terça-feira, 31 de janeiro de 2012

NOTA SOBRE ARISTÓTELES



Há qualquer coisa de excessivo e mesmo de violento em Platão; é uma filosofia de descontente, compreenda-se descontente consigo.  Era preciso pensar a pura ideia, e não se pode; saber que não se pode e saber que é preciso, tal é a instável posição, donde se corre o risco de voltar a descer; e voltar a descer não é renunciar às recompensas e à glória. Bem pelo contrário. Assim, mesmo nas ciências, nós somos tentados e ameaçados. A vida moral exige ainda mais; porque, o que quer que façamos, o leão será sempre leão e a hidra sempre hidra. As nossas vidas futuras serão ainda vidas humanas; o sábio fugirá do poder, quer dizer da tentação de fazer bem aos outros; a menor falta aqui seria sem remédio. Deus não nos ajuda, porque ele fechou o mundo em todas as partes, e compete ao homem arranjar-se com este mecanismo sem defeito. A natureza não nos ajuda; ela acaba indiferentemente os nossos vícios e as nossas virtudes; cegamente nos condena ou nos recompensa segundo a nossa escolha. Não há qualquer graça em Platão, se não for o encontro de um sábio; há também a felicidade de não ter êxito, mas é preciso não contar muito com isso. No total a virtude é difícil e ameaçada. O verdadeiro partido é monástico, sem paraíso e sem Deus. Esta severa doutrina não mente nem promete nada. Reina aí, no entanto, uma luz de felicidade, mas que é preciso alimentar de si. Fatigamo-nos de ser Platónicos, e é o que significa Aristóteles.

A filosofia de Aristóteles é uma filosofia da natureza. O trabalho impossível de separar a ideia é um trabalho contra a natureza. A ideia não existe. O que existe é o indivíduo. Uma proposição verdadeira significa que um atributo está ligado a um ser determinado; não ligado pelo nosso juízo, mas antes pelo seu próprio juízo, que é o seu desenvolvimento. Ou, noutros termos, o possível segundo a relação, ou segundo a ideia não é nada de nada; é possível o que é possível para um ser existente, como Sócrates ou Callias; é possível o que alguém pode. A mudança real, de qualquer natureza que seja, é uma passagem da potência ao acto, passagem cujo movimento é só a aparência exterior. Assim tudo está vivo em algum grau. Deus é a vida perfeita, ou acto puro; há em todo o vivo qualquer coisa de divino. Esta doutrina é conquistada por um movimento sempre retomado, e quase que em cada frase. Porque o primeiro momento é de notar a insuficiência duma filosofia da matéria, duma filosofia da forma, e duma filosofia do movimento. O segundo momento é de organizar o mecanismo segundo esses três princípios e sob um primeiro motor, de velocidade infinita, e imóvel nesse sentido. Mas estas relações exteriores não podem trazer o ser; é preciso pensar potência e acto, e vida divina. E tal é a filosofia teórica, que, como se vê, nos reconcilia com a nossa natureza. Das suas próprias forças que cada um faça ciência, e a última palavra da teologia é que o pode fazer, sem recusar os seus próprios órgãos, nem o prazer de ver. Encontrar-se-á em Hegel um amplo desenvolvimento desta filosofia da inerência, tão bem oposta à filosofia da relação que é a de Platão. Uma diferença é porém de notar. Aristóteles não foi até ao ponto de pensar Deus como devir. O acto puro é imutável finalmente; por isso a natureza não tem história, mas antes é um eterno retorno das mesmas frases: como antes da criança existiu o homem feito, do mesmo modo antes do começo da civilização houve uma civilização mais perfeita; nós recomeçamos sempre; e é por aí que Aristóteles permanece Platónico; ao passo que segundo Hegel, tudo continua, tudo é novo e será novo.

O Aristóteles moralista é tal como esta metafísica panteísta o faz prever. O bem absoluto não é nada para ninguém; o bem de cada ser é impossível de arrancar dele; a justiça é impossível de arrancar das condições da vida, entre as quais é preciso contar a família, o comércio, a política. Aristóteles é o pai dos sociólogos. Há uma justiça do rei, uma justiça da mãe, uma justiça da criança. E, ainda mais próxima, há uma justiça de cada um, uma temperança de cada um, enfim uma perfeição de cada um, que depende das suas forças próprias, e resulta do seu desenvolvimento. De que o prazer e a felicidade são sinais; porque o verdadeiro geómetra é aquele a quem a geometria agrada, e o verdadeiro temperante é o que se compraz na temperança. Não é portanto verdade que a nossa natureza seja nossa inimiga, a nossa natureza, ou essa natureza política da qual também nascemos, ou a grande natureza, tão profundamente em harmonia connosco. É por isso que não é razoável separar-se dos juízos comuns e da prática comum, nem dos modelos vivos, nem do exemplo, nem do conselho. O aluno de Platão devia chegar aí; e é a força mesma do Platonismo, é o puro deserto platónico, que o devia proporcionar aos homens. Mas contemos então como um remorso a contínua polémica. É assim que nós vemos que do moderno Platonismo, que é o Kantismo, cada um se quer evadir, e dizer a si mesmo que é preciso, no entanto, pensar e agir segundo o mundo. Mas o mais resoluto dos físicos não pode impedir-se de voltar algumas vezes à pura geometria, ou pelo menos a sentir a sua falta, como o mais resoluto dos políticos volta à primeira justiça, ou lamenta a sua falta. São dois momentos ou pulsações do pensamento, ampliados nestes dois sistemas de Platão e de Aristóteles. O segundo tem mais complacência. Reencontraremos um e outro nas querelas do socialismo como na filantropia dos banqueiros. Não é por acaso que a Igreja foi Platónica em primeiro lugar e Aristotélica em seguida; e isso esclarece suficientemente bem as querelas de jansenistas  e de jesuítas, que são as formas passageiras duma querela eterna. Porque é preciso viver; e todavia, foi o que Platão nunca disse. Sócrates, depois do julgamento, dirige esta palavra aos seus juízes: “Eis que partimos cada um para o seu lado, eu para morrer, e vós para viver. Quem tomou o melhor partido, só Deus o sabe.”






Alain
(Tradução de José Ames)

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