terça-feira, 24 de janeiro de 2012

TIMEU

VI



“Uma imagem móvel do eterno…
“Deus sensível, imagem do criador, muito grande, muito    bom, muito belo, tal é o céu único.”
             (Timeu)



No alto, em baixo, metáforas que exprimem essas elevações e essas quedas, esses perdões e esses recomeços que são o nosso lote. Não se ousaria dizer que a imensa existência está descrita como é nas célebres imagens do Górgias, do Fédon, de A República. Mas também Platão soube dizer-nos que estas visões de passado, futuro, mortos, renascimentos, não são o mundo tal como Deus o fez. O Timeu não oferece essas nuvens, esses poentes, esses crepúsculos. Pelo contrário, duma claridade fixa,  ilumina o reino das sombras. Aqui é o verdadeiro sol, em relação ao qual o terrível eclipse nada é. Mas, como não é mau jogar ainda com a sombra que nos fez medo, da mesma maneira devemos, ainda uma e vez e mais, desenhar para nós mesmos a aparência do que foi e do que será. Estas viagens de mil anos, estas provas, estas novas escolhas, estas ressurreições sem memória, estes célebres quadros que imitam tão bem a cor dos sonhos, tudo isso representa maravilhosamente a nossa situação humana, e este sério frívolo, esta mistura de lama e de ideias, e ainda esta alma inacessível, indizível, que quer que tudo isso seja, que se esforça, que se transvia e a cada instante se salva, e de novo se perde, sempre ingénua e de boa fé. Porque somos assim feitos, desta mistura, que não há queda sem ressalto, nem também sublime sem recaída.  Cada dia voltamos a cair no inferno, e sempre mais baixo do que cremos, por esse desprezo de pensar. Cada dia o mais sábio dos homens destrói e devora, e não pode sequer libertar-se do prazer, menos incómodo do que a dor, mas mais humilhante algumas vezes. Feliz talvez aquele que não encontra demasiado prazer em descer. Feliz aquele que é primeiro punido. Mas, como dizia Sócrates, teremos sempre que recomeçar?

Tudo recomeça; tudo já foi mais belo; tudo foi pior. Todas as virtudes floriram; todas as faltas foram cometidas. Mas o esquecimento, essa morte, recobre as nossas experiências. Assim, vêem-se as almas do Górgias, no caminho da prova, tristes, e levando a sua condenação escrita nas costas; assim cada um julga o seu vizinho. Essa espécie de luz transversal, sem nenhuma prova, é própria de Platão. Vejo Sócrates mais arrazoador, mais próximo da terra, mais severo também. Parece que a alma altiva de Platão se perdoava mais coisas. E não é verdade também que ele foi iludido até à extrema velhice, formando a esperança ainda de salvar os homens apesar deles e pela força das leis? É contar demasiado com o Demiurgo, ou melhor é imitar do Demiurgo o que muito justamente ele não fez. É erro de imaginação, erro de poeta. É crer que o destino será melhor amanhã do que foi ontem. Mas o destino é imutável, como esses imóveis movimentos do Timeu no-lo fazem entender; e é porque o destino é imóvel que a nossa sorte depende de nós. Sócrates calava-se; mas soube ousar; soube obedecer; soube morrer. Talvez só tenha feito uma metáfora, quando pediu  se se podia fazer uma libação com a taça fúnebre, e que isso lhe foi recusado. Estes traços não se inventam. Não está aqui o mesmo homem que, na sua prisão, aprendia a tocar lira? “Porquê, pergunta o carcereiro, por que queres tu aprender a tocar a lira, se vais morrer?” –Mas, respondeu ele, para saber tocar a lira antes de morrer.” Esta confiança inexprimível, que é a própria vida na sua ingenuidade,  no seu renascimento, Platão, eterno discípulo,  soube exprimi-la na linguagem do corpo, que não engana, mas que só instrui também através duma piedosa imitação. A esperança não é mais do que o canto da virtude. Porque, uma vez que tudo se liga nesta existência tão bem ajustada, e pois que a duração só é pensada como eterna, pode muito bem ser que a existência baste a tudo, e que o homem não tenha tanta necessidade de Deus. Eis por que o Demiurgo do Timeu, depois de ter arredondado os círculos incorruptíveis segundo o mesmo e segundo o  outro, e depois de ter polido o todo por fora, a fim de acabar duma vez toda a existência, retira-se então nele mesmo, deixando aos deuses inferiores, aos génios, aos homens, aos animais, correr cada qual a sua sorte conforme a invariável lei. O que significa esta pronta morte das cidades florescentes, seja pelo fogo, seja pela água, estranho prólogo dessa criação, e a Atlântida no fundo do mar, recife ou banco de vasa que mal desvia as nossas barcas. Esta palavra ressoou mais de uma vez como um canto de alegria ao homem que ultrapassa: “Isso já foi, e será sempre.”

                   Aqui titubeará, sobre a barca sensível
                       A cada ombro de onda, um pescador eterno.  


E se tu perguntas porquê, é porque não sabes o que é um porquê. Como a queda não é de outrora, mas de agora, a salvação não é do futuro, mas de agora; e cada minuto basta a quem pensa, como também os séculos são nadas para aquele que amontoa. Assim, a mitologia toda se dobra, do fundo das idades e do fundo dos céus, toda se dobra sobre o menor dos nossos pensamentos. Aqui, o Fédon  abre as suas profundezas. Reviver ainda? Risco. Belo risco. Mas quem faz a duração? Não revives tu agora do teu sono? Não revives tu o bastante, pois que é agora? E que tens tu que fazer com esse futuro que não é? Onde o eterno melhor do que num pensamento? Valeria tanto esperar o dia seguinte para ser sábio, e saber, e poder. O que é saber amanhã? O que é poder amanhã? Sócrates, aprende a música.

Não há pensamento no mundo que seja tão positivo, tão premente, tão aderente à nossa situação humana do que o de Platão. Tal é o peso de Sócrates neste espírito naturalmente alado, de Sócrates, tão directamente empenhado em viver cada momento, em despertar-se e em salvar-se a cada momento. É verdade também que, pela felicidade de adiar, que é própria da imaginação, os felizes pensamentos do nosso poeta se projectam no tempo, sombras sobre sombra. Assim o progresso se desenvolve num imenso futuro e sem fim, em que mil anos são como um instante. A este futuro responde um passado sem começo, e esse povo das almas, que reencontra em cada encarnação todos os seus pensamentos sem a recordação. Contos? O difícil é dizer onde começa o conto; porque não se pode desconhecer, no Fédon, um esforço continuado com vista a dar ao conto a consistência dum pensamento. É o único caso, parece-me, em todo Platão, onde, em vez de se procurar sem encontrar, se põe primeiro, pelo contrário, o que se quer provar, e se lhe procuram  as provas. É verdade também que tudo treme um pouco no Fédon. Não que Sócrates tenha medo; mas todos esses homens estão como que agarrados a ele. Eles, arriscam-se agora a morrer. Eis por que a esperança acorre dos tempos passados; precisa de outras almas, e que estejam já mortas mais de uma vez. Já mortas? Mas o que faz a alma deles e a nossa, senão morrer e reviver nesses pensamentos que é preciso sempre refazer? Somente, era preciso um pouco de tempo antes de contemplar a morte de Sócrates sob o aspecto do eterno. Por um acaso infeliz, que só foi infeliz um instante, Platão não assistiu Sócrates nessa morte. E essa morte, por essa ausência, começou a existir. Assim a ausência é julgada.

De resto, depois dessa pesquisa emocionante, e essa caça às sombras, é ainda Sócrates que nos tranquiliza, conduzindo esse passado e esse futuro a si.  Essa vida futura, é um risco a correr, e esse risco é belo; belo agora. É belo agora fazer como se se acreditasse e de se encantar a si mesmo. Ora, as razões por que isso é belo e por que aquele que se encanta disciplina como é preciso a imaginação, essa razões aparecerão de seguida. Mas é preciso agora procurar o que significa este encanto, e que género de ser ele faz ser. Todos os antigos chamam sombras, como Homero, a essas almas que já viveram e que não estão completamente mortas. Ora, pela Caverna, nós sabemos o que são sombras. Acontece que entre os mitos Platónicos, esse significa exactamente aquilo que nós somos, o que pensamos, e o que sabemos pela inteligência nesta vida presente. A evasão, já compreendemos, é apenas metáfora. As ideias são a verdade das sombras, e nelas. A imaginação é reduzida pelo outro sentido desta espantosa parábola, em que, porque cada termo material tem um sentido intelectual bem determinado, não fica nada para crer, senão que o pensar salva todo o crer. Assim não há nenhum risco. Não há nenhuma caverna, nem golilha; há apenas um homem que se desperta. É um outro mundo, e é sempre o mesmo mundo. Céu de ideias, ideias descendentes, e primeiro transcendentes, tudo isso são só metáforas; o lugar convém às sombras. O desvio matemático faz-se sem um movimento do sábio, apenas por uma recusa das sombras, e depois por uma reflexão sobre as sombras. Porque nada é falso nas sombras; nada é falso aqui a não ser o juízo do homem. Apresentar-se-á ainda um outro mito inteiramente verdadeiro, e que reconduzirá a esta vida todo o julgamento derradeiro, a esta vida a pena, e pela própria falta. Duas vezes teremos ouvido Platão sem possibilidade de erro. É o suficiente para que não nos enganemos com as suas outras imagens.

Reminiscência, vida anterior, vida futura,  Como é que Platão o entende? Ele entende-o, diria eu, como entende que as almas escolhem o seu embrulho, ou como entende que o cativo se evade. Não descubro a geometria; reencontro-a, reconheço-a; que significa? É que onde eu não a via, quando a compreendo sei que a via. Isso que me provais, eu sabia-o; isso era já verdade, aqui, diante de mim. O tempo é abolido. De resto, o tempo é abolido desde que se pensa o tempo; futuro, presente, passado, tudo junto. O passado não pode ser nada de passado. O que existiu, é o que eu tenho que pressupor para explicar o presente, um estado menos perfeito e mais perfeito ao mesmo tempo. Conjuntamente, a idade de oiro e a barbárie, o paraíso e a queda. Se eu reencontro a geometria, é que eu a sabia; mas, se a reencontro, é porque a tinha perdido. O tempo passado significa somente uma falta que eu não deveria ter cometido. Fora deste debate contra mim mesmo, não existe passado. Se as coisas envelhecessem, estariam mortas há muito tempo. Reparai aqui em qualquer coisa dessa natureza eternamente a mesma, por esta volta das estações grandes e pequenas. Esta volta é a imagem do eterno; e é por aí talvez que se pode começar a compreender o argumento dos contrários no Fédon, depois de o termos julgado impenetrável. Porque é quando o sol está em baixo que se anuncia que vai estar no alto; mas ainda bem melhor, nesta vida pensante, eu não encontro o tempo e a mudança a não ser por esta passagem do sono à vigília  e da vigília ao sono, que existe em todo o pensamento. Assim, é bem a reminiscência que prova a vida anterior, e é bem a vida anterior que prova a vida futura. Pensar isso, é pensar. De passado em passado, de futuro em futuro, o tempo desenrola as suas avenidas, muito inutilmente; é sempre a situação presente que é a verdade de todas as outras. É loucura pensar que um longo erro prepara para conhecer, e que uma longa falta faz amar a virtude. Em contrapartida, não há homem que não tenha algumas vezes formado esta ideia de que um belo momento vale por si só um longo tempo de vida sonolenta. De resto, longo tempo e curto tempo são apenas sombras na minha vida presente. Sob o aspecto da duração, a vida não seria, pois,  mais do que um sonho. Este pensamento ressoa em todo o lado em Platão.

Por oposição a este mundo dos que morrem, estimai pelo seu justo preço essa cintilante pintura do Timeu, outro sonho, mas cujo sentido rebenta quando se errou por muito tempo em caminhos crepusculares. Nestas ideias entrelaçadas segundo a sua lei,  nesta alma do mundo mexendo o caos e comunicando-lhe esses movimentos balanceados, em todas essas almas em baixo salvando esses mesmos movimentos contra a usura da pedra e da areia, nestes elementos mesmo que descobrem na sua desordem uma sabedoria fixada, cristalina, os pequenos triângulos, imagem da verdadeira geometria, neste grande edifício reconheço a minha morada, a ordem imensa à qual estou submetido, e que é ordem somente, por mim ou contra mim conforme eu quiser. Sem poder tomar à letra esta criação para sempre, reconheço nela essa grande ideia dum mundo razoável, sem nenhuma falta; e é sempre bem preciso  que eu reconheça que não existe erro nestas acções e reacções de coisas que são apenas coisas; assim, é preciso sempre que eu as nomeie  também ideias, como os pequenos triângulos mo fazem entender. Mas esta matéria perfeita e indiferente faz-me compreender também o que é razão abandonada e sabedoria que se confia ao futuro. Tudo isso o mesmo e sempre o mesmo. Porque, se a Atlântida revivesse, se a idade de oiro revivesse, se a república de Platão governasse todos os homens pelo melhor, não haveria por isso um átomo de virtude nas almas, e tudo estaria por fazer de instante em instante, temperança, coragem, justiça, sabedoria, sob a pressão da terra original, eternamente original. Sempre o homem terá de pôr de acordo esta cabeça redonda, em forma de céu, com o tórax fervente, lugar de cóleras, eterno lugar de cóleras, com o insaciável ventre, eterna fome. E este acordo nunca será nem cabeça, nem tórax, nem ventre; este acordo não será jamais coisa. As coisas fazem tudo o que podem, e tudo o que elas podem está já feito e refeito; assim, sempre outras, elas são outras, pode dizer-se, sempre da mesma maneira. O pé leva-nos impetuosamente; repelindo a terra pela sua forma; o ventre deseja pela sua forma; o coração ousa pela sua forma; e nada em tudo isso é um homem. Não te fies no que dura.







Alain
(Tradução de José Ames)

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