terça-feira, 20 de março de 2012

A RELIGIÃO




A arte é já religião. Templos, estátuas, pintura, música, formam uma religião sem palavras, fechada sobre si própria, enigmática. E pôde-se notar, a partir do que precede, que a filosofia da arte não cessa de esclarecer a arte pela religião. A religião encontra-se pois colocada como um meio termo, ou como um grau da dialéctica, entre a arte e a filosofia. Todavia, de que a religião exprime pelo discurso e relações o que a arte significa absolutamente, por exemplo, a beleza dum deus Olímpico, não se deveria concluir que a religião é uma filosofia da arte. Porque é verdade que a religião é o pensamento do pensamento da  arte; mas isso é a filosofia que o sabe. Se portanto se quer apreender a religião na sua verdade, é preciso precaver-se de franquear demasiado depressa a escala dialéctica. A religião é a verdade da arte; a filosofia é a verdade da religião; mas este mesmo desenvolvimento é o que faz a verdade da religião. Uma religião iconoclasta é uma religião que corta as suas próprias raízes. E decerto a religião tem de negar a imagem miraculosa; é nisso que ela é religião; mas  tem de conservar também, segundo uma lei que nos é agora familiar, o termo suprimido. Do mesmo modo, uma filosofia iconoclasta, quer dizer, que quereria desenvolver-se sem o fundo religioso, seria uma filosofia abstracta, quer dizer, separada. Seria uma lógica; e a lógica está agora muito para trás de nós; decerto conservada, como directriz de todos os nossos pensamentos; mas superada, neste sentido que é na própria natureza e na história que devemos reencontrar a lógica. Saber a religião, é reencontrar a marcha dialéctica da arte à religião e da religião à filosofia, e é ainda reencontrar o mesmo progresso na própria religião. O espírito desenvolve-se sempre segundo a sua lei, quer dizer, do ser à ideia pela essência. A arte é, em relação à religião, o momento do ser; cada obra produz-se como suficiente e independente; mas, inevitavelmente a filosofia da arte encontra em todas essas obras o testemunho do trabalho do espírito; todavia, não sem a mediação da religião; porque a religião é um pensamento da arte, pensamento que se desenvolve em si, não para si,  da mesma maneira que a ciência quebra a lógica do ser, mas sem saber que a quebra. A religião não é ainda o pensamento que se sabe como tal; ela desenvolve-se segundo a representação e através das representações. E a representação está acima da imagem; a representação ultrapassa a imagem, e, pela memória e o discurso, ergue-se a um valor universal. Mas, a  fim de melhor pensar a religião no seu lugar, é preciso notar que a mesma marcha, do ser à ideia pela essência, se encontra ainda na religião. Haverá uma religião imediata, como é por exemplo a magia, e uma religião dos meios ou relações, tal a religião judaica, ou a grega, ou a romana; enfim, uma religião absoluta, que é a cristã, por esse dogma que a mediação se faz na unidade absoluta do espírito.  É assim que a noção realiza  a unidade do ser e da essência; tudo é mediação na ciência, quer dizer, ao nível da essência, mas essa mediação não se sabe como obra do espírito. Mesmo que esta grande construção fosse deixada no estado de projecto, é preciso convir que essa implicação da lógica em si mesma, e esse recomeço no detalhe sobre o modelo dum primeiro conjunto, essa sobreposição enfim de relações a três termos, ser, essência, ideia, forma um admirável retrato, e movente, dos nossos menores pensamentos. A antecipação aristotélica, de que o pensamento é o pensamento do pensamento, não está agora longe de tomar corpo. Mas é também aí que se encontra a obscuridade do sistema. Direi somente isto que este sistema é talvez o único que, permanecendo sistema, se obscurece o suficiente para nos tornar sensível a necessidade de sempre recomeçar. Compreender que esta dialéctica se produz a si mesma sem fim, é compreender Hegel, quer dizer, dar um objecto suficiente à imensa ideia do devir, que se mostrou abstracta no primeiro passo da lógica.

O remédio para este movimento que nos arrasta, e que muito facilmente nos faria tomar a Filosofia pela religião, é a dialéctica interior que recomeça nela mesma, sempre conforme a natureza, de que nós saímos, e donde nascem todos os nossos pensamentos. Não tomemos pois a religião como o mais profundo pensamento, embora ela a isso conduza; pelo contrário, consideremos a religião como um facto da natureza, tão fechado sobre si mesmo como a  arte, mas envolvido no entanto por uma dialéctica que o leva para fora de si mesmo, o faz florescer, de alguma maneira, sem o separar das suas raízes. E como esta dialéctica faz aparecer enfim o deus real, é o que é preciso tentar compreender a partir do que sabemos já do espírito objectivo. No fundo, a dificuldade é de compreender que a filosofia de Hegel não é uma lógica, mas uma filosofia da natureza. E eis aqui o caminho  uma vez mais. O direito é primeiro coisa natural; produz-se no interior dos trabalhos e das trocas; e é já o direito; mas a realidade do direito é o próprio desenvolvimento do direito, pela mediação da moralidade, da família, da sociedade civil, do Estado. O Estado é o direito enfim existente, onde o cidadão encontra os seus deveres e a sua liberdade; e não é  no seu pensamento subjectivo que o cidadão pode encontrar isso; ele reconhece pelo contrário que essa dialéctica no objecto, quer dizer, essa história real do direito, é o direito verdadeiro, em que se reúnem enfim a forma e o conteúdo. Só que essa história não é a mais alta história; a humanidade não está nela ainda toda desenvolvida. Uma história absoluta começa com a arte e a religião. E não é inútil insistir sobre isto que a arte é o primeiro estado da religião. Da mesma maneira que o direito, à medida que se desenvolve, é também mais real e mais concreto, igualmente a religião está muito longe de ser uma abstracção em relação à arte; pelo contrário, ela é o supremo concreto, a própria existência da natureza e do espírito reconciliados. Tal é o sentido da incarnação. As antigas religiões movem-se em contradições que não podem ultrapassar; é porque elas são abstractas. E toda a religião, mesmo absoluta,  é ainda abstracta quando se começa a pensar nisso. Todas as proposições dos teólogos, de que é preciso amar a  Deus, de que o homem nada pode sem a graça, de que Deus se fez homem e que morreu por nós, têm primeiro um sentido exterior; são pensamentos que formamos, e em que não podemos permanecer; e é primeiro difícil compreender que a obediência a Deus é a nossa própria liberdade, como já é difícil compreender que a obediência às leis é a própria liberdade do cidadão. Eis por que pensar a religião e o perguntar-se de seguida se ela é verdadeira, é falhar a religião. A prova da religião é a religião existente; e a prova ontológica no seu desenvolvimento é o pensamento de Deus. No mesmo sentido pode-se dizer que um Estado somente possível não é de maneira nenhuma um Estado. É que o Estado verdadeiro se desenvolveu a partir da natureza, como uma planta, segundo uma dialéctica interior. Do mesmo modo,  há só uma religião, que se desenvolveu através das religiões; e Hegel diz expressamente que é preciso reconciliar as religiões falsas com a verdadeira, que as contém como momentos suprimidos e conservados.

Eis o movimento dialéctico em resumo. Tentei evitar, nesta curta exposição de Hegel, a aparência dum índice; mas é um inconveniente ao qual não se pode completamente escapar. As mais antigas religiões devem ser ditas religiões da natureza, e a magia é a primeira de todas as religiões. A planta vive segundo a natureza, sem nenhuma cisão, e a sua acção é apenas o seu desejo. A magia oferece quase a mesma ingenuidade, a mesma união íntima e confiante, em que já se discerne no entanto o traço comum a todas as religiões, a saber que o espiritual, de qualquer modo que seja representado, tem para o homem um mais alto preço do que a natureza. Nesta infância de religião, crê-se que é por falta de saber desejar que se é incapaz de obter. A religião verdadeira está  toda neste começo, mas virtualmente. É preciso que cisões e contradições se produzam, que se  reconheçam como combates da alma consigo mesma nas religiões da China e da Índia, da Pérsia, da Síria, do Egipto. Mas a alma ainda não se reconheceu ela própria como lugar desses combates; o objecto domina.

Por oposição a estes grandes esboços que matam a alma, é preciso descrever as religiões da livre subjectividade, entre as quais a religião grega e a judaica se opõem vigorosamente. A religião judaica, ou religião do sublime, esmaga a alma humana pela imensidade dum deus sem forma que é o espírito, mas por outro lado releva a alma por este mesmo conhecimento. No oposto, a religião grega, ou religião da beleza, diviniza  a pessoa humana, feliz em si e suficiente; donde esse Olimpo político. Os estóicos purificam este paganismo, por um lado, reconduzindo os deuses à razão, por outro, exaltando o valor da alma; mas eles levam assim a um estado de separação abstracta a oposição entre o destino e a liberdade. Do mesmo modo que a filosofia não pode fazer uma obra de arte, também a filosofia  não pode fazer a unidade do espírito e da natureza como religião verdadeira. A religião verdadeira nasceu da história religiosa como a filosofia nasceu da história da filosofia. Dizer que o espírito absoluto é religião, é dizer que a religião, pela sua dialéctica própria, produziu uma representação à qual nada falta. Mas é claro também que os homens falham muitas vezes essa representação que lhes é trazida pela história, nela encontrando facilmente o destino separado ou a liberdade nua, e enfim sob novos nomes, todas as religiões antigas. Mas o que é então a religião absoluta?

Chegado a este ponto de dificuldade extrema, quero estar atento  a não dizer mais do que o que sei. O que me conduziu a Hegel, e me levou a reconstruir tanto quanto podia este poderoso sistema, foram ideias penetrantes que nele se encontram frequentemente, que corrigem, que esclarecem, enfim, que restabelecem o homem. Eu só escrevi estas páginas para propor de novo algumas dessas ideias ao leitor que não atribui grande valor à unidade dum sistema. A Filosofia do direito e a Estética são partes que brilham por si mesmas. Sentimo-nos conduzidos aos problemas reais, e descobre-se que a obscuridade proverbial desta filosofia é só a obscuridade real dos problemas. Donde se acaba por seguir Hegel ainda noutras questões; e a partir da minha experiência, é sempre com proveito. Ora eu creio que as ideias de Hegel sobre a religião nos aproximam como que por toques da religião verdadeira, aquela que se suspeita num santo ou num doutor místico, religião que não é a filosofia. Compreender,  aqui, não é superar, e, por exemplo, julgar a incarnação, a ressurreição, a redenção como mitos plenos de sentido; seria o mesmo erro que compreender o que diz uma estátua como um discurso que se pode traduzir; a estátua diz muito mais; e a simples percepção, é o próprio da arte, ultrapassa todos os discursos. Ora, que tudo esteja no espírito, e que a consciência não possa conhecer os seus limites sem os franquear, de modo que nela mesma experimente o que lhe falta, ou ainda que a trindade dos teólogos represente um movimento do pensamento que não se pode recusar, é o que todo o sistema esclarece abundantemente; e tal é a religião naquele que não tem religião. Há mais de uma maneira engenhosa de compreender aquilo que outros crêem. Mas a filosofia de Hegel não é uma lógica; é uma filosofia da natureza. E os que tiverem compreendido um pouco o que é o espírito objectivo poderão entrever em que sentido a religião é uma história verdadeira. O Deus ideal não é mais o Deus verdadeiro do que o Estado ideal é o Estado verdadeiro. Da mesma maneira que Júpiter é mais verdadeiro na obra de Fídias do que na narrativa homérica, do mesmo modo, e num grau mais elevado de realidade, a incarnação histórica é mais verdadeira do que a incarnação simplesmente concebida. Só a religião resolve os problemas que a religião coloca; e, como Hegel disse explicitamente, “os homens não esperaram a filosofia para adquirir a consciência da verdade”. Se se pergunta pois o que é a religião, é o desenvolvimento histórico que responderá. Todo o trabalho de Hegel, depois que, sob o nome de lógica, ele desenvolveu o que é só possível, foi reencontrar o espírito na natureza, depois no homem, depois na história. E essa parte de adivinhação, mais estritamente orientada, é a parte viva do pensamento Hegeliano. Assim, no momento em que eu me pergunto se creio no que diz Hegel da Trindade e de Cristo, descubro que esta questão convém a uma filosofia do entendimento, aos olhos da qual a existência é uma espécie de menos ser. Esta observação esclarece o juízo também na política, porque o espírito dum povo nunca está naquilo que deveria fazer, mas naquilo que fez.


Alain
(Tradução de José Ames)



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