ONZE CAPÍTULOS SOBRE PLATÃO
II
“É possível que ele, que é mais velho do que nós, seja também mais sábio; e se surgisse aqui da terra até ao pescoço, teria logo refutado os meus fracos pensamentos, e a ti que os aprovas, e imediatamente voltaria para debaixo da terra.”
(Teeteto)
O personagem que agora quero evocar, e que nos deve esclarecer no seu centro mesmo a reflexão platónica, não é o homem cultivado, bem falante, um pouco contido e secreto, que se vê no seu Protágoras. Trata-se do Protágoras que revive no Teeteto, deste pensador temível que, muito pouco apoiado por um discípulo de ocasião, no fim, e por apelo de Sócrates, sai da terra até ao pescoço, e, dizendo desta vez aquilo que nunca se diz, destrói e arrasa por terra toda a verdade, todo o saber e toda a boa fé. Nenhum resumo dispensa a leitura deste Teeteto, que parece não concluir, mas que deixa ver o mais franco combate do espírito contra ele mesmo, e também a mais retumbante vitória, e a mais positiva. E esta maneira, que é própria de Platão, de mostrar o que é jogo, de esconder o que é pensamento, enfim de avançar para muito longe sem que o leitor se aperceba, e de iluminar de repente precipícios de profundidade, isso mesmo é tão doseado de acordo com a nossa capacidade de atenção, com os nossos curtos esforços, com essa timidez e mesmo esse pudor que nos desvia de tudo dizer, que é certamente impossível compreender Platão por procurador; todavia, talvez por procuração se possa começar a amá-lo. Sabei, pois, que uma vez, nesta curta e bela história do pensamento ocidental, uma vez somente Protágoras disse tudo; uma vez ele virou como um saco o sistema sem esperança e sem amor. Uma vez e uma única vez, nesse extremo de audácia, o espírito se encontrou pelo seu contrário, e sustentou-se e salvou-se sem qualquer recurso exterior, sem hipótese nenhuma, sem piedosa mentira, sem encantamento, por uma luminosa presença para si mesmo. Mas basta de anunciar. A ciência é a sensação. Eis a tese, ou antes a antítese, pois que ela se desenvolve em intrépidas negações. Conhecer é experimentar; é achar-se no encontro da coisa que nos aborda e de nós que a abordamos. Mistura. Mas aqui aparece Heráclito, o poeta do inapreensível. Mistura de dois turbilhões, porque tudo muda, tudo envelhece, tudo se escoa, e tu não te lavas duas vezes no mesmo rio. Assim, tu que conheces, tu és rio; tu não voltas; tu foges; tu nunca és isto; tu passas àquilo; e o objecto do mesmo modo, outro rio; O que ia ser, já deixou de ser; e o próprio sol se extingue. É muito divertido ver a mescla destes dois fluxos ser um só momento quer isto quer aquilo; a cor ser isto ou aquilo, o calor ser isto ou aquilo. Todas as nossas proposições são falsas, porque não podem correr com o seu objecto. Este verdadeiro, que tu fixas e deténs, é falso por isso apenas que tu o fixas e deténs. O tempo de abrir a boca, já aquilo que vais dizer, por muito escrupulosamente que o digas, não corresponde mais a nada. Fica então de boca aberta; ou então diz por precaução: “Não mais isto do que aquilo; de nenhuma maneira; nenhum meio,” Eis o recto pensamento; e o pensamento recto é que não existe pensamento recto.
Muito bem. Mas nós vivemos. As cidades formam-se por todos os géneros de comércio e de empreendimento; elas pedem leis a Protágoras e dão-se bem com elas. Que significa? É que há opiniões que têm sucesso. Não que sejam verdadeiras. Como é que quereis que sejam verdadeiras? Mas elas fazem com que se dure, que se cresça, que se triunfe, e que Protágoras sobreviva em estátuas veneradas. E como é que Protágoras apreendeu e reteve essas opiniões salutares? É que em vez de procurar o verdadeiro, e forte por ser louco procurar a verdade, ele observou simplesmente os homens e os povos na sua história, notando os efeitos, mas sem vãos esforços para os explicar. As opiniões estimadas são apenas costumes vantajosos. E que vos importa que sejam verdadeiros ou falsos? Todavia eu adivinho, pobres gentes, que isso vos importa; e seja. O homem de Estado tem por função própria provar que estas opiniões úteis são verdadeiras. Tal é o fim da eloquência, que assim engana os homens para o seu bem. Ideia que ressoa em nós todos, pelas mil recordações que desperta, de escravatura, de indignação, de resignação. Pascal sobressaltou-se também com esta ideia; mas é porque ele teve medo dela. “Não se deve dizer ao povo que as leis não são justas.” E quantos outros, antes ou depois de Pascal, não tiveram a ocasião de se aconselhar a si mesmos, segundo a mesma prudência: “Não se deve dizer ao povo que é útil crer no inferno; é preciso dizer-lhe que existe um inferno.” E nós, imitando também esta forma, e aproximando-a das nossas preocupações: “Não se deve dizer ao povo que não há guerras justas.” Quem não pensou isso, entre aqueles que dão leis à sua pátria?
Mas de facto ninguém o pensa; ninguém se abre a si mesmo até aí. Ninguém se-lo permite, desde que faça profissão de persuadir. Como persuadir se tu não acreditas? E, por uma consequência do teu belo sistema, não é vantajoso crermos nós mesmos no que queremos provar aos outros? Não vais fazer um grande juramento a ti mesmo, de agora em diante de pensar como verdadeiras as opiniões vantajosas? E, como nós vemos nas nossas guerras, se é vantajoso crer que se tem razão, porque é que o sofista que sabe fazer acreditar nisso, se privaria ele mesmo de crer? Não se encontram nunca essas políticas que têm dois pensamentos, um para o povo e outro para eles mesmos. Antes, são eles sinceros em crer que o que lhes é vantajoso é verdade; porque o que há de mais sincero do que a ambição? Por isso, o que Protágoras ousa dizer aqui, ele não o pensou de todo. Mas foi Platão, no seu diálogo com o seu contrário que é também ele mesmo, foi Platão que se libertou da vergonha; foi Platão que falou verdade contra a verdade. Pois é, é verdadeiro e irrefutável isso mesmo que vai contra todo o género de verdadeiro e de irrefutável. Ponto extremo, em que, da sua própria morte e da sua própria fogueira, como a Fénix, o pensamento vai renascer todo. Protágoras só é vivo estando morto. As viagens das almas, imagem familiar e sempre presente em Platão, figurarão esta condição estranha em todas as nossas ideias, de morrer muitas vezes, para renascer numa existência melhor. Diálogos de mortos. O mesmo Heráclito, cognominado o Obscuro, dizia que nós vivemos a morte dos deuses, e que os deuses vivem a nossa morte. Só Platão soube suspender-nos no tempo verdadeiro, em que as ideias morrem e renascem, porque nenhum tempo é senão por esse. E, por esta magia, ele renasce todo, e os seus renascimentos renascem todos, a cada vez que o lemos. Assim o imortal é o verdadeiro; é verdade que quem pensou pensará, e que pensar é pensar isso mesmo, imóvel e móvel. Platão é, como se sabe, talvez, o maior poeta dessa outra vida, de que os nossos pensamentos são o estofo, e que em nenhum sentido podem começar ou acabar. Cada um pressente que essa outra vida é a verdadeira vida, se há verdade no mundo. Por isso a imaginação é já confortada por essas imagens de eternidade. Eis-nos felizes com estes contos, e é este repouso que nos faz crianças. Todavia esta felicidade é um grande sinal também para os homens. Ficai tranquilos, Platão vai-nos prover das estritas razões.
Concebamos o célebre cavalo de madeira; demos-lhe olhos, orelhas, narinas, e que as coisas aí se imprimam. Não é assim que nós pensamos; o cheiro não está aqui e a cor ali, mas a cor e o cheiro são pensados em conjunto no objecto. Eis-me pois a juntar os meus sentidos em algum sentido comum, cérebro ou como se quiser dizer, onde as sensações estejam juntas. Mas é ainda cavalo de madeira. As partes deste sentido comum fazem ainda que uma sensação não esteja onde está a outra; ou então, se não há partes, estamos no pensamento; na alma, enfim no que não é coisa. Mas este género de argumento abre caminho a espantosas observações, que deixam entrever a ideia. Porque, se fazem o favor, este pensamento de que as sensações são diferentes, este pensamento também de que a visão não é o ouvido, onde está ele? E este pensamento de que as sensações são várias, onde está? E este pensamento de que as partes do sentido comum são várias, onde está? Melhor, este pensamento de vários é ele mesmo vários? Eis-nos reconduzidos aos cinco ossinhos, humilde exemplo. Mas Sócrates diz no Fédon qualquer coisa que é ainda mais simples e mais desesperante, por essa evidência que faz aparecer para logo esconder. Porque, diz, ele já não sabia como dois e dois fazem quatro; bem pior, não sabia mais como um e um podiam fazer dois. É o primeiro um que se torna dois, o segundo ou o quê? Mas é possível que o um se torne dois? E enfim, estes cinco ossinhos, como é que são cinco? O quinto faz cinco, mas não é ele que é cinco; nem ele nem nenhum dos outros. O cinco está em todos e como que posto em todos, indivisível. O cinco não tem partes; o cinco não é uma coisa; o cinco nunca morre; não muda; não envelhece. O cinco, é um pensamento. Mas é dizer pouco; porque não é porque se pensa nisso que o cinco é cinco. Ele era cinco antes; ele é cinco ainda depois. Nos números tem o seu lugar eterno, e a sua natureza que nada corrompe. É uma ideia.
Aqui sem dúvida me engano, por ir demasiado depressa, por não seguir essa lei de paciência e de precaução que os Diálogos nos ensinam. Eu quero fazer moeda e coisa do que não é moeda nem coisa. Concluí demasiado rapidamente que o cinco é filho do céu; porque é filho da terra também, por estes ossinhos. Eu faço-os saltar, disperso-os, junto-os; são sempre cinco. Mas sem estas diferenças que eles lançam aos meus sentidos, sem essa outra lei que os repele e os desloca uns pelos outros, de modo que estejam sempre separados e cada um no seu lugar, pensaria eu cinco? E neste cinco, que os faz cinco, não é o mesmo um que volto a encontrar também em quatro, em três, em dois, pelo qual dois é um número, três um número, quatro um número? E como pode esse um ser dois, e três, e quatro? Pela sua natureza? Pelo encontro? De qualquer modo este um dos vários não é um pelos vários. Antes são os vários que são vários pelo um. Porque é o um que junta. Mas todos assim juntos são um.
Nestes estranhos e invencíveis pensamentos, entrevejo apenas que o um só é pensado no número pela sua relação consigo mesmo, por esta oposição e distinção que faz que ele é o mesmo em todos e no entanto outro. Não ao mesmo tempo o mesmo e ao mesmo tempo outro; mas antes parece que um se move e se transporta, segundo uma ordem que faz nascer os números, eternamente nascer os números. E se existe pois aqui alguma lei de produção que faz nascer sempre os mesmos números segundo a mesma ordem, nessa lei estaria a verdade eterna dos números, e talvez a ideia. Assim podia muito bem ser que a ideia de cinco não seja ela mesma cinco, e que cinco não seja número a não ser por toda a ordem dos números. Finalmente, este jogo enigmático, que Platão me deixa aqui dirigir como puder, faz-me conhecer, ou pelo menos suspeitar, que a ideia está sempre fora dela, que é sempre outra coisa que não o que conheço dela, e que pensar é ultrapassar-se nesta reflexão, sempre buscando a ideia da ideia, o que é não ficar preso à coisa nem se deixar enganar pela coisa, talvez. Um pensamento não é como uma pedra. Tal como o Teeteto me deixa como que suspenso, isso mesmo me instrui.
Aqui sem dúvida me engano, por ir demasiado depressa, por não seguir essa lei de paciência e de precaução que os Diálogos nos ensinam. Eu quero fazer moeda e coisa do que não é moeda nem coisa. Concluí demasiado rapidamente que o cinco é filho do céu; porque é filho da terra também, por estes ossinhos. Eu faço-os saltar, disperso-os, junto-os; são sempre cinco. Mas sem estas diferenças que eles lançam aos meus sentidos, sem essa outra lei que os repele e os desloca uns pelos outros, de modo que estejam sempre separados e cada um no seu lugar, pensaria eu cinco? E neste cinco, que os faz cinco, não é o mesmo um que volto a encontrar também em quatro, em três, em dois, pelo qual dois é um número, três um número, quatro um número? E como pode esse um ser dois, e três, e quatro? Pela sua natureza? Pelo encontro? De qualquer modo este um dos vários não é um pelos vários. Antes são os vários que são vários pelo um. Porque é o um que junta. Mas todos assim juntos são um.
Nestes estranhos e invencíveis pensamentos, entrevejo apenas que o um só é pensado no número pela sua relação consigo mesmo, por esta oposição e distinção que faz que ele é o mesmo em todos e no entanto outro. Não ao mesmo tempo o mesmo e ao mesmo tempo outro; mas antes parece que um se move e se transporta, segundo uma ordem que faz nascer os números, eternamente nascer os números. E se existe pois aqui alguma lei de produção que faz nascer sempre os mesmos números segundo a mesma ordem, nessa lei estaria a verdade eterna dos números, e talvez a ideia. Assim podia muito bem ser que a ideia de cinco não seja ela mesma cinco, e que cinco não seja número a não ser por toda a ordem dos números. Finalmente, este jogo enigmático, que Platão me deixa aqui dirigir como puder, faz-me conhecer, ou pelo menos suspeitar, que a ideia está sempre fora dela, que é sempre outra coisa que não o que conheço dela, e que pensar é ultrapassar-se nesta reflexão, sempre buscando a ideia da ideia, o que é não ficar preso à coisa nem se deixar enganar pela coisa, talvez. Um pensamento não é como uma pedra. Tal como o Teeteto me deixa como que suspenso, isso mesmo me instrui.
Alain
(Tradução de José Ames)
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