sábado, 28 de janeiro de 2012

O SACO

X


“A virtude parece pois ser uma saúde, uma beleza, um bem-estar da alma, e o vício, uma doença, uma fealdade e uma fraqueza.”
             (A República)


Vamos ao centro. O que há neste saco de pele, que se chama, conforme o caso, justo ou injusto, sábio ou louco? Eu vejo três animais em um, e que fazem uma estranha sociedade. A cabeça, animal calculante, lugar de memória e de combinação, assemelha-se bastante a algum Pitagórico, todo inteiro no espectáculo, e que esquecesse o seu corpo. Todavia, não o esqueceria por muito tempo. Porque este sábio está encerrado na companhia de dois monstros. O tórax, lugar do coração, lugar do sentimento, lugar do arrebatamento, é todo força, todo riqueza, todo cólera. Aqui reside essa parte do amor que é coragem; aqui tudo é generoso e de puro dom; porque, na cólera, é a própria força que desperta e mantém a força; de que o músculo oco é a imagem, uma vez que se desperta a si mesmo aos seus próprios golpes. A este monstro, que resolve tudo pela força, podemos chamar leão. Abaixo do diafragma encontra-se o ventre insaciável de que fala o mendigo de Homero; e chamar-lhe-emos hidra, não ao acaso, mas a fim de lembrar as mil cabeças da fábula, e os inumeráveis desejos que estão como que deitados e dobrados uns sobre os outros, nos raros momentos em que o ventre dorme. E o que habita aqui ao fundo do saco, não é riqueza, é pobreza; é essa outra parte do amor que é desejo e carência. Aqui está a parte rastejante e medrosa. E a condição do homem, assim feito de três animais, é que ele não pode deixar de se irritar, nem deixar de se alimentar. O sábio encontra-se assim ao serviço do leão e da hidra, e na mais íntima vizinhança, de tal modo que enquanto  primeiro não tiver estabelecido a paz entre eles, e depois entre eles e si, nenhum outro pensamento lhe poderá ocorrer que não seja de necessidade e de cólera.

Esta espécie de fábula aparece em A República quando se faz o famoso paralelo do homem e do Estado. Mas o ponto difícil desta análise estava havia muito tempo esclarecido pela distinção outrora clássica, do desejo e da cólera. Um exemplo cheio de sentido e de ressonância explica ao mesmo tempo estranhos desejos, mais fortes do que a razão, e uma bela cólera, aliada da razão. Um homem  apercebe-se  de longe, abaixo das muralhas, de corpos de supliciados. Não pôde resistir ao desejo de ver de mais perto, desejo feito de medo e de horror, desejo cobarde, não mais cobarde do que os outros. Então, em cólera consigo mesmo, diz: “Ide, meus olhos, regalai-vos com este belo espectáculo!” Reconhece-se neste exemplo esse ar de negligência pelo qual Platão procura e obtém uma atenção especial. Porque espantamo-nos, e passamos, como com os cadáveres, mas de maneira nenhuma se esquece. Platão quer  somente  mostrar
então que a oposição é possível entre o desejo e a razão no mesmo homem,  e também entre a cólera e o desejo; mas uma ideia espantosa, e de grande valor, nos é ao mesmo tempo lançada como se nada fosse, é que, no conflito entre a cólera e o desejo, a cólera é sempre a aliada da razão. Assim, se quiserdes compreender o que a paixão recebe do desejo, que é pouca coisa, e, pelo contrário, todas as nuanças da irritação e do arrebatamento que coloram a nossa vida mediana, reparai nessa força galopante, que se excita com o seu próprio ruído. Mas se quiserdes tocar o lugar do sentimento, e o segredo dos seus movimentos partilhados entre razão e desejo, visai ainda esse centro de entusiasmo, e de felicidade de despender. As análises modernas esquecem comummente este terceiro termo, a cólera,  e esforçam-se por compor o homem  de desejo e de razão somente. É esquecer a honra; é esquecer os jogos gémeos do amor e da guerra.

Pegando agora no homem  todo, nós temos a justiça do homem. Temo-la, porque ela está no círculo dos caçadores, como Sócrates diz, mas não a apercebemos ainda. Desviemo-nos; conduzamos uma outra caça em volta do Estado, caça mais fácil; porque, no Estado, circula-se, vê-se quase tudo a descoberto. Aqui ainda uma cabeça e uma razão; são os reis, entendei os sábios. Aqui a multidão dos desejos, que são os artesãos de todos os ofícios. Aqui o coração, princípio da acção e da cólera, e são os guerreiros. Ora, pelo governo dos sábios, três virtudes se mostram. A temperança é a virtude própria aos artesãos num Estado bem governado; porque os sábios não permitirão que os monstruosos desejos criem ofícios à sua medida. A coragem é a virtude própria aos guerreiros;  porque, se os reis são prudentes, essa força não seguirá a sua lei de arrebatamento; mas os guerreiros, semelhantes aos cães,  irritar-se-ão e  acalmar-se-ão segundo os desígnios dos seus mestres. Enfim, a sabedoria é a virtude própria dos reis; quer dizer que eles saberão distinguir a verosimilhança, o hábito, a verdadeira prova, e enfim a fonte das provas, assim como se explicou aqui acima. Donde, voltando ao homem, outra sociedade, mais fechada, menos fácil de percorrer e de conhecer bem, definiremos facilmente a temperança, a coragem, e a sabedoria em cada homem. Mas, reparai bem nisto, a justiça escapa-nos ainda. Todavia, ela não pode ficar muito tempo  escondida, porque nós passámos tudo em revista. E permanece que a justiça, no Estado como no homem, consiste numa certa relação, que exprime que as três ordens, ou as três forças, têm o peso e a importância que lhes convêm.

Harmonia, conveniência, proporção, diremos nós. Mas não apanhámos ainda a ideia. Falta-nos de novo percorrer o Estado, e depois o homem, a fim de pesquisarmos em quê e por quê esta harmonia e esta proporção são  tantas vezes perturbadas. A ideia só aparecerá se agarrar qualquer coisa, e é voltar a descer à caverna. A perfeição do Estado não é difícil de conceber; porque a parte que é própria para governar é muito claramente aquela que sabe, como aparece no navio. E tanto quanto a verdadeira ciência regulasse, dos guerreiros o número, a educação e as acções, dos artesãos os ofícios, os ganhos  e os empreendimentos, nós teríamos a aristocracia, ou o governo do melhor, coisa miraculosa, que não se verá sem dúvida jamais entre os homens. Mas que veremos segundo o peso da natureza, se supusermos que, num Estado perfeito, os reis, conforme a inclinação do homem, porque cada um  arrasta todo o saco, são levados a esquecer as regras severas da verdadeira ciência? Primeiramente, é a honra que governará. Mas não se pode permanecer aí; e é preciso que o Estado sem cabeça desça ao mais baixo; primeiro pelo governo dos ricos, e finalmente, por causa do monstruoso desenvolvimento dos ofícios e dos desejos, que é inevitável num tal regime, pelo governo dos desejos, ou dos artesãos, que se chama comummente democracia. Estado feliz, mas não feliz por muito tempo, porque é preciso que o mais poderoso desejo reine, e tal é o tirano. Toda esta análise é de ler; um resumo só pode advertir. O menor detalhe abre vistas e caminhos.

Porém o objecto político não é aqui o principal. Não esqueçamos que estes sistemas políticos têm por fim  explicarem-nos o interior do homem. O objecto político não é mais do que uma outra fábula, um espectáculo, que, porque vai como vai, e muito ingenuamente, deve dar lição ao sábio, o qual em primeiro lugar tem a si próprio a cargo. E é sempre verdade que a amarga lição deste grande movimento, no qual somos apanhados, é o que nos desperta  e nos esclarece a nós mesmos. Por não se ter considerado o tempo suficiente o objecto político, cujos segredos estão debaixo dos olhos de cada um, como se apreenderá, como por arrombamento ou adivinhação, o segredo dos outros e de si? Aqui as visões mais profundas, sobre o homem de honra, já sem cabeça; e depois sobre o homem rico, inutilmente estabelecido na fronteira dos desejos, e tentando governá-los uns pelos outros. É preciso que os desejos tomem o comando; todos; todos iguais; e eis o homem democrático. Tu não acabaste, leitor, nem eu, de apreciar pelo seu valor este encantador retrato dum homem encantador que não é capaz de se recusar nada. Como a paixão o espreita e o toma todo, é o que é representado segundo um movimento épico, e pelo meio de metáforas políticas. O maior dos desejos, reunindo o exército dos desejos, toma a cidadela, encadeia a razão, e força-a a produzir as opiniões que agradam ao senhor. Mal se ousa resumir essa pintura incomparável da paixão, e juntamente do governo tirânico. As revoluções não souberam sem dúvida ensinar a política a ninguém; pelo menos deviam ensinar a muitos o conhecimento dos homens e o preço da sabedoria. De resto, é natural que o homem volte da sociedade a si, e a regular os outros regulando-se a si. Procurando pois em A República a nossa própria imagem, temos que compreender em que sentido se pode dizer  dum homem que é aristocrático, timocrático, plutocrático, democrático, tirânico. Nesse sentido, em primeiro lugar,  que é o mais exterior, é que cada um desses homens é o cidadão qualificado no Estado político que o representa. Mas devemos desviar-nos desta relação exterior, que nos levaria a pensar politicamente. Antes bem é preciso reconhecer, nestes tipos de homem, exemplos dessa desordem interior que define a injustiça. Isso nos conduzirá a formar a ideia mais rara e ainda hoje mais nova. Porque Platão, quando concebe o Estado justo, não olha a nada à sua volta, aos seus vizinhos, às trocas ou às guerras que ele conduz. Tudo o que faz o Estado justo, pelo impulso da sua harmonia própria, tudo isso é justo; e, pelo contrário, tudo o que faz o Estado injusto, entendei mal governado, tudo isso é injusto. Julgar pelos efeitos, é apenas opinião. Eis já uma fonte de meditações sem fim. Porque é formando esta ideia bastante escondida que se apreenderá talvez a verdadeira relação entre direito e força. Não que a força dê direito, porque a força depende também dos acasos, somente se entrevê que, supostos iguais todos os acasos, a justiça interior daria força. Mas, ainda uma vez, desviemo-nos de política; desviemo-nos dos dois Dionísios e de Dion, se podemos. Um outro governo foi depositado nas nossas mãos, que não podemos enjeitar. Olhemos por fim o homem, e formemos esta ideia de que o homem é justo, não pelas ocasiões e a relação exterior, mas pela própria justiça que traz nele, pela harmonia das suas diversas forças. A acção exterior, e digamos política, é sempre ambígua. Diz-se que não é justo tomar o bem de outrem. Mas o quê? Tirar a arma a um louco, ou a  uma criança, não é ser justo? Arrombar a porta do vizinho para extinguir o fogo, não é ser justo? Em resumo, não há nenhuma regra de justiça, a não ser interior, e todo o roubo se regula entre desejo, cólera, e razão. Não julgues os outros, e julga-te a ti mesmo pela tua íntima política. Aqui está posto o indivíduo  na sua independência, como talvez nunca se haja posto. Porque nós não ousamos nunca receber em todo o seu sentido a máxima famosa: “Ninguém é mau voluntariamente.” Sabemos bem que ela implica que o homem livre não comete faltas. De resto, não há talvez um moralista que se prive completamente  de julgar o seu vizinho. Ora, se seguimos Platão, toda a nossa moral se encontra limitada a nós mesmos, e ao segredo da nossa consciência. O que é injusto, diz Platão, e são os seus próprios termos, não é que tu tires o bem a outrem, é que to não lho possas tirar sem derrubares em ti mesmo a ordem do superior e do inferior. Aqui ressoa já a palavra evangélica: “Aquele que deseja a mulher do seu próximo é por isso mesmo adúltero.” Mas Platão, não menos forte, é mais subtil, mais cruel,  dever-se-ia dizer, para as nossas satisfações preguiçosas. Porque mesmo uma acção justa, evidentemente justa, tu não a podes fazer justa se não fores interiormente justo. Não existe moral mais forte; e é a moral de toda a gente. Porque quem admira um homem probo, se suspeitar que é um misto de avidez e de cobardia que o torna probo? E a testemunha verdadeira que só é verdadeira pelo medo do juiz, quem a admira? E o soldado que ataca muito apesar de si, e que não cessa de fugir dentro dele, quem o admiraria? Mal colocado aqui, é verdade, para julgares os outros, mas muito bem colocado, pelo contrário, para te julgares a ti.

Nós somos levados pelo movimento deste pensamento impetuoso, o qual, desde que Sócrates o tocou, se move sempre de fora para dentro. Reencontrar essa segurança de si, esse cento do juízo, é o que importa. Mas permanece qualquer coisa de obscuro na doutrina, e eis o que é. Transportando para o homem as virtudes do Estado, definimos sabedoria, temperança, coragem. Não será que estas três virtudes fazem a justiça? Haveria ainda injustiça no homem purgado de irritação e de inveja? E estas duas virtudes de coragem e de temperança não fariam, com a sabedoria à qual estão submetidas, essa harmonia que é a justiça? A justiça seria então apenas um nome para as três virtudes tomadas em conjunto? Pode-se resolver assim, parece-me. Mas quando se lê Platão, e por essa maneira que é a sua de abrir só um pouco a porta, e muitas vezes voltar a fechá-la, ganha-se sempre em querer compreender até à menor palavra. Pois bem, o que significa essa justiça, que não é nem a sabedoria, nem a coragem, nem a temperança, mas de algum modo um compromisso e uma composição das três? O que é? Por exemplo, limitar a temperança pela coragem, se, lançando-se num cometimento extremo, se passam por precaução os limites do comer e do beber; ou, ao contrário, limitar a coragem pela temperança, se se evita um género de cólera que é desordem e desmesura, embora a razão a aprove: ou então limitar a sabedoria ela mesma, o que é dar lugar à acção e ao desejo numa vida bem composta. Aqui a ideia desenha-se um pouco. Agora, sob a temperança, que é apenas regra negativa,  pensemos a vida nessas necessidades que sempre renascem, nesses prazeres mutáveis que acompanham a saciedade. Reconhecer, receber em si isso mesmo, esse animal que pasce, e prometer-lhe ser, em vez de o reduzir tanto quanto se pode segundo esse ascetismo que se chama temperança, não é justiça em relação a uma parte de si? Da mesma maneira que o sábio monarca, que governa sobre os artesãos, se ele os desprezasse não seria justo, pois que ele próprio vive deles. E, por esse lado, haveria portanto um excesso de temperança, dir-se-ia quase para além dos nossos direitos, e que seria injustiça, como a intemperança seria injustiça  em relação à sabedoria? Quanto à cólera, fonte da acção, sorriso da acção, ou digamos melhor, digamos quanto ao arrebatamento, não haveria um excesso de sabedoria, que seria uma recusa de viver segundo a natureza recebida, e, por uma consequência natural, uma recusa de viver como os outros homens e com eles? Um esquecimento deste mundo de cólera e de desejo? Uma ausência aos homens? A justiça então suporia e mesmo exigiria que se seja homem e com os pés na terra, e que se faça guerra e processo como todos fazem, e que se seja juiz por sua vez; que enfim se compreenda também o inferior e a humilde animalidade, fora de si e em si. Não se deve? Aqui há um pouco de subtileza a mais sem dúvida, que porém faz apreender bem que o equilíbrio entre o ventre e o coração, e mesmo a cabeça, é outra coisa que não a temperança e a coragem, outra coisa, mais difícil e mais bela, tanto quanto seria mais difícil e mais belo viver do que morrer. Este pensamento acorda-se bem com o nosso rústico Sócrates, e não menos com esse Platão tornado velho que volta à Sicília, e medita, segundo uma fórmula famosa desde então, mais sobre a vida do que sobre a morte. Eis um exemplo desses desvios, nesta doutrina prodigiosamente rica, e dessa secreta correspondência entre a vida retirada e a vida segundo as leis do Estado. Haveria pois fraternidade, como nós dizemos, na justiça, ao passo que ela não existe nem na temperança nem na coragem. Platão abre-nos estes caminhos e muitos outros. Seguindo por aí,  encontrareis mais uma vez a ideia, a enigmática ideia, que sempre nos lança de objecto em objecto, e que apenas mostra os objectos mas não se mostra a ela.
Alain
(Tradução de José Ames)

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