III
“Estive perto do homem, eu muito jovem e ele bastante velho; pareceu-me ter uma profundeza absolutamente de grande raça.”
(Teeteto)
O que há de mais belo no célebre Parménides, é que Sócrates é nele ainda jovem; assim Platão não era nascido ainda; alguma coisa da doutrina se elabora antes dele, sem ele. São como que pensamentos abandonados a si mesmos, e que preparam a sua vinda. Procurar-se a si tal como se era antes de nascer. É o movimento humano; porque nós não nos aventuramos a pensar primeiro a não ser sob a máscara dos nossos predecessores. Pensamentos meteóricos. Um céu tempestuoso de princípio, onde alguns raios penetram; e depois tudo ri, o éter aprofunda-se; são pensamentos desse país.
Em primeiro lugar, sobre as ideias, sobre a participação das coisas nas ideias, sobre a relação das coisas a Deus, são réplicas a meia voz entre Sócrates e os dois áugures, Parménides, o filósofo do Uno, e Zenão, o Zenão da flecha e da tartaruga. Todavia estes dois ilustres deixam por um momento a sua doutrina própria, como se dela estivessem saciados, e conversam sobre as ideias eternas por alusão, como dum assunto cem vezes debatido, e já caído no lugar-comum. É pelas ideias que as coisas são isto ou aquilo, grandes ou pequenas, belas ou feias, mas como é que isso pode ser, se as ideias formam também elas como que um mundo de coisas eternas e incorruptíveis? Como é que cada ideia, sendo única, pode juntar-se a várias coisas? Não será pela semelhança que se faz esta união, e a semelhança não é outra ideia, distinta da ideia e da coisa? Ou ainda a ideia comum à ideia e à coisa não será ela uma ideia, e assim sem fim? Haveria, pois, ideia de ideia, e então quando pensaríamos nós? Que termo fixo, que ponto de socorro e de certeza, se nos deixamos levar a pensar o que quase todos pensam, a saber que as ideias se assemelham às coisas, e são como modelos de que as coisas seriam cópias imperfeitas? Na verdade, esse mundo das ideias é tão fugidio como o outro. Suspeitaríamos nele uma espécie de movimento e de geração. Mas o que há de mais absurdo, nestes pensamentos de Deus? De resto, esse mundo superior basta-se a si mesmo, e é bem preciso. O que se relaciona com a essência do senhor é a essência do escravo, e não o escravo; em contrapartida, o escravo aqui não é de modo nenhum o escravo duma ideia como seria a essência do senhor; mas é o escravo dum senhor de carne, como ele submetido à mudança de todas as coisas perecíveis. Por esta mesma razão a ideia do comando supremo, que é a de Deus, não pode comandar aqui, da mesma maneira que a ideia do saber supremo, que é ainda a de Deus, não pode saber aqui. Imensas dificuldades, conhecidas, experimentadas, esgotadas pela maior parte dos que se arriscaram nestes caminhos. Um Platonismo vai-se moribundo, e Platão não nasceu.
Sobre isso, que devemos nós compreender, nós que lemos? Estas dificuldades parecem-nos lestamente apresentadas, para não dizer de pouco peso. O que nos parece difícil, é sustentar no nosso pensamento esse mundo de formas separadas, esse mundo de modelos que deve assemelhar-se ao nosso mundo, reflecti-lo até ao detalhe, portanto, engendrando nele mesmo eternamente (mas como é possível?) até às mudanças inapreensíveis, até às coisas efémeras e de pouco que vemos aqui em baixo. Porque, enfim, é preciso que esse mundo das ideias seja a verdade do nosso. E a nossa objecção não é:”Como é que ele se reunirá ao nosso?” Mas antes: “Como se distinguirá do nosso?” Acrescentemos a isso que se ele se distingue embora se assemelhe, a ideia mesma desta relação entre os dois mundos formará um terceiro mundo ainda, igual àqueles dois, mas mais rico do que eles pela sua diferença. Parménides anuncia a Sócrates bastantes outras dificuldades além das que enumera como que a correr. A nós portanto de errar aqui, cada um à sua maneira, neste Platonismo falso que não se pode matar. É muito divertido notar que é o próprio Platão que nos adverte, e que nos mostra, neste grande preâmbulo, qual é o erro que primeiramente devemos sacudir de nós, se quisermos saber mais adiante. Mas qual erro?
Em Platão, a resposta encontra-se sempre, e muito próxima da pergunta, mas sempre também sem se ligar à pergunta. Este autor sem cessar se desata, imitando de Sócrates essas digressões, essas rupturas, essas fugas, essas súbitas mudanças de posição que tanto contrastam, em todos os Diálogos, com a cerrada sequência das perguntas e das respostas. A advertência encontra-se no começo da conversa, quando Parménides pergunta a Sócrates, tão curioso do bem em si e da virtude em si, se ele crê que exista também uma ideia, uma ideia eterna, do homem, do fogo, da água. E quanto às coisas vis, como cabelo, lama e sujidade, que haja uma ideia eterna lá em cima, Sócrates não ousa dizê-lo. “Isso é porque tu és jovem ainda, Sócrates; é porque a filosofia não te prendeu ainda, como creio que o fará um dia, quando deixarás de desprezar o quer que seja.” Enigma, se nos atemos a querer que a essência de cada coisa seja eternamente e à parte da coisa. Enigma, se queremos que cada coisa seja como a cópia duma ideia. Enigma, se queremos que a ideia se assemelhe à coisa, e, melhor dizendo, seja uma outra coisa. Que a ideia exista e seja objecto, que as ideias se limitem, se choquem, se misturem como fazem as coisas, e sejam enfim justapostas, como são as coisas, numa palavra que elas existam como as coisas existem, estas suposições definem um idealismo demasiado pronto, não o bastante desligado das aparências, e, num outro sentido, com demasiada pressa de desprezar a aparência, e procurando, para além da aparência, algum outro mundo que explicaria termo a termo a aparência. Mas o outro lado da coisa é ainda coisa, e o outro mundo é ainda este mundo. Eu advirto o leitor, por antecipação, disto, que as ideias em Platão não têm de modo nenhum a forma de coisas, nem função de lhes dar a semelhança ou o modelo.
Aristóteles, discípulo ingrato, diz que Platão mudou somente as palavras no sistema de Pitágoras. Pitágoras dizia que as coisas imitam os números; Platão diz que as coisas participam das ideias. Quando se tiver compreendido como é que as coisas, tais como aparecem, supõem a relação, que lhes é substancial, embora evidentemente não seja delas, julgar-se-á que essa mudança de palavra não era uma pequena mudança. E, conforme os exemplos já tirados do Teeteto, suspeita-se que a relação se mostra na coisa, e que mesmo se separa dela, mas que, considerada em si mesma tanto quanto o discurso permite esta abstracção, não guarda nada da coisa, e furta-se à imaginação. E o erro é aqui de imaginar em vez de pensar, de imaginar um modelo do homem com o qual o homem se pareceria mais ou menos. Metáforas. Mas é preciso convir também que o erro era difícil de evitar, pois que Aristóteles parece não ter apreendido a importante diferença entre imitação e participação. Não é que a segunda destas palavras seja por ela mesma muito clara, mas era muito afastar a primeira, que, ela, é demasiado clara. Esta cegueira de Aristóteles faz escândalo na história das ideias. Gostaríamos de dizer que Aristóteles, escutando Platão, seguia já no seu espírito a outra filosofia, que é uma filosofia da natureza, em relação à qual a ideia, tanto quanto o número, é apenas um artifício de representação. Voltando ao Parménides, saibamos bem que Platão não nos diz tanto como isso, nem neste diálogo nem em qualquer outra parte. Em lado nenhum ele se deixa envolver ou atar. Escapa como a ideia sempre escapa. Pelo menos aprendemos um movimento de procura que é de espírito, não das mãos.
Eis que agora tudo muda, e que o velho Parménides consentindo em dar alguma ideia, ao jovem Sócrates, dos exercícios que se devem praticar preliminarmente, se se quer esperar apreender, na sua preciosa verdade, o belo, o bom e o justo. Aqui começa um jogo de discurso, o mais abstracto e o mais fácil, e que parece o mais vão, o mais sofístico, o mais inútil, o mais oco que possa ser. Para levar o discípulo a tomar a sério este jogo, só o suficiente, mas não demasiado, é útil lembrar o que era Parménides, e quais os paradoxos que ele lançou no mundo. Nada é mais fácil de compreender logo que nos atenhamos ao discurso. O ser é e o não-ser não é, tal é o axioma inicial. Donde se tira que o ser é um; porque se fosse dois, um dos dois não seria o outro; e não ser não se pode dizer do ser. Indivisível também; porque dividido por quê? Por um outro ser? Mesma impossibilidade. Um pois, sem semelhante, sem partes, tal é o ser. Tudo o que é, ele é. O que não é não é nada, e portanto não tem qualquer potência de alguma vez ser; o que não é não será. O ser não se tornará naquilo em que não é. Absolutamente não pode devir, nem mudar em nenhum sentido. É imutável. Imóvel ainda mais evidentemente. O movimento das partes é nele impossível pois que não tem partes; o movimento do todo não tem sentido, uma vez que o ser não tem relações com o quer que seja. Zenão, o discípulo, é célebre por ter provado directamente, atacando a própria aparência, que o vários não é e que o movimento não é. Estes últimos argumentos são os melhor conhecidos, e não se deixam desprezar; é mesmo pela flecha e Aquiles que se perceberá alguma resistência lógica nessas construções aéreas. De Parménides sabe-se bem o que concluía; tiram-se facilmente as provas do que Platão o faz dizer. Que género de provas? Lógico no sentido rigoroso da palavra, isto é, fundado unicamente no discurso. Que a lei do discurso seja a lei das coisas, é a suposição talvez mais temerária que se pode fazer; mas é difícil bani-la completamente dos nossos pensamentos. Segundo as severas lições de Kant, colocamo-nos agora belas questões. “Quando construo o triângulo e o percebo, estarei no caminho da ideia? Não serão antes os meus discursos invencíveis, invencíveis a partir duma hipótese, que me aproximam da ideia?” Parece que a coisa nua não pode trazer a prova, nem tampouco o discurso nu. Ver-se-á, suspeita-se já que Platão interrogava da mesma maneira o triângulo, o quadrado, o círculo. E é preciso saber que esta querela do espírito com ele mesmo não está terminada. A pura lógica procura-se sempre, e pretende sempre.
Houve sem dúvida uma embriaguês de discurso nesse mundo Grego, onde o principal poder vinha de persuadir. Alguns, que usavam muito bem este jogo, ultrapassavam-no por outro jogo. Górgias passa por ter sustentado, com provas alternadas, que o ser é, pois que o não-ser é; que assim o ser não é; mas de novo que o ser é. Era como uma mera arte de pleitear. E a prova nesta frágil dialéctica era, tanto quanto sabemos, esta, que se encontra também em Platão, é que não se pode dizer do quer que seja que não é se não é absolutamente, porque então não se pensaria nada de nada. Pode-se desprezar este género de argumento, que mal espanta, e que não esclarece nada. Convenhamos no entanto que era uma primeira reflexão. O espírito retira-se das coisas e procura as suas próprias leis. Não encontra nada de sólido; troça; ri. É qualquer coisa rir; e o que faz rir pareceu digno ainda desse belo nome de espírito. Se nos queremos guardar aqui do demasiado sério, é preciso ler, antes do Parménides, o Eutidemo, que é uma brincadeira sem malícia, em que se encontram raciocínios como este; a tua cadela tem crias; ela é mãe; ela é tua; portanto, é a tua mãe. Sócrates limita-se a rir perante estas grosseiras aparências; não se refuta o que é apenas jogo de palavras. Todavia suspeito que a arte profunda e sempre muito escondida de Platão quer nos fazer entender aqui que em outros assuntos, e quando a conclusão nos agrada, sabemos bem armar-nos de raciocínios que não valem mais do que esse.
Veremos, por outros exemplos, que Platão prima em fazer-nos entender, sob a aparência dum simples jogo, o que importa mais saber. Perguntamo-nos se Platão não teria pesado e julgado esta lógica do pretório, que prova tão facilmente o que agrada, e enfim se não apreendeu, na sua pura forma, esta arte de pleitear que tão bem sabia troçar de si mesma. Decerto não devemos esquecer que foi Platão que chamou de dialéctica essa outra arte, séria e profunda entre nós, que permite subir às puras ideias e talvez delas voltar a descer. Mas tudo nos diz que ele nada mostrou, nos seus Diálogos, da verdadeira dialéctica. O seu método constante é, pelo contrário, desenhar-nos algum quadro enigmático, no qual subitamente nos reconhecemos, nós e os nossos pensamentos. Assim advertidos, e livres em relação ao discurso, podemos abordar a segunda parte do Parménides. Portanto, e sobre o modelo desses raciocínios que reproduzi mais acima, busca-se, estabelecendo que o um é, o que daí resulta e não resulta para o um e para as outras coisas. O um é indivisível, sem partes, sem forma, sem movimento, sem mudança, sem idade, quer dizer, sem relação com o tempo. Reconhece-se a tese de Parménides. Mas aqui ele prova em seguida o contrário, segundo esta observação que, se o um é, não se tem apenas o um, tem-se também o ser, que é outro que não o um, e ainda o outro, que faz, se se pode dizer, um terceiro personagem, e enfim todos os números, as partes, a mudança, o movimento, a idade. Depois do que se volta atrás, e se supõe que o um não é. Mas importa ler tudo, pois que Parménides nos advertiu que se tratava somente dum exercício. Notar-se-á que este jogo é jogado com uma seriedade espantosa. Não teria fim; ele cessa sem que se saiba porquê. Mais uma vez Platão nos deixa aí.
Esta espécie de nebulosa estará ela grávida dum mundo? Será preciso ver nela as primeiras articulações dum sistema em que as ideias de número, de espaço, e de tempo nasceriam do um indeterminado, por uma divisão interior, por uma oposição e correlação ao mesmo tempo, que seria a lei secreta de todos os nossos pensamentos? Pode-se crer nisso, apesar da aparência de simples exercício, primeiro anunciada, e ainda marcada na sequência pela mudança de hipótese. E, embora Platão pareça querer fatigar-nos com uma metafísica que prova o que quiser, é permitido buscar neste diálogo como que o fantasma duma doutrina secreta. Porque a negligência de Platão é muitas vezes estudada. Ele nunca anuncia o que é mais importante, e mesmo nos desvia algumas vezes de nos lançarmos nisso, como se receasse acima de tudo que as mãos brutalmente se pusessem. Mas mesmo que o sistema estivesse aí, quando se pudesse nele adivinhar, sob o jogo das contradições, algo dessa meditação pitagórica que Aristóteles relata de Platão, e que faria nascer todos os pensamentos e todas as coisas do um e do dois, fica-nos, dessas conversas entre Platão e Sócrates, que são todo o nosso Platão, uma lição cem vezes redita, e que é de maior preço do que o sistema. Mas o que é então? Uma ligeireza de toque, uma precaução diante da prova, um retorno ao princípio, uma arte de estender, e de distender, de atar e de desatar o ténue fio; uma desconfiança em relação a esse pensamento terrestre, que tira da essência as propriedades como dum tonel; uma atenção, pelo contrário, ao universo inteiro das relações, oposições, repulsões, atracções, que fazem um céu movente de formas, de impalpáveis e instáveis nuvens, ligeiras de segredos, de aventuras e de criações. Não crer muito nisso. Não disse ele também que é preciso sempre algum contrário de Deus? Ele nos contará outros mitos, esses carregados de matéria, e de vidas sem começo. Aqui, por oposição, o espírito sem memória, o espírito novo e demasiado livre, que se recusa a continuar. Aqui o mito do entendimento puro, talvez.
Alain
(Tradução de José Ames)
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