quarta-feira, 14 de março de 2012

A ARTE




A arte é uma espécie de prova para toda a filosofia. As obras de arte são de facto coisas, e são de facto pensamentos. A sequência das belas obras é portanto como um livro a decifrar; e os pequenos meios vêm aí fracassar. O imenso instrumento Hegeliano, de que o leitor se faz agora alguma ideia, não era sem proporção com o imenso objecto dum culto universal, dum culto que não tem incrédulos. A estética de Hegel reina sobre a estética pelos poderosos detalhes, que não têm réplica. Quero apenas dar aqui uma ideia das promessas, ambiciosas quanto se queira, que Hegel manteve.

A ideia é a palavra mais forte do vocabulário Hegeliano. A ideia é a noção, quer dizer o pensamento, não mais discursivo, mas formando por si mesmo os seus atributos por um desenvolvimento interno. Sócrates corajoso, não é um juízo que reúna dois termos estranhos; é o sujeito ele próprio, Sócrates,  que forma o seu juízo segundo a noção. Mas, mesmo em Sócrates, a noção não é idêntica ao objecto, quer dizer, ao Sócrates de carne; donde o combate, o sofrimento e a morte. A ideia, é a noção idêntica ao objecto; e dizer que esta identidade está na obra bela é dizer que a estátua é mais homem do que o homem. Todavia,  interrogando a sequência das obras, parece que  a pintura é ainda mais homem, e a música mais ainda. É porque a ideia se desenvolve segundo uma dialéctica escondida, de que a religião nos descobre alguma coisa, mas que  só a filosofia porá a claro. A arte é muda; ela fixa em imagens os momentos dessa dialéctica; muda-os em objectos imutáveis. Todos os nossos pensamentos nos esperam e nos esperarão nesta longa álea de Esfinges; e é o que exprime a palavra ideia.

Agora como ler esta história? Há formas, como o pagode hindu e a esfinge egípcia ( o que não quer dizer que elas sejam do mesmo tempo, porque há recomeços) em que  apreendemos uma desproporção entre a ideia e a coisa; e se nos reportarmos às religiões e às filosofias correspondentes, perceberemos porquê; é que a ideia é abstracta e indeterminada. Num sentido, todo o objecto o exprime; noutro sentido nenhum objecto o exprime. Essa arte não escolhe; encontra Deus em todo o lado; de maneira que é esta mesma insuficiência do objecto que exprime a ideia. Tal é a arte simbólica. A arquitectura domina aqui, porque o artista monta como que um imenso cenário para pensamentos desmesurados. A arte judaica que recusa a forma material, e que se refugia numa poesia que ela própria renuncia a exprimir a ideia, traduz sem dúvida o estado final desta busca tumultuosa.

No oposto, na arte cristã, notamos uma desproporção ainda, mas desta vez porque a ideia é concreta no mais alto grau; ela não encontra a sua realidade senão no mundo interior da consciência. Assim, a forma exterior torna-se indiferente à ideia, o rosto humano só exprime a alma, quer dizer a subjectividade infinita. O corpo humano já não é adorado; ainda menos os animais e as forças vegetais que são rebaixadas ao nível de ornamentos. Mesmo a imagem de Deus feito homem exprime que alma pessoal é o mais alto valor. Tal é a arte romântica.

Uma tão grande mudança só é explicável pela mediação da arte clássica, precioso momento de harmonia e de reconciliação entre a alma e o corpo. A fim de bem se entender a estátua do atleta, e a mitologia Olímpica, que forma como que um curto reino da pura beleza, reconheçamos primeiro na arte simbólica a própria linguagem da alma natural, que está como que mergulhada na natureza, e vive sem divisão com as estações e as forças. O espírito tudo abraça, de tudo ressoa, e profetiza, entregue a uma espécie de loucura. O espírito só se exprime num sonho monstruoso e atormentado, o que representa a mescla da forma animal e da forma humana. Essa inspiração errante encontra uma espécie de repouso na arte egípcia, repouso sem liberdade, culto do costume e da morte.

A arte clássica, por oposição, representa-nos o momento do hábito, quer dizer a tomada de posse do  próprio corpo separado agora dos outros. Só a forma humana representa o espírito. Todo o deus tem a forma humana. Então desaparece o respeito pela força misteriosa, cega e estúpida que se manifesta na vida animal. A individualidade humana pensa-se como suficiente, perfeita e livre. Homero deixou-nos uma imagem admirável da humanidade atlética, que se governa a si mesma, rejeitando para o objecto os antigos deuses. Os novos deuses são os atletas imortais, que gozam sem fim do repouso da existência actual, da satisfação íntima, e duma grandeza tirada duma existência finita. A vida divina é apenas a vida humana continuada. Revolução memorável, e que a lenda conservou, contando a vitória dos Deuses novos sobre os Deuses antigos, Deuses de lama e de sangue, Urano, Gaia, Cronos, os Titãs, Briareu, o dos cem braços. A estátua atlética significa também essa vitória. Mas, porque todo o momento superado é também um momento conservado, nós vemos à volta do puro paganismo uma escolta dos antigos deuses encadeados, da mesma maneira que a árvore sagrada revive na coroa de folhas da coluna. Tento dar um pouco a ideia destas observações Hegelianas, sempre apoiadas  por um lado no poderoso sistema, por outro em alguma bela forma. Concebo a força do movimento Hegeliano, que decerto não acabou de nos surpreender; os Hegelianos não foram alimentados com abstracções.

Uma sumária revisão das artes particulares esclarecerá ainda um pouco esta ampla história, que, como se vê, não se pode compreender sem uma dialéctica da religião. É preciso contar cinco artes principais que são Arquitectura, Escultura, Pintura, Música e Poesia. Elas estão ordenadas de modo que se siga duma a outra um aligeiramento de matéria, e como que uma perseguição do espírito até às profundezas. Entendei não as profundezas da natureza vegetal e animal, mas as profundezas da consciência humana. Não vejo como se poderia conceber o Hegelianismo como uma espécie de panteísmo, quando ele definiu tão bem o panteísmo, e quando tão explicitamente o ultrapassou. O Hegelianismo seria antes, parece-me, um Humanismo. Porque o antropomorfismo, diz Hegel a propósito dos deuses Olímpicos, não é decerto uma pequena  coisa. “O cristianismo empurrou para muito mais longe o antropomorfismo; porque, na doutrina cristã, Deus não é somente uma personificação divina sob a forma humana; ele é ao mesmo tempo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem.  Que se perdoe este parêntesis; eu não defendo Hegel; ele não tem necessidade de mim. Ponho apenas em guarda contra as lições de desprezo, dadas muitas vezes de alto,  das quais não vejo as razões.

A arquitectura corresponde à forma simbólica da arte. Entendei que as formas arquitecturais são sempre signos; a ideia é expressa, mas não incorporada. É assim que a famosa torre de Babilónia era simbólica pelos seus sete andares, simbólica também da comunidade do trabalho, e signo de sociedade. Do mesmo modo os monumentos em forma de coluna são os signos da fecundidade, erguidos algumas vezes, por um duplo simbolismo, à glória do sol. As formas vivas, seja alinhadas,  seja amontoadas como à volta duma coluna, são antes também os caracteres duma linguagem. Em lugar do que uma estátua ou um retrato não significam à maneira duma linguagem. Por isso, ao mesmo tempo que a arte clássica liberta a forma humana, e a propõe por si mesma,  rebaixa o templo ao nível duma morada, e nele marca somente, pelas proporções e as linhas, a obra do homem separada do homem. A arquitectura clássica, portanto, pelo ângulo recto, o frontão, a coluna, representa a harmonia do suportado e do suportante, e não representa mais do que isso; ela está como que limpa de todo o símbolo. Os dois opostos reúnem-se na arquitectura romântica, em que é claro que o simbólico regressa pela abundância das formas orgânicas, mas em que no entanto o ornamento está subordinado à própria construção: porque a catedral é de facto uma casa, que tem um fim determinado, e que o mostra. Todavia, os dois princípios são reconduzidos à unidade, de modo que não se possa desconhecer a harmonia das formas arquitectónicas com o espírito mais íntimo do Cristianismo. A estrita clausura, o movimento vertical dos pilares continuado pela ogiva, os próprios vitrais, símbolos duma outra luz, diferente da luz natural, tudo conduz a alma à meditação interior.

A história da escultura exprime ainda mais fortemente esta busca do espírito, por uma espécie de religião e de filosofia sem palavras. Na arte simbólica, a estátua está ligada ao monumento, ou então é ela próprio monumento. As formas vegetais, animais e humanas exprimem pela sua mescla a cega potência da natureza divinizada. Na arte clássica, a forma humana separa-se, de maneira a representar o espírito independente e suficiente que a governa sem oposição. Eis por que o espírito não está nela refugiada no rosto, como no retrato; pelo contrário parece espalhado sobre toda a superfície; “ a estátua sem olhos olha-nos de todo o seu corpo”. A animalidade é superada no próprio homem, e é o que exprime o perfil grego, tantas vezes interrogado. A face animal, pela saliência do focinho, que arrasta o nariz, dá a impressão  duma simples apropriação das funções inferiores, sem nenhum carácter de espiritualidade. Pelo contrário, no rosto clássico, a fronte e os olhos formam o centro principal, e retêm o nariz no sistema dos sentidos contemplativos. A boca retira-se e subordina-se, mais desenhada segundo a vontade do que segundo o desejo. Todavia nenhuma parte significa uma violência dominada. A estátua clássica exprime todo o feliz momento da paz entre a alma e o corpo. Curto momento. A estátua romântica exprime outra coisa completamente diferente, a saber “a separação dos princípios que, na unidade objectiva da escultura, no centro do repouso, da calma e da independência absoluta que a caracterizam estão contidos um no outro e  em conjunto reunidos”. O espírito, no seu recolhimento, manifesta-se na forma exterior, “ mas duma maneira tal que a própria forma exterior mostra que ela é somente a manifestação dum sujeito que existe de outra maneira e por si mesmo”. Por onde se compreende suficientemente um género de escultura que marca o desprezo do corpo humano; mas por onde se compreende também que a escultura não é o meio mais poderoso duma arte que quer exprimir a subjectividade infinita.

A subjectividade é estranha ao espaço, que é a lei do objecto. Como mudança do sentimento total e indivisível, ela deve reduzir-se a uma sucessão de momentos, quer dizer, tender a exprimir-se apenas sob a forma do tempo. Só na música se chega a essa negação do espaço. Todavia, na pintura, a extensão está já rebaixada, pela negação duma das suas dimensões. “A pintura torna-se um espelho do espírito, em que a espiritualidade se revela destruindo a existência real, transformando-a numa simples aparência que é do domínio do espírito e que se dirige ao espírito.” Esta razão leva-nos a colocar o centro da pintura no mundo romântico, quer dizer cristão. É então o amor, e no fundo o amor divino, que resolve todas as contradições da alma infinita e finita. O objecto da pintura foi primeiro propriamente religioso; a mística soube dar à face pintada a expressão da vitalidade interior; mas a pintura espalhou essa vida e esse amor nos retratos, e mesmo na imagem dos objectos mais ordinários, segundo essa dupla ideia, por um lado de que todas as almas encerram um valor divino, por outro de que a piedade, relevando as acções mais comuns,  confere também graça aos mais humildes objectos. Limito-me a esboçar aqui um desenvolvimento que se adivinha amplo e rico, e que, como todo o desenvolvimento Hegeliano, exige que se o prolongue segundo a história.

O carácter espiritual da música e da poesia é mais facilmente apreensível. Um traçado abstracto bastará para terminar este grande sistema de estética, que não tem equivalente. A música aproxima-se da expressão da espiritualidade pura, destruindo a forma visível. O som tem esse carácter de desaparecer  logo que nasce. “Mal a orelha foi tocada,  ele volta ao silêncio. A impressão penetra dentro, e os sons  ressoam já só nas profundezas da alma, emocionada e estremecida no que ela tem de mais íntimo.” Todavia, as leis rigorosas da harmonia, análogas ao que é para a arquitectura a lei da gravidade, fazem que a expressão dos sentimentos mais profundos se acorde com a mais rigorosa observação das regras do entendimento. Só que a extensão é negada, e as construções  musicais deslizam no tempo, e apoiam-se apenas na medida. “A medida do som penetra no eu, prende-o na sua simples existência, põe-na em movimento e arrasta-a no seu ritmo cadenciado.” A poesia é uma espécie de música, mas que junta a esse poder mágico a expressão pela comum linguagem de todo os objectos das artes sem excepção e da própria natureza, reconduzindo-os no espírito, onde encontram uma nova existência, a uma unidade viva e orgânica. Mas por isso mesmo o signo se encontra rebaixado. O elemento material da arte é finalmente negado, o que conduz à destruição da própria arte, e anuncia a passagem ao pensamento religioso. É a comédia que anuncia a decadência da antiga linguagem da Arte “em que os povos depositaram os seus pensamentos mais íntimos e as suas mais ricas intuições”. Entre estes dois extremos, a arquitectura e a poesia, vê-se que a escultura, a pintura e música ficam no meio, e este meio é o domínio do belo. Pelo sublime da arquitectura, alguma coisa começa; pelo sublime da poesia, alguma coisa acaba. “A arte, com o seu alto destino, é qualquer coisa de passado; ela perdeu para nós toda a sua verdade e a sua vida; consideramo-la dum modo demasiado especulativo para que ela retome nos nossos costumes o lugar elevado que ocupava dantes, quando tinha o privilégio de satisfazer por ela mesmo plenamente as inteligências.” Quis notar este acento de melancolia. Duma certa maneira a filosofia de Hegel dá esse som, porque ela é uma viagem segundo o irrevogável tempo. Mas, pelo anúncio dum futuro novo, esta filosofia alimenta também a esperança.


Alain
(Tradução de José Ames)

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