A
arte é uma espécie de prova para toda a filosofia. As obras de arte são de
facto coisas, e são de facto pensamentos. A sequência das belas obras é portanto
como um livro a decifrar; e os pequenos meios vêm aí fracassar. O imenso
instrumento Hegeliano, de que o leitor se faz agora alguma ideia, não era sem
proporção com o imenso objecto dum culto universal, dum culto que não tem
incrédulos. A estética de Hegel reina sobre a estética pelos poderosos
detalhes, que não têm réplica. Quero apenas dar aqui uma ideia das promessas,
ambiciosas quanto se queira, que Hegel manteve.
A
ideia é a palavra mais forte do vocabulário Hegeliano. A ideia é a noção, quer
dizer o pensamento, não mais discursivo, mas formando por si mesmo os seus
atributos por um desenvolvimento interno. Sócrates corajoso, não é um juízo que
reúna dois termos estranhos; é o sujeito ele próprio, Sócrates, que forma o seu juízo segundo a noção. Mas,
mesmo em Sócrates, a noção não é idêntica ao objecto, quer dizer, ao Sócrates
de carne; donde o combate, o sofrimento e a morte. A ideia, é a noção idêntica
ao objecto; e dizer que esta identidade está na obra bela é dizer que a estátua
é mais homem do que o homem. Todavia,
interrogando a sequência das obras, parece que a pintura é ainda mais homem, e a música mais
ainda. É porque a ideia se desenvolve segundo uma dialéctica escondida, de
que a religião nos descobre alguma coisa, mas que só a filosofia porá a
claro. A arte é muda; ela fixa em imagens os momentos dessa dialéctica; muda-os
em objectos imutáveis. Todos os nossos pensamentos nos esperam e nos esperarão
nesta longa álea de Esfinges; e é o que exprime a palavra ideia.
Agora
como ler esta história? Há formas, como o pagode hindu e a esfinge egípcia ( o
que não quer dizer que elas sejam do mesmo tempo, porque há recomeços) em
que apreendemos uma desproporção entre a
ideia e a coisa; e se nos reportarmos às religiões e às filosofias
correspondentes, perceberemos porquê; é que a ideia é abstracta e
indeterminada. Num sentido, todo o objecto o exprime; noutro sentido nenhum
objecto o exprime. Essa arte não escolhe; encontra Deus em todo o lado; de
maneira que é esta mesma insuficiência do objecto que exprime a ideia. Tal é a
arte simbólica. A arquitectura domina aqui, porque o artista monta como que um
imenso cenário para pensamentos desmesurados. A arte judaica que recusa a forma
material, e que se refugia numa poesia que ela própria renuncia a exprimir a
ideia, traduz sem dúvida o estado final desta busca tumultuosa.
No
oposto, na arte cristã, notamos uma desproporção ainda, mas desta vez porque a
ideia é concreta no mais alto grau; ela
não encontra a sua realidade senão no mundo interior da consciência. Assim, a
forma exterior torna-se indiferente à ideia, o rosto humano só exprime a alma,
quer dizer a subjectividade infinita. O corpo humano já não é adorado; ainda
menos os animais e as forças vegetais que são rebaixadas ao nível de
ornamentos. Mesmo a imagem de Deus feito homem exprime que alma pessoal é o
mais alto valor. Tal é a arte romântica.
Uma
tão grande mudança só é explicável pela mediação da arte clássica, precioso
momento de harmonia e de reconciliação entre a alma e o corpo. A fim de bem se entender
a estátua do atleta, e a mitologia Olímpica, que forma como que um curto reino
da pura beleza, reconheçamos primeiro na arte simbólica a própria linguagem da
alma natural, que está como que mergulhada na natureza, e vive sem divisão com
as estações e as forças. O espírito tudo abraça, de tudo ressoa, e profetiza,
entregue a uma espécie de loucura. O espírito só se exprime num sonho
monstruoso e atormentado, o que representa a mescla da forma animal e da forma
humana. Essa inspiração errante encontra uma espécie de repouso na arte
egípcia, repouso sem liberdade, culto do costume e da morte.
A
arte clássica, por oposição, representa-nos o momento do hábito, quer dizer a
tomada de posse do próprio corpo separado agora dos outros. Só a forma humana
representa o espírito. Todo o deus tem a forma humana. Então desaparece o
respeito pela força misteriosa, cega e estúpida que se manifesta na vida
animal. A individualidade humana pensa-se como suficiente, perfeita e livre.
Homero deixou-nos uma imagem admirável da humanidade atlética, que se governa a
si mesma, rejeitando para o objecto os antigos deuses. Os novos deuses são os
atletas imortais, que gozam sem fim do repouso da existência actual, da
satisfação íntima, e duma grandeza tirada duma existência finita. A vida divina
é apenas a vida humana continuada. Revolução memorável, e que a lenda
conservou, contando a vitória dos Deuses novos sobre os Deuses antigos, Deuses
de lama e de sangue, Urano, Gaia, Cronos, os Titãs, Briareu, o dos cem braços. A
estátua atlética significa também essa vitória. Mas, porque todo o momento
superado é também um momento conservado, nós vemos à volta do puro paganismo
uma escolta dos antigos deuses encadeados, da mesma maneira que a árvore
sagrada revive na coroa de folhas da coluna. Tento dar um pouco a ideia destas
observações Hegelianas, sempre apoiadas
por um lado no poderoso sistema, por outro em alguma bela forma. Concebo
a força do movimento Hegeliano, que decerto não acabou de nos surpreender; os
Hegelianos não foram alimentados com abstracções.
Uma
sumária revisão das artes particulares esclarecerá ainda um pouco esta ampla
história, que, como se vê, não se pode compreender sem uma dialéctica da
religião. É preciso contar cinco artes principais que são Arquitectura,
Escultura, Pintura, Música e Poesia. Elas estão ordenadas de modo que se siga
duma a outra um aligeiramento de matéria, e como que uma perseguição do
espírito até às profundezas. Entendei não as profundezas da natureza vegetal e
animal, mas as profundezas da consciência humana. Não vejo como se poderia
conceber o Hegelianismo como uma espécie de panteísmo, quando ele definiu tão
bem o panteísmo, e quando tão explicitamente o ultrapassou. O Hegelianismo
seria antes, parece-me, um Humanismo. Porque o antropomorfismo, diz Hegel a propósito
dos deuses Olímpicos, não é decerto uma pequena
coisa. “O cristianismo empurrou para muito mais longe o antropomorfismo;
porque, na doutrina cristã, Deus não é somente uma personificação divina sob a
forma humana; ele é ao mesmo tempo verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem.” Que se perdoe este parêntesis;
eu não defendo Hegel; ele não tem necessidade de mim. Ponho apenas em guarda
contra as lições de desprezo, dadas muitas vezes de alto, das quais não vejo as razões.
A
arquitectura corresponde à forma simbólica da arte. Entendei que as formas
arquitecturais são sempre signos; a ideia é expressa, mas não incorporada. É
assim que a famosa torre de Babilónia era simbólica pelos seus sete andares,
simbólica também da comunidade do trabalho, e signo de sociedade. Do mesmo modo
os monumentos em forma de coluna são os signos da fecundidade, erguidos algumas
vezes, por um duplo simbolismo, à glória do sol. As formas vivas, seja
alinhadas, seja amontoadas como à volta
duma coluna, são antes também os caracteres duma linguagem. Em lugar do que uma
estátua ou um retrato não significam à maneira duma linguagem. Por isso, ao mesmo
tempo que a arte clássica liberta a forma humana, e a propõe por si mesma, rebaixa o templo ao nível duma morada, e nele
marca somente, pelas proporções e as linhas, a obra do homem separada do homem.
A arquitectura clássica, portanto, pelo ângulo recto, o frontão, a coluna, representa
a harmonia do suportado e do suportante, e não representa mais do que isso; ela
está como que limpa de todo o símbolo. Os dois opostos reúnem-se na arquitectura
romântica, em que é claro que o simbólico regressa pela abundância das formas
orgânicas, mas em que no entanto o ornamento está subordinado à própria
construção: porque a catedral é de facto uma casa, que tem um fim determinado,
e que o mostra. Todavia, os dois princípios são reconduzidos à unidade, de modo
que não se possa desconhecer a harmonia das formas arquitectónicas com o
espírito mais íntimo do Cristianismo. A estrita clausura, o movimento vertical
dos pilares continuado pela ogiva, os próprios vitrais, símbolos duma outra
luz, diferente da luz natural, tudo conduz a alma à meditação interior.
A
história da escultura exprime ainda mais fortemente esta busca do espírito, por
uma espécie de religião e de filosofia sem palavras. Na arte simbólica, a
estátua está ligada ao monumento, ou então é ela próprio monumento. As formas
vegetais, animais e humanas exprimem pela sua mescla a cega potência da
natureza divinizada. Na arte clássica, a forma humana separa-se, de maneira a
representar o espírito independente e suficiente que a governa sem oposição.
Eis por que o espírito não está nela refugiada no rosto, como no retrato; pelo
contrário parece espalhado sobre toda a superfície; “ a estátua sem olhos
olha-nos de todo o seu corpo”. A animalidade é superada no próprio homem, e é o
que exprime o perfil grego, tantas vezes interrogado. A face animal, pela
saliência do focinho, que arrasta o nariz, dá a impressão duma simples apropriação das funções
inferiores, sem nenhum carácter de espiritualidade. Pelo contrário, no rosto
clássico, a fronte e os olhos formam o centro principal, e retêm o nariz no
sistema dos sentidos contemplativos. A boca retira-se e subordina-se, mais
desenhada segundo a vontade do que segundo o desejo. Todavia nenhuma parte
significa uma violência dominada. A estátua clássica exprime todo o feliz
momento da paz entre a alma e o corpo. Curto momento. A estátua romântica
exprime outra coisa completamente diferente, a saber “a separação dos
princípios que, na unidade objectiva da escultura, no centro do repouso, da
calma e da independência absoluta que a caracterizam estão contidos um no outro
e em conjunto reunidos”. O espírito, no
seu recolhimento, manifesta-se na forma exterior, “ mas duma maneira tal que a
própria forma exterior mostra que ela é somente a manifestação dum sujeito que
existe de outra maneira e por si mesmo”. Por onde se compreende suficientemente
um género de escultura que marca o desprezo do corpo humano; mas por onde se
compreende também que a escultura não é o meio mais poderoso duma arte que quer
exprimir a subjectividade infinita.
A
subjectividade é estranha ao espaço, que é a lei do objecto. Como mudança do
sentimento total e indivisível, ela deve reduzir-se a uma sucessão de momentos,
quer dizer, tender a exprimir-se apenas sob a forma do tempo. Só na música se
chega a essa negação do espaço. Todavia, na pintura, a extensão está já
rebaixada, pela negação duma das suas dimensões. “A pintura torna-se um espelho
do espírito, em que a espiritualidade se revela destruindo a existência real,
transformando-a numa simples aparência que é do domínio do espírito e que se
dirige ao espírito.” Esta razão leva-nos a colocar o centro da pintura no mundo
romântico, quer dizer cristão. É então o amor, e no fundo o amor divino, que
resolve todas as contradições da alma infinita e finita. O objecto da pintura
foi primeiro propriamente religioso; a mística soube dar à face pintada a
expressão da vitalidade interior; mas a pintura espalhou essa vida e esse amor
nos retratos, e mesmo na imagem dos objectos mais ordinários, segundo essa
dupla ideia, por um lado de que todas as almas encerram um valor divino, por
outro de que a piedade, relevando as acções mais comuns, confere também graça aos mais humildes
objectos. Limito-me a esboçar aqui um desenvolvimento que se adivinha amplo e
rico, e que, como todo o desenvolvimento Hegeliano, exige que se o prolongue
segundo a história.
O
carácter espiritual da música e da poesia é mais facilmente apreensível. Um
traçado abstracto bastará para terminar este grande sistema de estética, que
não tem equivalente. A música aproxima-se da expressão da espiritualidade pura,
destruindo a forma visível. O som tem esse carácter de desaparecer logo que nasce. “Mal a orelha foi tocada, ele volta ao silêncio. A impressão penetra
dentro, e os sons ressoam já só nas
profundezas da alma, emocionada e estremecida no que ela tem de mais íntimo.”
Todavia, as leis rigorosas da harmonia, análogas ao que é para a arquitectura a
lei da gravidade, fazem que a expressão dos sentimentos mais profundos se
acorde com a mais rigorosa observação das regras do entendimento. Só que a
extensão é negada, e as construções
musicais deslizam no tempo, e apoiam-se apenas na medida. “A medida do
som penetra no eu, prende-o na sua simples existência, põe-na em movimento e
arrasta-a no seu ritmo cadenciado.” A poesia é uma espécie de música, mas que
junta a esse poder mágico a expressão pela comum linguagem de todo os objectos
das artes sem excepção e da própria natureza, reconduzindo-os no espírito, onde
encontram uma nova existência, a uma unidade viva e orgânica. Mas por isso
mesmo o signo se encontra rebaixado. O elemento material da arte é finalmente
negado, o que conduz à destruição da própria arte, e anuncia a passagem ao
pensamento religioso. É a comédia que anuncia a decadência da antiga linguagem
da Arte “em que os povos depositaram os seus pensamentos mais íntimos e as suas
mais ricas intuições”. Entre estes dois extremos, a arquitectura e a poesia,
vê-se que a escultura, a pintura e música ficam no meio, e este meio é o
domínio do belo. Pelo sublime da arquitectura, alguma coisa começa; pelo
sublime da poesia, alguma coisa acaba. “A arte, com o seu alto destino, é qualquer
coisa de passado; ela perdeu para nós toda a sua verdade e a sua vida;
consideramo-la dum modo demasiado especulativo para que ela retome nos nossos
costumes o lugar elevado que ocupava dantes, quando tinha o privilégio de
satisfazer por ela mesmo plenamente as inteligências.” Quis notar este acento
de melancolia. Duma certa maneira a filosofia de Hegel dá esse som, porque ela
é uma viagem segundo o irrevogável tempo. Mas, pelo anúncio dum futuro novo,
esta filosofia alimenta também a esperança.
Alain
(Tradução de José Ames)
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