ao contrário ser injusto e passar por justo, Sócrates desta vez vai demasiado longe, porque é desprezar a opinião, e isso não se deve dizer nem fazer crer. Mas ele diz mais; e, pelas aprovações de polidez que obteve sem dificuldade, ei-lo a provar que a pior infelicidade do injusto é não ser punido, deixando entender que a mais estrita severidade, mesmo dos Deuses, é abandonar aos seus sucessos o homem que tem êxito. Isso revolve-os até ao fundo, tanto mais que ele parece acreditar nisso; e é ainda dizer pouco; ele está, crer-se-ia, seguro disso, e seguro de que todos estão seguros disso. Aqui há excesso. Eles apercebem-se do ponto em que as sãs doutrinas, que fazem com que os homens sejam fáceis de governar, justamente por uma espécie de arrebatamento em experimentá-los e por um bocadinho de persuasão a mais, fariam com que os homens fossem impossíveis de governar. Eis pois que um pouco mais de sério se mostra no rosto impassível das forças reunidas. A força fala alto a si mesma, e retoma as coisas desde o começo.

“Certamente, diz ela, que conheço o preço da ordem e das leis. É mesmo evidente que os poderosos, mais ainda do que todos os outros homens, devem honrar a justiça; de tal maneira que se pode dizer que, homens resignados e contentes com pouco, como tu és, Sócrates, não haverá nunca que cheguem. Mas os simples cidadãos eles mesmos ganham muito em respeitar as leis; muito e mesmo tudo. Que seriam os miseráveis homens, se cada um devesse incessantemente combater a fim de conservar as suas magras provisões? Por isso é que em todo o lado os vemos associados e formando cidades que protegem os campos. E qual é a lei de toda a associação senão esta: “O que não queres sofrer, renuncia a fazê-lo sofrer aos outros”? E este pacto não podia ser recusado, porque dois homens associados são mais fortes do que um homem que pretendesse viver sozinho. Neste sentido pode-se dizer que a justiça é o que é vantajoso ao maior número, e pode-se dizer também aos mais fortes. Evidentemente o homem teria mais vantagens, parece, em agir como quisesse, em tudo seguindo os seus apetites e os seus interesses, e agarrando todos os bens que visse ao seu alcance; sim, se ele tivesse o poder de manter contra todos esta política conquistadora. Mas ninguém tem esse poder fora de sociedade; ninguém, melhor dizendo, tem qualquer poder fora de sociedade. Por isso, nesta impossível guerra de um contra todos, o homem não ia longe. Ele renuncia pois a esse bem, tão incerto, tão encarecidamente pago, sob a condição de que os outros a ele renunciem também; e todos em conjunto nomeiam juízes que têm por função constatar que cada um renuncia àquilo que proíbe ao vizinho, ou de reconduzir as revoltas à obediência; no que eles não fazem mais do que prever e antecipar os efeitos inevitáveis; não fazem outra coisa que não encurtar desordem e luta. Agora, Sócrates, presta bem atenção. Seria absurdo pensar que o homem pudesse ser justo ou injusto a respeito daqueles com quem não tem qualquer convenção, ou contrato; absurdo também querer que um homem se abstenha de fazer aquilo que ele vê os outros se permitirem. Tal é portanto a justiça segundo a lei. Mas segundo a natureza, é justo que cada um faça exactamente aquilo que pode fazer; e o limite das forças é também o dos direitos. Eis o que toda a gente sabe; Eis o que todos os sábios ensinam. Louco aquele que se pusesse em guerra sozinho contra a multidão dos homens. E todavia a natureza fala eloquentemente ao coração de todos. Porque nós vemos que o que se contenta com o poder que lhe deixam é desprezado. E pelo contrário vemos que todos os homens estimados se tornaram poderosos, seja pelos bens que amontoam, seja pelos amigos a quem se ligam, quer dizer pelas liberalidades e pela arte de persuadir. São poderosos e honrados no Estado esses que têm qualquer coisa para dar ou que sabem defender os seus amigos. E os mais ousados deles que chegam, por uma espécie de exército que têm consigo, a submeter os outros, são honrados acima de todos. Quanto àquele que não joga mais ou menos este jogo, seja porque tem medo, seja porque se deixou persuadir, é considerado como um homem de pouco, e não tem amigos. Repara; aquele que não ganha nas trocas, quer dizer que não recebe mais do que o que dá, é abertamente desprezado. Se além disso se diverte com discursos não pagos, como tu fazes, e critica uns e outros e até as leis, como tu fazes, nada é mais fácil do que acusá-lo e de prejudicá-lo, porque não prestou quaisquer serviços. E que faz ele de facto, quando desenvolve a opinião vulgar à maneira dum homem que acredita nisso de facto, senão inquietar o ambicioso, e retirar aos pobres a esperança que sempre mantêm duma ocasião ou duma reviravolta que atirará o poder para o seu lado? A comum justiça tem duas faces: tu vê-la guardando a igualdade, até ao momento em que aclama aquele que se eleva. Não pode ser de outra maneira, pois que o homem vive e pensa ao mesmo tempo segundo a lei e segundo a natureza. E talvez não exista falta que se perdoe menos do que desprezar abertamente essa justiça de dupla face, sem a desculpa, pelo menos, de ganhar qualquer coisa com isso. Toma cuidado contigo, Sócrates.”
Ora Sócrates dizia não, esforçando-se de novo por provar que o tirano é fraco e infeliz, se não consegue governar em si o medo, a cólera, e a inveja. Talvez que ele se apercebesse, como o mostra em poucas palavras no começo de A República, de que o poder está muito longe de ser sempre dispensado de justiça, e que pelo contrário uma justiça interior é a mola de todo o poder, por muito injusto que se suponha; porque, dizia ele, os ladrões não conseguirão ser injustos em relação aos outros homens senão sendo justos entre eles. Sem embargo, pode pensar-se que Sócrates, descobrindo aqui uma imensa paisagem de pensamentos, mas também uma discussão sem fim, e sentindo que as melhores razões não teriam força contra o ambicioso tanto como as piores para o abanarem a si mesmo, deseja apenas reencontrar-se em si próprio e no seu discurso. Quanto aos outros, porque foram levados a falar com mais franqueza do que de costume, e mesmo a dizerem alto claramente aquilo que não gostam muito de dizer a si mesmos, eles esgotaram o prazer do jogo. Voltam aos grandes negócios e vão esquecer Sócrates; ou então, se pensam nisso, dizem-se que um tal homem pelo seu exemplo e mesmo pelos seus discursos, é útil aos seus próprios fins. Porque é próprio do homem de Estado, como Protágoras dizia, fazer jogar o útil ou o bem, segundo o caso e segundo os homens. Assim o pensamento mais ruinoso na aparência para esta ordem de coisas, acaba sempre por a servir. O que é apoiado ao mesmo tempo pelo vício e pela virtude durará. É através de reflexões como esta, mas consigo só, que termina as mais das vezes este tipo de conversa.

Alain
(Tradução de José Ames)

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