terça-feira, 17 de janeiro de 2012

SÓCRATES

ONZE CAPÍTULOS SOBRE PLATÃO

 
I


“O escravo diz que Sócrates ficava solitário à entrada e não vinha por muito que o chamassem… - Deixai-o, diz Aristodemo, é o seu costume…

“- Sócrates, senta-te ao pé de mim, a fim de que eu aproveite desse sábio pensamento que meditaste no vestíbulo.”

(O Banquete)



Deu-se entre Sócrates e Platão um precioso encontro, mas, digamos melhor, um choque de contrários, donde se seguiu o movimento de pensamento mais espantoso que já se viu. Eis por que não se pode por de mais marcar o contraste entre este mestre e este discípulo. A vida de Sócrates foi a do simples cidadão e do simples soldado, tal como é em todo o lado. Sabe-se que ele não era belo à primeira vista. O ilustre nariz chato figura ainda nos exemplos de Aristóteles. Nos vincos desta face, vejo a ingenuidade, o espanto, uma amizade a todos oferecida, enfim aquilo que a polidez primeiro apaga. Sabe-se por mil detalhes que Sócrates era paciente, resistente, infatigável, e que não era feito para ter medo. Sóbrio ou bom conviva segundo a ocasião, e não prestando atenção a estas coisas. Donde se compreende uma simplicidade, uma familiaridade, uma indiferença pela opinião, pelas dignidades e pelos respeitos, como não se viu talvez outro exemplo. Nunca se guardava; não exigia nunca; as suas célebres manhas não são manhas; conheceremos as admiráveis astúcias de Platão. Sócrates não transigia. Os enfatuados desse tempo censuravam-no por causa desses cordoeiros, desses tecelões, desses cozinheiros, dessas colheres de pau, que sempre apareciam nos seus discursos. O Fedro dá-nos uma ideia da poesia  característica deste homem sem elegância. Seguramente não é pouco. Mas concebei este poeta com os pés na água, embriagado de perfumes, de luz, dos ruídos da natureza, e formando com o seu corpo nodoso o cortejo dos Centauros e dos Faunos. Mitologia imediata, que foi sem palavras, neste momento sublime em que o perfeito discurso do orador rolou na erva, em que o jovem Fedro, tudo admirando, participou nesse grande baptismo do filho da terra. Esta rústica poesia foi então muda; mas Platão, no imortal Fedro, aproximou-se tanto quanto se pode pelo discurso. Ó doce amizade, toda de pensamento, e quase sem pensamento! Este sublime silêncio, Platão aproximou-se dele, mais de uma vez se aproximou, nesses mitos famosos que não dizem palavra. Ele contorna-o; apreende a sua forma exterior; e, ele, o filho do discurso, então, nessas divinas passagens, conta, nunca explica, religiosamente diante da existência, evocando este génio da terra e esta inexplicável amizade. Nenhuma existência foi mais pacífica e amiga de todas as coisas do que a de Sócrates. Nenhuma foi mais amiga do pequeno escravo, do jovem senhor, do comerciante ou viajante, do guerreiro, do discursante, do legislador. Esta presença reunia-os a todos inexplicavelmente.

Sócrates era feito para desagradar aos homens de Estado, aos oradores, aos poetas; era por eles requestado. É no Protágoras que se verá melhor como é que estes Importantes, nos seus ócios, brincavam aos poetas, e também como o espírito plebeu de Sócrates renovava esse jogo, por esta curiosidade sem armas que lhe era própria. Platão jovem ouviu-o nesses círculos. Os contrários um no outro olharam-se. O jogo tornou-se pensamento e muito sério pensamento. Platão não se pôs em cena nos Diálogos; mas pode-se ver no começo de A República, como estes dois irmãos Adimanto e Glauco, colocam em jogo a sua ambição, a sua força, todo o seu futuro. São duas imagens de Platão jovem.

Platão, descendente de reis, poderoso, equilibrado, atlético, parecia-se sem dúvida com essas belas estátuas, tão seguras de si próprias. É preciso um raro choque de pensamentos para animar estas  feições, formadas para a cortesia e para o comando. O seu futuro é traçado por esta sóbria atenção que cuida dos interesses, das paixões, da ordem, e que é guardiã e secreta. Os íntimos pensamentos de Protágoras, que Platão nos descobrirá, não são daqueles que confessemos a nós mesmos; ainda menos  dos que se dizem. No dia em que Platão, pelo choque do contrário, os reconheceu nele mesmo,  perdeu-se para a república. É preciso que um homem de Estado se guarde, por esta arte que lhe é própria, de argumentar sempre contra si. Estes jogos de advogado, que são todo o pensamento no governo popular, formam para todos  como um mundo exterior de todos e consistente o bastante, discurso contra discurso, à maneira das coisas, onde o obstáculo faz apoio. Mas o homem de Estado, arquitecto desta ordem ambígua, pleiteia de antemão e em si mesmo; argumenta com vista a adivinhar; ele pensa como o outro; e nunca refuta completamente, porque é preciso que todo pensamento encontre o seu remédio. Tal é o fundo da arte sofística, demasiado desprezada, mas não assaz temida. Platão vai trazê-la à luz; é que era a sua arte própria, e todo o seu futuro aos quinze anos. Ora, este jogo interior e em parte secreto, Sócrates joga-o no exterior e de boa fé. Ele pensa como o outro e com o outro; e é isso mesmo que anuncia ao outro. “És tu que o vais dizer”, eis a palavra mais espantosa desta Maiêutica, arte de parteiro que tira a ideia não de si mas do outro, a examina, a pesa, decide enfim se é viável ou não. Isso foi imitado muitas vezes depois, tentado muitas vezes; mas só se viu um Sócrates no mundo. Aquele que interroga tendo em vista instruir é sempre um homem que sabe que sabe, ou que crê que sabe. Sim, mesmo no monólogo platónico, Sócrates é mais vezes mestre do que discípulo; Sócrates sabe muito bem para onde vai; e o discípulo, neste diálogo que se pode chamar de construtor, responde sempre: “Sim, certamente”, ou “Como é que podia ser de outra maneira?” Teremos que seguir este árido caminho. Sócrates aqui regressa dos mortos, e sabe que sabe. Ao passo que Sócrates vivo sabia somente que nada sabia. Acordava tudo o que podia acordar; fiava-se no discurso, tomando inteiramente a sério esta língua que foi para ele mãe e ama, em que o discurso é a mesma palavra que razão. Seguia, pois, discurso após discurso, e só parava nesse ponto de resistência onde o discurso se nega a ele mesmo. Tu dizes que o tirano é muito poderoso e eu acredito em ti; tu dizes que ser poderoso é fazer o que se quer, e eu acredito em ti: tu dizes que um louco nunca faz aquilo que quer, e eu acredito; tu dizes que um homem que galopa segundo os seus desejos e as suas cóleras não faz de modo nenhum aquilo que quer, e eu acredito. Agora tu dizes  que o tirano, que galopa atrás dos seus desejos e das suas cóleras, é muito poderoso, e aqui eu já não acredito em ti, mas melhor dizendo tu também não acreditas em ti. “És tu que o vais dizer.”

Não penso que Sócrates vivo tenha ido muito longe nesta via. Platão, nos seus desenvolvimentos mais ousados, abandona-nos muitas vezes aí, por uma piedosa imitação, segundo creio, do silêncio socrático. De resto, comparava-se Sócrates  à tremelga que entorpece aqueles que a tocam; ou a esses jogadores de xadrez que fecham o jogo. Certamente o Sócrates vivo não tinha pressa de saber. “Somos escravos, ou temos vagar?” Este traço do Teeteto soa verdadeiro. Verdadeiro também esse  movimento de Sócrates depois dos primeiros discursos de A República, quando se quer ir embora. “Demasiado difícil, diz ele; demasiado longo; pedis-me demasiado.” Basta-lhe, ao que creio, que o discurso bata contra o discurso. Basta-lhe que a máquina dos discursos, arrogante e governante, ranja e fique bloqueada. Dispensado então de a respeitar, ele que tão bem obedece, vai-se. Aqueles que o retêm pelo seu manto, não são os oradores, como Górgias, Pólos, Protágoras; porque são homens depressa fatigados, que se retiram um após outro da cena. E talvez esses homens cheios de recursos não façam tanta questão em ter razão. Não. Os que o retêm pelo seu manto, são os auditores ingénuos, de que Cherefon é o tipo, ingénuos como ele, fáceis de levar desde que nasceram, e que admiram esse outro poder que recusa poder. Ou então são esses leãozinhos, Adimanto, Glauco, o próprio Platão, ambiciosos no seu começo, e que procuram, como Cristóvão, o senhor mais poderoso.

Aristóteles, em quem devemos acreditar aqui, diz de Sócrates que tentava definir o género nessas questões de moral, e que foi essa disciplina que lançou Platão na doutrina das ideias. É comum que nos enganemos nisto sobre Platão, emprestando-lhe uma doutrina dos géneros eternos; mas é porque nos enganamos primeiro sobre Sócrates. Sócrates fiava-se no discurso, e, querendo acordar o discurso ao discurso, exigia que a mesma palavra tivesse sempre o mesmo sentido. Por exemplo, a respeito da coragem, não se deve negar aquilo que se afirma; e qualquer que seja o caso ou a circunstância, é preciso que a coragem seja sempre coragem; do mesmo modo é preciso que a força seja sempre forte, e a virtude sempre virtude. A discussão, desde que seja de boa fé, supõe que a mesma palavra cubra os mesmos pensamentos. Assim estes pensamentos se aplicarão os mesmos, deverão aplicar-se os mesmos, em todos os casos diferentes em que se queira empregar a mesma palavra. A definição, explícita ou implícita, supõe uma ideia geral; mas uma ideia geral está longe de ser uma ideia imutável e eterna. E está fora de dúvida que não é para o lado das generalidades empíricas que Platão nos quer conduzir. Mas também o termo de que se serve Aristóteles é daqueles que enganarão sempre e por muito tempo o aprendiz;  porque ele não diz que Sócrates procurava o geral, mas exactamente o universal, o católico como nós dizemos, traduzindo literalmente uma palavra que terá sempre dois sentidos, mas dois sentidos dos quais um é o principal. O universal é o que é válido para todo o espírito. Por exemplo, o triângulo é universal; só é geral como consequência. E ao contrário o homem é uma noção que apenas é geral, e que está bem longe de ser universal, porque cada um definirá o homem à sua maneira, e segundo a sua própria existência. Por isso não podemos vangloriar-nos de ter uma ideia do homem, ou do macaco, ou do leão, ou do leito; mas são antes abreviaturas cómodas. Por isso aquele que procura o geral pode muito bem falhar o universal. Em contrapartida, aquele que procura o universal procura também o geral. E, de acordo com a forma própria a esta pesquisa, em que vemos que os homens estão presentes e as coisas não, Sócrates procurava em primeiro lugar a ideia universal, querendo que todos os espíritos  acordassem sobre o sentido das palavras coragem, virtude, força, justiça, o que supõe uma definição que nada possa quebrar. Ora, que ele nunca tenha chegado a definir a justiça e a coragem como Euclides definiu o triângulo, eu o creio; que ninguém o tenha alguma vez alcançado, pode ser. Mas, destas tentativas, tão pouco dogmáticas, ressalta uma condição mais alta. Que o espírito universal esteja presente em toda a discussão, é o que é evidente, mesmo pelo acordo impossível, mesmo pelo desacordo sem remédio; porque os espíritos se reencontram nisso; e não haveria nenhum desacordo sem este acordo sobre o desacordo. De maneira que num sentido Sócrates ganha sempre.

Ora, este raciocínio abstracto que acabo de fazer é bem fácil de seguir; todavia é apenas um  pensamento fraco e abstracto. Pelo contrário, o que não se viu, sem dúvida, senão uma vez, é Sócrates confiante no outro, que é não importa quem, ou o homem de Estado, ou o pequeno escravo do Menon; é Sócrates não se detendo perante a ignorância,  a má fé, a frivolidade; Sócrates recebendo o juízo do adversário, pensando como ele, seguro dele e de todos; Sócrates fazendo soar e escutando  soar o humano; buscando o semelhante no outro, ou, melhor dizendo, encontrando-o imediatamente, por uma amizade até então sem exemplo. Sem armas escondidas. É assim que da sociedade polida ele logo fazia sociedade verdadeira. Todo o homem tem grande necessidade deste testemunho. Platão viu e tocou o espírito universal neste homem sem medo; é por isso que a partir de então Sócrates devia ser o assistente e a testemunha dos seus melhores pensamentos. E ainda agora, através de Platão, é para Sócrates que olhamos. O que nos falta, é crer de facto no universal; é sabê-lo presente no menor pensamento, mesmo que o negue. Se participamos nós mesmos nessa presença de Sócrates, compreenderemos Platão.

Quem tem o Platão das ideias, não tem ainda todo  Platão, como se verá.  Quem não se apercebe do bem para lá das ideias perde até as ideias. Este grande ponto de perspectiva, e mais do que essencial, orienta todas as nossas avenidas, e de várias maneiras, que são todas verdadeiras. É preciso primeiro saber que o Sócrates que interroga, que não sabe nada, que não pretende nada, que se resigna a ignorar, que quer vagar, que depressa escapa, é só ainda o exterior, o Sócrates que participa nos jogos do discurso, preocupado somente em não se deixar apanhar como numa armadilha. O verdadeiro Sócrates, é em primeiro lugar um homem sem medo, e um homem contente. Sem riqueza, sem poder, sem saber, e contente. Mas há bem mais neste duvidador. Como a dúvida é já o indício duma alma forte, e segura de pensar universalmente, assim a indiferença pelos bens exteriores e pela opinião é o sinal dum grande partido antes de qualquer prova. Esta firmeza que se mantém no centro dos discursos é representada no Górgias, e no começo de A República. O mais poderoso discurso dos homens de Estado exprime assim a sua ilusão, se assim se pode dizer, substancial, é que a virtude é uma relação dum homem aos outros homens, uma troca, um comércio, uma harmonia enfim da cidade, uma composição das acções e das reacções, um compromisso entre as forças. E quanto a essa outra virtude, que seria própria dum homem e no seu interior, aparece como qualquer coisa de selvagem e de indomável a esses homens governantes, que apenas governaram contra o homem. A natureza aqui é excomungada. Segundo a natureza, não há outra virtude senão a força. E é preciso notar que este sentimento de dupla face, que é o segredo do ambicioso, é também o que alimenta a ideia de ordem, que seria por si mesma bastante fria. Ora, Platão,  dum primeiro movimento, pensou de início e sempre segundo estas ideias; não há dúvida sobre isso. Nenhuma tese é mais brilhante, mais inspirada, mais soberana do que a de Cálicles. O Cálicles de Platão é o eterno modelo do ambicioso. Mas uma vez que se vê que esta doutrina da força foi estendida até ao sacrilégio pelo impetuoso pensamento de Glauco e de Adimanto, é uma razão ainda mais forte; Platão pinta-se aqui como poderia ter sido, tal como receia ser. Em contrapartida, o Sócrates que diz não a estas coisas é pintado piedosamente e fortemente. As razões virão a seguir, sobretudo em A República, então luminosas e tais como as julgo invencíveis. Se elas são todas de Platão, ou se Sócrates pressentia mais do que uma, é o que não se pode saber; ou antes temos razões para pensar, porque houve outros Socráticos para além de Platão, e nomeadamente os Cínicos, que a doutrina que é própria de Sócrates se traduzia aqui por máximas sóbrias sobre o governo de si, ou por raciocínios curtos do género destes: aquele que não é senhor de si mesmo não é senhor de nada; ou: quem quereria ficar com todos os bens para si, sob a condição de ser louco? A melhor razão de pensar que esta doutrina interior só foi amplamente desenvolvida em Platão, é que em Platão ela tinha que vencer o seu contrário, e o seu contrário fortemente entrincheirado. De qualquer maneira, aquilo que Platão nos representa primeiro em Sócrates, não é um homem tornado sábio pelas razões; é antes o mais seguro dos homens antes de todas as razões; o mais seguro disto, é que o homem que espera e agarra a ocasião de faltar à justiça, mesmo que tivesse sucesso em tudo, é no fundo dele mesmo bem doente, bem fraco, e bem punido por esta íntima escravatura. Quem quereria ser injusto? Mas perguntai antes quem quereria estar doente? Compreende-se aqui todo o sentido do “Conhece-te a ti mesmo”, máxima Délfica que Sócrates julgou suficiente. Donde o célebre axioma: “Ninguém é mau voluntariamente”, que aparece mais de uma vez nas conversas socráticas, que ressoa tão justo em todo o homem, mas que também, desenvolvido por essa razão abstracta de que todo o homem quer o bem, e o mal sempre em vista do bem, se torna logo impenetrável. Bastaria que eu fizesse ver, nestes capítulos, como Platão o esclareceu completamente. Sócrates viveu, conservou-se, e finalmente morreu, conservando-se ainda, segundo esta ideia que o mau é um desastrado (*). Por esta mesma prudência, que, dizia ele, o aconselhava a retirar combatendo, em vez de virar as costas, Sócrates não invejava em nada o tirano, lastimava-o. E notai como esta ideia é vacilante em nós todos, embora não queira morrer. Tudo fala contra ela; e, como diz Sócrates, é só isso que se ouve. Ora eu penso que Platão acabou por pensar que se podia provar estas afirmações incríveis de Sócrates, a partir da altura em que soube que Sócrates estava seguro delas; e isso, como é regra, só surgiu de facto através da morte que toda a gente conhece, e que felizmente é inútil contar. No Fédon e no Críton aparecem esta certeza retirada nela mesma, esta firmeza sem arrebatamento, esta vontade de obedecer, e este desprezo também da obediência, este espírito  enfim  que não obedeceu para se salvar e que só obedeceu para se perder. Perder-se, salvar-se, estas palavras a partir daí tiveram um sentido novo. Sócrates morto apareceu inteiro. Platão não era só ele mesmo,  trazia em si o seu contrário, e por longos anos conversou em segredo com este contrário que era mais do que ele mesmo. É sem dúvida permitido acrescentar que, pela idade, Platão acabou por se encontrar algumas vezes só, e tornou-se político segundo a sua natureza, e pelos meios normais do poder, embora com outros princípios. As Leis são o belo poente deste génio solar; e as aventuras sicilianas seriam, aos olhos de Sócrates, essa punição e purificação de Platão por ele mesmo, que acabou o Imortal.


* (o fim da frase, suprimido, exprimia esta ideia: o que a palavra méchéant diz tão bem; de facto, mal échoir é calhar mal)

Alain
(Tradução de José Ames)

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