segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A CAVERNA

V


“… a fim de que passemos do sonho à realidade da vigília.”
             (O Político)


Se olharmos pelo rebordo uma roda que gira, e que tenha num dos seus pontos um sinal, parece-nos ver o sinal ir e vir, mais depressa no meio da sua corrida, menos depressa nas extremidades; e não poderemos compreender este movimento enquanto não soubermos o que ele é na realidade, quer dizer, o movimento duma roda. É mais ou menos assim que vemos o planeta Vénus ir e vir dum lado e do outro do sol; e esta aparência é inexplicável até ao dia em que supusermos um movimento deste planeta mais ou menos circular à volta do sol. Todavia, este movimento, cuja primeira aparência é como que a sombra ou a projecção do movimento, é ele mesmo de alguma maneira ilegível, enquanto não sabemos nele reencontrar  os movimentos mais simples, de que saibamos contar a velocidade. Estranha condição a nossa! Só conhecemos aparências, e uma não é mais verdadeira do que a outra; mas, se compreendemos o que é esta coisa que aparece, então por ela,  embora não apareça nunca,  todas as aparências são verdadeiras. Seja um cubo de madeira.  Que eu o veja ou o toque, pode-se dizer que lhe tomo uma vista, ou que lhe pego por um lado. Há milhares de aspectos diferentes dum mesmo cubo para os olhos, e nenhum deles é o cubo. Não existe centro  a partir do qual eu possa ver o cubo na sua verdade. Mas o discurso permite construir o cubo na sua verdade, donde explico de seguida facilmente todas as suas aparências, e provo mesmo que elas deviam aparecer como aparecem. Tudo é falso primeiro e eu acuso Deus; mas finalmente, tudo é verdadeiro e Deus está inocente. Permito-me estas observações, que não estão em Platão, mas que ele nos convida a fazer quando compara os nossos conhecimentos imediatos a sombras; porque toda a sombra é verdadeira; mas não se pode saber em que é que é verdadeira se não se conhece a coisa  de que é a sombra. Há uma infinidade de sombras do mesmo cubo, todas verdadeiras. Mas quem, reduzido à sombra, a isso limitado, poderá compreender que estas aparências são aparências dum mesmo ser? A sombra dum esquadro será algumas vezes uma linha delgada. A sombra dum ovo será algumas vezes redonda. É da mesma maneira que uma bola que se eleva no ar, ou um pedaço de cortiça que se eleva na água, parecem completamente diferentes duma pedra que cai. Melhor, a pedra que se eleva e a pedra que cai, não é o mesmo movimento uniforme que  continua, junto ao mesmo movimento acelerado que  continua? Estes exemplos eram mal conhecidos dos Antigos, e sem dúvida também de Platão. O milagre é aqui que não cheguem toda a nossa ciência, e mesmo as suas mais profundas subtilezas, se se quer inteiramente compreender a célebre alegoria da caverna. Retenhamos o exemplo fácil do cubo, deste cubo que nenhum olho viu nem verá nunca tal como é, mas pelo qual somente o olho pode ver um cubo, quer dizer reconhecê-lo sob as suas diversas aparências. E digamos ainda que, se eu vejo um cubo, e se compreendo o que vejo, não existem aqui dois mundos, nem duas vidas; mas é um único mundo e uma única vida. O verdadeiro cubo não está longe nem perto nem noutro lado; mas foi sempre ele que fez que este mundo visível seja verdadeiro e fosse sempre verdadeiro.

Pura obra duma causa eterna.

Estas notas preliminares fazem compreender o que é o erro. Platão compraz-se em mostrar, no Sofista, e no Teeteto, que ninguém pode pensar o falso, pois que o falso não é nada. Nestes dois diálogos, como em todos, ele não se apressa em concluir; e pode-se mesmo notar que esta dificuldade não o inquieta nada. É que todos os toques são indirectos, nestas obras que visam primeiro despertar-nos. E esta impossibilidade que o erro seja não tem mais efeito se se reúnem, como é preciso, as sombras e as ideias. Porque as ideias não mudam as sombras; mas antes pelas ideias se compreende que as sombras são verdadeiras, que não há nada a mudar nelas, e, para citar um grande dito de Hegel, que este mundo nos aparece justamente como deve. Mas é o sofista que falta ao mundo. É o sofista que não quer que a aparência seja verdadeira. Os graus do saber, para dizer de outra maneira, não estão entre os objectos, uns, que são ideias, mostrando-se como que acima dos outros. De facto, não falta nada aos outros, às aparências, a não ser a reflexão do espírito sobre o que nelas pensa. O sofista percebe um cubo como nós o percebemos; mas  não quer pensar que o pensa. Assim, procurando a ideia separada, não lhe encontra objecto; e, pensando o objecto separado, não encontra a ideia. Nada é para ele; tudo é falso. Mas nada é falso. Compreende-se que a salvação do nosso pensamento não está longe de nós. O mesmo se deverá dizer, em termos mais comoventes, da salvação da nossa alma. Mas que um longo desvio, e uma espécie de viagem através do discurso, sejam aqui necessários, deveríamos sabê-lo melhor do que Platão; e, pelo contrário, parece que o sol deste tempo feliz está cada dia mais longe de nós e mais estranho. Paciência; tudo será explicado, e pelo próprio Platão. Estes preliminares são para fazer esperar a mais fina, a mais acabada, a mais profunda das lições que o homem alguma vez recebeu do homem. Julgar-se-á se é dizer de mais.

Nós somos, pois, semelhantes a cativos, nós que recebemos aqui o verdadeiro à superfície dos nossos sentidos, a cativos que estariam encadeados, com as costas voltadas para a luz, e condenados a não ver senão a parede da caverna sobre a qual passam as sombras. E descrevamos primeiro este mundo dos cativos e esta vida dos cativos nesta caverna, supondo que eles falam entre si; e não esqueçamos também que estas sombras lhes trazem prazer, dor, doença, morte, cura. Apercebemo-nos que o maior interesse destes cativos é reconhecer estas sombras, prevê-las, anunciá-las. Em primeiro lugar chamarão objectos e mundo verdadeiro a estas sombras, porque não conhecem nada para além delas. E depois se alguns, por uma memória mais sensível, reparam em certos retornos e certas semelhanças, e assim anunciam o que vai acontecer, eles chamam sábios e chefes a esses homens. Não sem disputas; não sem enganos, pois bastará que um mesmo objecto seja tomado por um novo ser, cometa, eclipse. Donde, um grande tumulto nesta prisão, espécies de provas, dos desastrados e dos hábeis, uma glória e aclamações; enfim homens que terão razão, estranha maneira de dizer, pela recordação e os arquivos, como se sabe que os Egípcios anunciavam os eclipses sem saber o que era eclipse. Grande poder, mas pequeno saber. É preciso um longo desvio antes que se saiba o eclipse, por movimentos compostos. Compreendei no entanto que, nesta prisão, e entre estes homens atados pelo pescoço, e incapazes tão-só de voltar a cabeça para as coisas verdadeiras, haverá escolas, concursos, recompensas, níveis, triunfos. Que uns vivam segundo a primeira aparência, como esses selvagens que crêem que a lua está doente, enquanto que outros, inscrevendo melhor as aparições, e como  que numa cera mais fina, conhecerão os retornos e anunciarão o terror e a alegria. Haverá uma ciência nesta caverna e institutos. Haverá mesmo uma reflexão e uma crítica. Protágoras acabará por suspeitar que está encadeado como os outros, e prová-lo-á aos seus amigos; mas ele provará ao povo, pelos efeitos, que é uma admirável coisa o saber. Sigamos a ideia; tornemo-la familiar. Haverá uma espécie de justiça nesta caverna, e uma espécie de injustiça, pela opiniões úteis ou prejudiciais; meter-se-ão sem dúvida na prisão alguns destes prisioneiros, porque terão  previsto mal o retorno das sombras.

Aqui aparecem os graus do saber. Porque estes cativos viverão quase todos segundo a natureza, quer dizer deixar-se-ão levar pelos movimentos de precaução que provoca toda a aparência, mesmo nova; dispor-se-ão como de instinto para agarrar ou para repelir, e tal será o seu pensamento. Eis o verosímil, que é o mais baixo grau do saber, e o mais baixo grau também da opinião. Mas os sofistas, nesta caverna, julgarão por mais longa memória e mesmo pelos arquivos comuns; assim perderão menos das suas forças a temer e a esperar; agirão segundo o costume, segundo o crer; e estes dois graus compõem em conjunto esse conhecimento dos cativos, que se chama opinião. E que possa existir uma opinião verdadeira, é o que é evidente,  neste sentido, que aqueles que anunciam o eclipse, conforme os arquivos egípcios, anunciam tão exactamente como aqueles que sabem o que é eclipse segundo a lei e a prova. Acima, estende-se a ciência; e já se entreviu dois graus também neste saber. Porque, aquele que compreende a prova do geómetra, está ainda muito longe de ter reflectido sobre a diferença que há entre saber e  opinião verdadeira; ele não sabe ainda o que é a ideia: ainda menos o que é  pensamento. Todavia os cativos não formarão de modo nenhum esta ciência pela sua experiência; e a razão é que a sua experiência lhes basta, como se diz que a geometria empírica bastava aos Egípcios. Será preciso então qualquer acontecimento de espírito, alguma ruptura neste costume, e a ideia espantosa de não olhar mais as sombras, mas de olhar em si. Tal é a evasão.

Portanto, eu liberto um deles; arrasto-o a meio do dia. Ele vê o fogo; vê os objectos cujas sombras eram as sombras; vê todo o universo real, e o próprio sol, pai dos fogos e das sombras. Mas admirai. Ele primeiro tapa os olhos; grita que já não vê  nada; quer voltar à sua querida caverna, e reencontrar as suas caras verdades, e essa penumbra a que chamava razão. Entretanto, amanso-o poupando os seus olhos. Faço-lhe ver as coisas ao crepúsculo, ou então no reflexo das águas, onde as claridades são menos ofensivas. E depois ei-lo suficientemente forte para contemplar os próprios objectos, em plena luz do sol. Como ele tem pressa  de voltar à caverna, onde sem dúvida será rei, pois que agora sabe  de que é que as sombras são feitas! Mas Platão puxa ainda por ele e educa-o, até que possa contemplar pelo menos um momento o próprio sol. Só então tu serás rei, para o bem de todos e para o teu próprio bem.

Transponhamos. As sombras da caverna, são as aparências na parede dos nossos sentidos. Os próprios objectos, são essas formas verdadeiras, como o cubo que nenhum olho viu; são ideias. Esta libertação faz-se pelo discurso. Estes reflexos menos difíceis de apreender, para um olhar menos acostumado; são essas figuras desenhadas segundo a ideia, e que sustentam o discurso do geómetra. Os objectos do mundo real, são as relações inteligíveis que dão um sentido às aparências, mas cuja aparência, ao contrário, não pode fornecer o segredo. Esta viagem do cativo liberto, é o desvio matemático, não somente através  de reflexos ou figuras, que são ainda espécies de sombras, mas até essas relações sem corpo que só o discurso pode apreender, até a essas simples, nuas e vazias funções que são o segredo de tantas aparências e que  estão cheias de tantas criações; até essa pura lógica, deserta para os sentidos, rica de entendimento; admirável para o coração, pois que o homem não se sustém senão por esta única preocupação de pensar bem, sem outro ganho. Mas o sol? É o próprio Bem, que não é ideia, que está de tal modo acima da ideia, tão mais precioso    do que a ideia! E da mesma maneira que o sol sensível, não somente faz que as coisas sejam vistas, mas ainda alimenta e faz crescer todas as coisas e as faz ser, igualmente o Bem, sol desse outro mundo, não é somente o que faz que as ideias sejam conhecidas, mas também o que as faz ser. E certamente aquele que tiver contemplado um pouco as ideias, se voltar à caverna, saberá já predizer milagrosamente; será chamado rei; não será no entanto um rei suficiente, porque não terá contemplado o Bem.

Aqui se erguem interpretações piedosas e belas, perante as quais é preciso primeiro que nos detenhamos. Fez-se em muitos homens como que um reflexo de Platão, que já e suficientemente belo. E a fim de imitar um pouco a prudência platónica, e de aliviar a atenção, desenvolvamos em primeiro lugar uma ideia bastante fácil. Pode ser que ao homem que sabe agrade agora esse outro mundo; pode ser que sejamos forçados a arrastá-lo de novo para a caverna. Pode ser que, de novo encadeado, ele não saiba de princípio discernir as sombras, e que primeiro seja ridículo, entre os cativos que há tanto tempo sabem  tão bem tudo o que um cativo pode saber. Ele quererá, pois, mais uma vez evadir-se; mas é o que não se deve permitir, senão até ao ponto em que seja útil para rever as ideias e não as esquecer. É assim que os chefes, depois duma guerra, depois dum cruzeiro, depois de alguns anos de administração, deveriam voltar à escola, ou antes ao mosteiro de meditação, mas não para ali se encerrarem para sempre. É dizer que o homem deve voltar, e instruir e governar, e ao mesmo tempo instruir-se e governar-se. Compreendamos que nesta caverna, entre estes cativos, e a canga no pescoço, é a vida verdadeira, e que não há outra.  Ou melhor, é esta vida que deve ser a outra vida e a verdadeira vida. Platão distingue-se, pela poesia que lhe é própria, em reunir e dispersar as ideias e as sombras como que num palco eterno, fazendo aparecer, em cada volta de pensamento e de paixão, um clarão de paraíso sobre uma caravana de sombras miseráveis. E tudo isso  junto tem justamente a cor do nosso pensamento real. Porque o que é viver, ó crepúsculo? Mas também o que é pensar? Aqui talvez o sentido das religiões; e toda a Divina Comédia está no menor dos nossos pensamentos. Todavia, pois que é preciso que o severo entendimento circunscreva esta metáfora, e a salve a ela mesma de morrer, foi por isso que escrevi um tão longo preâmbulo; porque é preciso saber que não há nada de falso nas sombras, desde que aí se vejam as ideias; e é este mundo que é o mais belo e o mais verdadeiro, e, bem melhor, que é o único. O sábio é aquele que salva até as suas sombras, e a sua própria sombra. Mas os homens mantêm-se raramente no seu posto de homem. Alguns refugiam-se  nas ideias puras e no mosteiro de espírito; os outros voltam demasiado cedo à acção como num sonho em que o verdadeiro não é mais do que recordação. Quero agora contar uma história verdadeira. Não há quarenta anos, os marinheiros de Groix sabiam perfeitamente ir a La Rochelle. Por que acaso tinham eles sabido o ângulo de rota que era preciso seguir? Não obstante, tinham essa opinião verdadeira. E, uma vez chegados a La Rochelle, seguiam os outros pescadores até a um banco conhecido e famoso: mas nenhum deles teve nunca a ideia de que um outro ângulo de rota os  levaria directamente ao lugar da pesca. Perante isto, institui-se uma escola de pesca, e ensina-se aos rapazinhos, por geometria empírica, por reflexos de ideias, a arte de encontrar a rota e de fazer o ponto. Nas férias, todos os grumetes foram à pesca com os seus pais, e experimentaram os seus talentos. Os resultados pareceram tão maravilhosos que mais de um pai quis ficar com o seu filho, como um sábio piloto, e que mais de um filho se entusiasmou por exercer esse novo poder, em vez de voltar à escola de pesca, aos cálculos, às lições. E, ao contrário, pode imaginar-se que a mais dotada destas crianças foi de escola em escola, dando lição de ideia depois de a ter recebido, e desprezando agora a pesca e a navegação. Assim Platão disse bem que era preciso suplicar ao sábio e mesmo forçá-lo, se esquecer os seus companheiros.

Fica por explicar esse Bem, que não é uma ideia, e que é a fonte das ideias. Pode entender-se que é muito pouco saber, se não se propõe, seja em saber, seja nas acções que o saber torna possíveis, algum fim superior; e que, enfim, é  só a vontade boa que dá importância e valor às ideias. De resto, pois que esse Bem ou esse Perfeito é o mais ser dos seres, admite-se sem dificuldade que é ele que faz ser as ideias, como também todos os seres pensantes e todas as coisas.

A respeito desta teologia, que cobriu uma parte do mundo, é preciso reconhecer que Platão disse, aqui e ali, de que alimentar séculos de pensamento místico, por exemplo, no Teeteto, que o trabalho do sábio é imitar a Deus. Não menosprezo esta sabedoria; e concordo que  está duma certa maneira em Platão; só que ela recobre uma outra, bem mais premente, bem mais positiva, bem mais perto de nós. E, embora a mística cristã ofereça profundidades mais do que metafóricas, não tenho a opinião que ela tenha tocado no mais íntimo do nosso bem e do nosso mal, como Platão o fez. Isso aparecerá, espero-o, suficientemente a seguir. Mas a partir de agora devemos notar isto, que falta muito à ciência, e mesmo tudo, se, remontando essa estrada da inteligência que vai das coisas às ideias, ela não capta um bem substancial às ideias, da mesma ordem  que elas, embora em valor as ultrapasse infinitamente. Toda a imaginação ultrapassada, esta condição deve aparecer no problema positivo do conhecimento humano; donde se elevará a fé dos incrédulos, que é a mais bela. E eis como a compreendo.

As nossas ideias, por exemplo de matemática, de física, são verdadeiras em dois sentidos. Elas são verdadeiras pelo sucesso; dão poder neste mundo de aparências. Fazem-nos nele senhores, seja na arte de anunciar, seja na arte de modificar segundo as nossas necessidades essas temíveis sombras no meio das quais estamos lançados. Mas, se se compreendeu bem por que caminhos se faz o desvio matemático, falta muito para que esta relação ao objecto seja a regra suficiente do bem pensar. A prova segundo Euclides nunca é de experiência; nem o quer ser. O que faz a nossa geometria, a nossa aritmética, a nossa análise, não é primeiramente que elas estejam de acordo com a nossa experiência, mas é que o nosso espírito esteja de acordo consigo mesmo, segundo esta ordem do simples ao complexo, que quer que as primeiras definições, sempre mantidas, comandem toda a sequência dos nossos pensamentos. E é o que espanta de início o discípulo, que o que se deve primeiro  compreender não seja nunca o mais urgente nem o mais vantajoso. A experiência tinha feito descobrir o que é preciso de cálculo e de geometria para viver, muito antes da reflexão se ter posto à procura  dessas provas subtis que recusam o mais possível a experiência, e iluminam essa ordem segundo o espírito, que quer bastar-se a ele mesmo. É preciso mesmo dizer que este género de pesquisas não visa primeiro essa verdade que o mundo confirma, mas uma verdade mais pura, toda de espírito, ou que se esforça por ser bela. E que depende do bem pensar.

Encontrarei um exemplo simples nesse movimento de reflexão que marcou os últimos anos do século XIX. O ilustre Poincaré foi levado a dizer uma palavra sobre isso, justamente a respeito duma prova bem conhecida desta proposição, que se pode inverter a ordem dos factores sem mudar o produto. Esta prova para os olhos, que consiste em propor pontos bem alinhados, por exemplo, quatro filas de três pontos cada uma, afasta toda a espécie de dúvida, parece, por este género de experiência que se chama intuição. Mas Poincaré lembrou que a ciência rigorosa recusa esta prova, remontando da  multiplicação à adição, e ainda dos números à unidade, para recompor em seguida e por graus a proposição de que se trata, através de várias páginas de transformações bastante difíceis de seguir. Este exemplo é apropriado a fazer ver que um espírito escrupuloso sabe  ainda duvidar do que não oferece dúvidas, e tomar o caminho mais longo como Platão gosta de dizer. Não basta pois que uma proposição seja verdadeira segundo a coisa; é preciso que seja verdadeira ainda segundo o espírito. E, em resumo, aqui se mostra a regra do bem pensar, que repousa sobre ela mesma. Isso quer dizer que há um dever de bem pensar, aconteça o que acontecer. O espírito é aqui o seu próprio fim e o seu próprio bem.

Platão, em A República, explica-se o suficiente sobre isso; trata-se somente de pensar aquilo que se diz. Pode-se ir em dois sentidos, através das ideias. Pode-se descer da hipótese às consequências, tomando a hipótese como verdadeira; caminha-se então para a experiência e as aplicações; mas pode-se e até se deve, se se pretende a honra de pensar, subir, ao contrário, de hipótese em hipótese, até ao que é primeiro e categórico. É ver ou entrever, ou pelo menos suspeitar o espírito, fonte das ideias, e esta maneira de provar que só a si próprio deve. Apenas aquele que para  aí se orientou conhece as provas como provas. E o que é então Protágoras? Não é um ignorante; suporemos mesmo que  sabe enquanto homem do mundo. Só que ele não sabe que é espírito. Os olhos sempre voltados para este reino inferior que lhe é prometido,  considera somente em que é que as ideias se aplicam à experiência; facilmente desliza em tomar por uma hipótese simplesmente cómoda o que concorda com a lei do espírito. Tendo deixado perder-se este lado do verdadeiro, perde também o outro, dizendo que só há ideias úteis ou prejudiciais, e não ideias verdadeiras ou falsas. E, uma vez que não se deve dizer ao povo que não existe nem verdadeiro nem falso, porque não haveria então nem justo nem injusto, ei-lo que se acomoda ao mesmo tempo com a média e a baixa opinião, traindo duas vezes o seu próprio pensamento no menor dos seus discursos.  É salvar o seu corpo e perder o seu espírito; isso por não ter apercebido o Bem para lá das ideias. E o que é preciso sobretudo notar, é que este género de espírito não pára nunca de descer, por essa falta das faltas que consiste em rebaixar o espírito ao nível de meio; o que, de mil maneiras, e por diversos caminhos, conduz o político a este nível em que sempre o vemos. É do verdadeiro como do justo. Se não fordes justo pelo princípio, não sereis justo de todo. Se desprezais a verdadeira prova, não sois de todo espírito. Tal é a história espantosa das nossas quedas; e a mitologia só acrescenta  metáforas a isto.

Alain
(Tradução de José Ames)



1 comentário:

  1. MIL!!! Nota mil! Seu trabalho é maravilhoso e esse texto... SUPIMPA! Grata!

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