IX
“Se houvesse dois anéis deste género e que o justo tivesse um, onde está a alma de diamante que seguiria a justiça?”
(A República)
Mas um dia dois jovens leões escutam, dois jovens cheios de fogo, ambiciosos de ser e de vencer. São Adimanto e Glauco, os irmãos de Platão. Ora os discursos dum Cálicles ou dum Trasímaco não lhes ensinam nada que não soubessem. Como diz Sócrates, é só isso que se ouve. “Grande justiça!” como diz o outro. E a ordem útil, que quereríamos sagrada, e a rica presa de honra e de riqueza prometida ao ambicioso, são os lugares-comuns da história. Porém, a negação destas coisas, tranquila em Sócrates, traz a uma luz crua aquilo que não se diz completamente, e, acabando a prova, desperta talvez a dúvida. Porque não é um grande partido fazer o que todos fazem, mas é um grande partido julgar que têm razão. Temos mais vergonha dum pensamento do que duma acção. Uma acção não compromete; mas, se nos ligamos, diante de nós mesmos, por alguma máxima terrível, somos privados então das virtudes de ocasião; é preciso que se acabe conforme a máxima. Eis por que o prudente Protágoras não pensa nunca aquilo que pensa; mas esta prudência só se encontra num homem fatigado. Quando a barreira cai, os corcéis lançam-se; assim se lançam um e outro, a fim de acabar o discurso temível. E, como diz Homero: “ Que o irmão traga socorro ao irmão.” Platão, tu não estás longe.
Ora, dizem eles, pode ser que homens de idade e sérios sejam levados um pouco além das leis que fizeram, ou então um pouco ao lado, sem pensar muito. Ou então, se pensam, é apenas um jogo para eles, que torna os movimentos da glória assegurada um pouco mais livres. Mas para nós, que nada fizemos ainda e nada jurámos, para nós todo o futuro está sobre o fio do sabre. Trata-se de se lançar aqui ou ali; porque esta idade não faz nada por metade. Pois bem, dizem eles, cada um por sua vez, é preciso que tudo seja decidido aqui e lá em cima. De deuses e homens a última palavra. Ou então toda a injustiça, sem remorsos, segundo o instinto, segundo o desejo, segundo o prazer, pelos imensos meios do sangue nobre e da aclamação. Ou então, se é verdade que é melhor assim, toda a justiça. Mas, Sócrates, não basta que tu nos digas que é melhor; é preciso que tu o proves. Essa censura que tu és, é preciso que fale claro. Porque a virtude dos nossos cadernos e dos nossos livros, a virtude segundo os nossos mestres, e segundo os nossos poetas, e segundo os nossos sacerdotes, é apenas prudência, é apenas medo. Este contrato de sociedade, esta religião da ordem, esta preocupação de não prejudicar, não é senão medo. E medo de quê? Os vencidos amar-nos-ão. A glória de longe teme a censura, e encontra o aplauso. Os próprios deuses, pelo que nos ensinam, se deixam influenciar pela hecatombe. Trata-se só de ousar. Pois bem, Sócrates, nós ousaremos. O que nos agradar, para aí nos conduziremos dum modo seguro; porque é assim que se ultrapassa o risco, e o inimigo torna-se desprezível pelo desprezo que dele se tem. Que não venham pois dizer-nos para tomarmos cuidado, e que assim como fizermos, assim nos será feito; porque é o que acontece aos fracos, e nós não nos sentimos fracos. Tu não o quererias. Tu mesmo, Sócrates, se achasses bem empreender, e se só tivesses o perigo entre a tua iniciativa e tu, corarias por esperar.
Ou então é que há outra coisa, outra coisa além dos poderes, outra coisa que tu conheces e que não dizes. Não esses juízes de opinião, que só condenam os fracos, mas um juiz interior, forte nos fortes. Um juiz que não impede; que é só razão e luz; que não se pode flectir; que pune pela vontade mesma; por essa mesma vontade que escolhe a um tempo a injustiça e o castigo. Um outro deus, que apenas deixa ir as consequências íntimas, e assim que não pode perdoar. Mas é preciso dizerem-nos como é que isso se faz, sem nada opor a nós mesmos senão nós mesmos. Separa pois violentamente o justo e o injusto. Que o injusto seja honrado pelos homens e os deuses, assegurado de poder, de amigos, de riqueza, e de longa vida; e prova-nos, porque nós sabemos que tu o crês, que ele tomou o mau partido, e que se prejudicou a si mesmo. Em contrapartida, desenha o justo completamente nu. Que ele seja desprezado pelos homens e pelos deuses, aprisionado e crucificado pela sua própria justiça, e prova-nos que ele seguiu o bom caminho, e que se serviu bem a ele mesmo, como o melhor e o mais sábio dos amigos o teria servido. Escuta enfim a história de Gigés. Não era um mau homem. Fazia o seu ofício de pastor como ele se faz, mas era porque não podia fazer de outra maneira; era porque não via o meio de fazer de outra maneira. Tu sabes como o acaso o fez encontrar um meio, esse anel que o tornava invisível desde que virasse a pedra no engaste para o interior da mão. Tendo descoberto por acaso este segredo maravilhoso, esperou apenas o tempo suficiente para se certificar disso, e ei-lo que parte, ei-lo na corte. Mata o rei, seduz a rainha, reina. Ora, se Cálicles e Trasímaco têm razão, se todos os nossos mestres e todos os nossos poetas têm razão, Gigés fez bem. E se a sorte nos der um anel semelhante ao seu, faremos como ele. Não digas que um tal anel nunca foi dado a ninguém. Não o digas, porque tu sabes bem que todo o homem tem um anel desses, desde que já só tema o seu próprio juízo. Vamos; diz-nos o que Gigés não sabia; o que o teria feito estacar se o soubesse; que o teria feito talvez deitar fora o seu anel, como deitaremos, nós, o poder, se tu nos instruíres; porque então seria o pior perigo, como tu o disseste, de tudo poder impunemente. Enfim, diz-nos como é que Gigés se puniu a si mesmo.
Foi assim que Adimanto e Glauco intimaram Sócrates; e foi assim que aos dois primeiros livros de A República foram acrescentados os outros oito, em que a doutrina da justiça como saúde da alma é amplamente exposta, e também o verdadeiro juízo de Minos, e o grande risco em que estamos de apenas sermos punidos por nós mesmos. Ou melhor, é o próprio Platão que intima a sombra de Sócrates, e o ouviu falar como o fazia quando estava vivo. E tudo está disposto, neste Diálogo ilustre, segundo a dupla prudência de Sócrates e do seu discípulo, de modo a preparar o espírito do leitor atento, de modo a desviar também os espíritos frívolos. Eis por que não serviria de nada resumir A República; mas pode-se, esclarecendo sobretudo as ideias que o leitor não encontra logo, apagar a impressão viva e desmedida que fazem as vãs utopias, e da qual mesmo o prudente espírito de Aristóteles, coisa incrível, guardou a marca invencível. O facto é que os dez livros de A República são a melhor prova para o homem que pretende saber ler. Porque tudo está ali, e em primeiro lugar que A República não trata de política. Sócrates adverte apenas isto, que é uma ideia inesgotável e quase insondável, que o corpo social sendo maior do que o indivíduo e assim mais legível, é no corpo social que é preciso procurar primeiro a justiça. Ora, todos os segredos da doutrina platónica estão aqui reunidos, e como que fechados uns sobre os outros. Porque se se entendesse que o indivíduo só é justo pela sua participação num estado justo, cair-se-ia no discurso do sofista sobre a justiça conforme a lei política, e não é isso certamente o que Platão nos quer fazer entender; a justiça individual não é de modo nenhum a justiça segundo a sociedade. Mas, por outro lado, a justiça do Estado é tomada como justiça individual, como justiça apropriada a esse grande corpo. Assim é verdade também que o homem justo todo inteiro, relacionado com as suas diversas forças, é análogo ao Estado todo inteiro. De maneira que, no Estado justo, não é o guerreiro que é justo, nem o artesão, nem mesmo o magistrado; mas é o Estado que é justo. E do mesmo modo no homem não é o coração que é justo, nem o ventre, nem mesmo a cabeça; mas é o homem que é justo. Neste sentido pode-se dizer que o Estado e o indivíduo participam da mesma justiça; o que não quer dizer que o homem seja alguma vez justo pelo Estado justo do qual seria uma parte. Enfim, encontra-se aqui a ideia indivisível, separada e inseparável. Porque a justiça não pode mais pertencer a uma das partes, seja do Estado, seja do homem, do que o cinco a um dos cinco ossículos. Assim a ideia é separável, e mesmo separada num sentido. Mas, por outro lado, que há de mais substancial ao homem, e a ele mais íntimo e pessoal, do que a sua própria justiça? Porque não é a sua justiça própria, a justiça dele, por ele medida, por ele eternamente medida, que ele fará por esse governo, seja de tal cólera e de outras cóleras, seja de tal desejo e de outros desejos, seja de tal ciência, composta de tal sentimento e de tais apetites? Dois homens são diferentes; dois homens justos serão diferentes, e pela própria justiça. Eis pois mais um exemplo duma mesma fórmula rigorosamente comum a soluções diferentes. Como Spinoza disse que o homem não tem necessidade nenhuma da perfeição do cavalo, assim nós diremos que ao homem não pode servir a justiça do seu vizinho. Por um efeito de reflexão que espanta sempre, é a obrigação de reencontrar a ideia no ser sempre diferente e sempre mutável, que nos salva de dormir sobre a justiça de ontem. Ousar-se-ia dizer mais; ousar-se-ia dizer que é a própria dificuldade da doutrina teórica, a variedade dos toques, a distribuição inimitável das luzes, enfim a lenta iniciação, que assegura aqui a eficácia da doutrina prática. Se, portanto, o resumo que vai seguir-se tivesse os caracteres da evidência feita - é muitas vezes a fraqueza dos resumos, seria preciso recordar a presente advertência.
Alain
(Tradução de José Ames)
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