A
arte é já religião. Templos, estátuas, pintura, música, formam uma religião sem
palavras, fechada sobre si própria, enigmática. E pôde-se notar, a partir do
que precede, que a filosofia da arte não cessa de esclarecer a arte pela religião.
A religião encontra-se pois colocada como um meio termo, ou como um grau da
dialéctica, entre a arte e a filosofia. Todavia, de que a religião exprime pelo
discurso e relações o que a arte significa absolutamente, por exemplo, a beleza
dum deus Olímpico, não se deveria concluir que a religião é uma filosofia da
arte. Porque é verdade que a religião é o pensamento do pensamento da arte; mas isso é a filosofia que o sabe. Se
portanto se quer apreender a religião na sua verdade, é preciso precaver-se de franquear
demasiado depressa a escala dialéctica. A religião é a verdade da arte; a
filosofia é a verdade da religião; mas este mesmo desenvolvimento é o que faz a
verdade da religião. Uma religião iconoclasta é uma religião que corta as suas
próprias raízes. E decerto a religião tem de negar a imagem miraculosa; é nisso
que ela é religião; mas tem de conservar
também, segundo uma lei que nos é agora familiar, o termo suprimido. Do mesmo
modo, uma filosofia iconoclasta, quer dizer, que quereria desenvolver-se sem o
fundo religioso, seria uma filosofia abstracta, quer dizer, separada. Seria uma
lógica; e a lógica está agora muito para trás de nós; decerto conservada, como
directriz de todos os nossos pensamentos; mas superada, neste sentido que é na
própria natureza e na história que devemos reencontrar a lógica. Saber a
religião, é reencontrar a marcha dialéctica da arte à religião e da religião à
filosofia, e é ainda reencontrar o mesmo progresso na própria religião. O
espírito desenvolve-se sempre segundo a sua lei, quer dizer, do ser à ideia
pela essência. A arte é, em relação à religião, o momento do ser; cada obra
produz-se como suficiente e independente; mas, inevitavelmente a filosofia da
arte encontra em todas essas obras o testemunho do trabalho do espírito;
todavia, não sem a mediação da religião; porque a religião é um pensamento da
arte, pensamento que se desenvolve em si, não para si, da mesma maneira que a ciência quebra a
lógica do ser, mas sem saber que a quebra. A religião não é ainda o pensamento
que se sabe como tal; ela desenvolve-se segundo a representação e através das
representações. E a representação está acima da imagem; a representação
ultrapassa a imagem, e, pela memória e o discurso, ergue-se a um valor
universal. Mas, a fim de melhor pensar a
religião no seu lugar, é preciso notar que a mesma marcha, do ser à ideia pela
essência, se encontra ainda na religião. Haverá uma religião imediata, como é
por exemplo a magia, e uma religião dos meios ou relações, tal a religião
judaica, ou a grega, ou a romana; enfim, uma religião absoluta, que é a cristã,
por esse dogma que a mediação se faz na unidade absoluta do espírito. É assim que a noção realiza a unidade do ser e da essência; tudo é
mediação na ciência, quer dizer, ao nível da essência, mas essa mediação não se
sabe como obra do espírito. Mesmo que esta grande construção fosse deixada no
estado de projecto, é preciso convir que essa implicação da lógica em si mesma,
e esse recomeço no detalhe sobre o modelo dum primeiro conjunto, essa
sobreposição enfim de relações a três termos, ser, essência, ideia, forma um
admirável retrato, e movente, dos nossos menores pensamentos. A antecipação
aristotélica, de que o pensamento é o pensamento do pensamento, não está agora
longe de tomar corpo. Mas é também aí que se encontra a obscuridade do sistema.
Direi somente isto que este sistema é talvez o único que, permanecendo sistema,
se obscurece o suficiente para nos tornar sensível a necessidade de sempre
recomeçar. Compreender que esta dialéctica se produz a si mesma sem fim, é
compreender Hegel, quer dizer, dar um objecto suficiente à imensa ideia do
devir, que se mostrou abstracta no primeiro passo da lógica.
O
remédio para este movimento que nos arrasta, e que muito facilmente nos faria
tomar a Filosofia pela religião, é a dialéctica interior que recomeça nela
mesma, sempre conforme a natureza, de que nós saímos, e donde nascem todos os
nossos pensamentos. Não tomemos pois a religião como o mais profundo
pensamento, embora ela a isso conduza; pelo contrário, consideremos a religião
como um facto da natureza, tão fechado sobre si mesmo como a arte, mas envolvido no entanto por uma
dialéctica que o leva para fora de si mesmo, o faz florescer, de alguma maneira,
sem o separar das suas raízes. E como esta dialéctica faz aparecer enfim o deus
real, é o que é preciso tentar compreender a partir do que sabemos já do
espírito objectivo. No fundo, a dificuldade é de compreender que a filosofia de
Hegel não é uma lógica, mas uma filosofia da natureza. E eis aqui o
caminho uma vez mais. O direito é
primeiro coisa natural; produz-se no interior dos trabalhos e das trocas; e é
já o direito; mas a realidade do direito é o próprio desenvolvimento do
direito, pela mediação da moralidade, da família, da sociedade civil, do
Estado. O Estado é o direito enfim existente, onde o cidadão encontra os seus
deveres e a sua liberdade; e não é no
seu pensamento subjectivo que o cidadão pode encontrar isso; ele reconhece pelo
contrário que essa dialéctica no objecto, quer dizer, essa história real do
direito, é o direito verdadeiro, em que se reúnem enfim a forma e o conteúdo.
Só que essa história não é a mais alta história; a humanidade não está nela
ainda toda desenvolvida. Uma história absoluta começa com a arte e a religião.
E não é inútil insistir sobre isto que a arte é o primeiro estado da religião.
Da mesma maneira que o direito, à medida que se desenvolve, é também mais real
e mais concreto, igualmente a religião está muito longe de ser uma abstracção
em relação à arte; pelo contrário, ela é o supremo concreto, a própria
existência da natureza e do espírito reconciliados. Tal é o sentido da incarnação.
As antigas religiões movem-se em contradições que não podem ultrapassar; é
porque elas são abstractas. E toda a religião, mesmo absoluta, é ainda abstracta quando se começa a pensar
nisso. Todas as proposições dos teólogos, de que é preciso amar a Deus, de que o homem nada pode sem a graça, de
que Deus se fez homem e que morreu por nós, têm primeiro um sentido exterior;
são pensamentos que formamos, e em que não podemos permanecer; e é primeiro
difícil compreender que a obediência a Deus é a nossa própria liberdade, como
já é difícil compreender que a obediência às leis é a própria liberdade do
cidadão. Eis por que pensar a religião e o perguntar-se de seguida se ela é
verdadeira, é falhar a religião. A prova da religião é a religião existente; e
a prova ontológica no seu desenvolvimento é o pensamento de Deus. No mesmo
sentido pode-se dizer que um Estado somente possível não é de maneira nenhuma
um Estado. É que o Estado verdadeiro se desenvolveu a partir da natureza, como
uma planta, segundo uma dialéctica interior. Do mesmo modo, há só uma religião, que se desenvolveu
através das religiões; e Hegel diz expressamente que é preciso reconciliar as
religiões falsas com a verdadeira, que as contém como momentos suprimidos e
conservados.
Eis
o movimento dialéctico em resumo. Tentei evitar, nesta curta exposição de
Hegel, a aparência dum índice; mas é um inconveniente ao qual não se pode
completamente escapar. As mais antigas religiões devem ser ditas religiões da
natureza, e a magia é a primeira de todas as religiões. A planta vive segundo a
natureza, sem nenhuma cisão, e a sua acção é apenas o seu desejo. A magia
oferece quase a mesma ingenuidade, a mesma união íntima e confiante, em que já
se discerne no entanto o traço comum a todas as religiões, a saber que o
espiritual, de qualquer modo que seja representado, tem para o homem um mais
alto preço do que a natureza. Nesta infância de religião, crê-se que é por
falta de saber desejar que se é incapaz de obter. A religião verdadeira
está toda neste começo, mas
virtualmente. É preciso que cisões e contradições se produzam, que se reconheçam como combates da alma consigo mesma
nas religiões da China e da Índia, da Pérsia, da Síria, do Egipto. Mas a alma
ainda não se reconheceu ela própria como lugar desses combates; o objecto
domina.
Por
oposição a estes grandes esboços que matam a alma, é preciso descrever as
religiões da livre subjectividade, entre as quais a religião grega e a judaica
se opõem vigorosamente. A religião judaica, ou religião do sublime, esmaga a
alma humana pela imensidade dum deus sem forma que é o espírito, mas por outro
lado releva a alma por este mesmo conhecimento. No oposto, a religião grega, ou
religião da beleza, diviniza a pessoa
humana, feliz em si e suficiente; donde esse Olimpo político. Os estóicos
purificam este paganismo, por um lado, reconduzindo os deuses à razão, por
outro, exaltando o valor da alma; mas eles levam assim a um estado de separação
abstracta a oposição entre o destino e a liberdade. Do mesmo modo que a
filosofia não pode fazer uma obra de arte, também a filosofia não pode fazer a unidade do espírito e da
natureza como religião verdadeira. A religião verdadeira nasceu da história religiosa
como a filosofia nasceu da história da filosofia. Dizer que o espírito absoluto
é religião, é dizer que a religião, pela sua dialéctica própria, produziu uma
representação à qual nada falta. Mas é claro também que os homens falham muitas
vezes essa representação que lhes é trazida pela história, nela encontrando
facilmente o destino separado ou a liberdade nua, e enfim sob novos nomes,
todas as religiões antigas. Mas o que é então a religião absoluta?
Chegado
a este ponto de dificuldade extrema, quero estar atento a não dizer mais do que o que sei. O que me
conduziu a Hegel, e me levou a reconstruir tanto quanto podia este poderoso
sistema, foram ideias penetrantes que nele se encontram frequentemente, que
corrigem, que esclarecem, enfim, que restabelecem o homem. Eu só escrevi estas
páginas para propor de novo algumas dessas ideias ao leitor que não atribui
grande valor à unidade dum sistema. A Filosofia do direito e a Estética são
partes que brilham por si mesmas. Sentimo-nos conduzidos aos problemas reais, e
descobre-se que a obscuridade proverbial desta filosofia é só a obscuridade
real dos problemas. Donde se acaba por seguir Hegel ainda noutras questões; e a
partir da minha experiência, é sempre com proveito. Ora eu creio que as ideias
de Hegel sobre a religião nos aproximam como que por toques da religião
verdadeira, aquela que se suspeita num santo ou num doutor místico, religião
que não é a filosofia. Compreender,
aqui, não é superar, e, por exemplo, julgar a incarnação, a
ressurreição, a redenção como mitos plenos de sentido; seria o mesmo erro que
compreender o que diz uma estátua como um discurso que se pode traduzir; a
estátua diz muito mais; e a simples percepção, é o próprio da arte, ultrapassa
todos os discursos. Ora, que tudo esteja no espírito, e que a consciência não
possa conhecer os seus limites sem os franquear, de modo que nela mesma
experimente o que lhe falta, ou ainda que a trindade dos teólogos represente um
movimento do pensamento que não se pode recusar, é o que todo o sistema
esclarece abundantemente; e tal é a religião naquele que não tem religião. Há
mais de uma maneira engenhosa de compreender aquilo que outros crêem. Mas a
filosofia de Hegel não é uma lógica; é uma filosofia da natureza. E os que
tiverem compreendido um pouco o que é o espírito objectivo poderão entrever em
que sentido a religião é uma história verdadeira. O Deus ideal não é mais o
Deus verdadeiro do que o Estado ideal é o Estado verdadeiro. Da mesma maneira
que Júpiter é mais verdadeiro na obra de Fídias do que na narrativa homérica,
do mesmo modo, e num grau mais elevado de realidade, a incarnação histórica é
mais verdadeira do que a incarnação simplesmente concebida. Só a religião
resolve os problemas que a religião coloca; e, como Hegel disse explicitamente,
“os homens não esperaram a filosofia para adquirir a consciência da verdade”.
Se se pergunta pois o que é a religião, é o desenvolvimento histórico que
responderá. Todo o trabalho de Hegel, depois que, sob o nome de lógica, ele
desenvolveu o que é só possível, foi reencontrar o espírito na natureza, depois
no homem, depois na história. E essa parte de adivinhação, mais estritamente
orientada, é a parte viva do pensamento Hegeliano. Assim, no momento em que eu
me pergunto se creio no que diz Hegel da Trindade e de Cristo, descubro que
esta questão convém a uma filosofia do entendimento, aos olhos da qual a
existência é uma espécie de menos ser. Esta observação esclarece o juízo também
na política, porque o espírito dum povo nunca está naquilo que deveria fazer,
mas naquilo que fez.
Alain
(Tradução de José Ames)
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