sexta-feira, 23 de março de 2012

O SISTEMA DAS CIÊNCIAS




O espírito sem objecto divaga. Por isso é preciso meditar não tanto sobre os métodos como sobre as próprias ciências; porque o espírito eficaz é o espírito actuante na ciência, e por uma espécie de experiência humana continuada. A ciência é a ferramenta e a armadura do espírito; e o espírito encontrará o seu destino e a sua salvação, se pode encontrá-los, não voltando a si mesmo  confuso e confundível, perseguição duma sombra, mas sempre procurando o objecto e nele se apoiando. Todavia o poder industrial que dá a ciência só deve figurar aqui a título de prova indirecta; porque acontece muitas vezes, segundo uma frase célebre, que o sábio pode mais do que o que sabe. E, pelo contrário, as partes das ciências mais instrutivas, para esse outro poder sobre si que aqui buscamos, são aquelas cujas conquistas, desde há muito asseguradas, já não atordoam; o que deixa perceber que os conhecimentos tornados escolares, e que são familiares ao homem médio, bastarão ao leitor atento. Não que Comte não se tenha mostrado muitas vezes profundamente iniciado nas pesquisas mais difíceis, como estava, e bom de ler ainda hoje para o matemático mais ousado e para o físico mais engenhoso. Essas partes de alta dificuldade assinalá-las-ei conforme o respeito, mas renuncio à partida a propor a doutrina por esse lado. Porque me apercebo dum género de dificuldade que é preciso primeiro vencer, e que está ligado às partes fáceis e evidentes, que facilmente se crê compreender. Em todo o autor de monta, as partes fáceis são demasiadas vezes desprezadas, e assim a escalada até aos cimos não se encontra preparada, contemplando-se então de muito longe. De resto, quanto à eficácia para a política real e para os costumes de amanhã, as partes fáceis são as que importam mais. E pudesse eu tornar essas velhas coisas difíceis e novas, ao ponto de alguém se surpreender por achar irrefutáveis conclusões cem vezes refutadas. Ora é o que se obtém não pela prova, que é muitas vezes apenas uma refutação da refutação, mas pela própria exposição, e sem nenhuma astúcia de polémica.

Nada caracteriza melhor o Espírito positivo do que essa cultura, coisa completamente nova, pela ciência real e enciclopédica. Mas também essa cultura supõe uma visão de conjunto, que alguns se comprazem em dizer impossível, mas que é pelo contrário fácil pela revisão dos conhecimentos incontestáveis. Em lugar do que os corpos académicos, vivendo cada um segundo a sua especialidade, se encontram completamente afastados da sabedoria que está no entanto ao alcance das suas mãos, e caem pelo contrário, como Comte o tinha visto e previsto, em pesquisas subtis e ociosas, e finalmente em divagações cépticas, como acontece com os matemáticos, os médicos, os historiadores. E porque esta falsa elegância é uma coisa demasiado familiar ao público, a ideia dum conjunto de conhecimentos adquiridos, reguladores,  eficazes para a polícia do espírito, é daquelas que é preciso apresentar desde o começo, como se se falasse a ignorantes. Porque como acreditar, antes de um exame amplo e atento, que as nossas ciências, tão evidentemente insuficientes quanto ao imenso objecto, sejam pelo contrário amplamente suficientes quanto à disciplina do sujeito?

A matemática foi originariamente, e é ainda, numa boa parte, uma física dos números, das formas e das grandezas. Mas, pela necessidade das medidas indirectas, segundo a nossa aptidão para medir sobretudo ângulos, o cálculo amplificou-se até se tornar uma ciência das ligações mensuráveis; e a partir daí o domínio das matemáticas estende-se tão longe quanto o nosso próprio conhecimento. Por estas razões, enganámo-nos durante muito tempo e enganamo-nos ainda, até ao ponto de tomar a ciência mais abstracta pela mais relevante e eminente. Na realidade é a mais fácil de todas, pois que em cada ciência dificuldades novas se acrescentam àquelas que são próprias do cálculo. Por isso mesmo é preciso considerar o estudo das Matemáticas como a indispensável preparação ao espírito de pesquisa, e exactamente a todos os géneros de observação. Não há pesquisa, mesmo histórica,  na qual o problema do Onde e do Quando não suponham uma iniciação matemática. A partir destes exemplos compreender-se-á, em contrapartida, que o imenso domínio das ligações e combinações somente possíveis abre um campo ilimitado às pesquisas ociosas. A matemática encontra o seu sentido nas ciências mais complexas que dependem dela; e assim se mostra o começo duma série de ciências, ordenadas segundo marcha cartesiana do simples ao complexo e do abstracto ao concreto. A matemática ela mesma forneceu o modelo irrepreensível das séries plenas e bem ordenadas.  O nosso filósofo foi um dos raros homens que pensou por séries, aplicando assim a nova lógica, bem diferente do antigo silogismo. Encontraremos na sequência exemplos da aplicação deste método a problemas muito difíceis. Mas a série das seis ciências fundamentais é uma das que fornecem desde já a ocasião duma reflexão regulada, cujos desenvolvimentos estão muito longe de estarem esgotados.

A relação da matemática à astronomia não está de modo nenhum escondida. Que se considerem os meios do cálculo, ou apenas os instrumentos, percebemos facilmente que as mesmas descrições preliminares que dão a conhecer o céu supõem já os rudimentos da geometria e do cálculo. Que a astronomia encontre o seu lugar logo a seguir à Matemática, e que ela seja a sua aplicação mais fácil, formando assim a  passagem à ciência da natureza, é o que resulta ao mesmo tempo do afastamento dos objectos astronómicos, que simplifica os dados, e do facto dos acontecimentos astronómicos se encontrarem subtraídos à nossa acção. A astronomia devia ser, pelas suas causas,  e foi realmente, a iniciadora de toda a física real, pela pronta eliminação das causas ocultas e a aparição, desde as primeiras pesquisas, de leis invariáveis. Que a física seja como que a filha da astronomia, é o que a história das hipóteses permite compreender até ao detalhe. E que a física seja ela própria mais abstracta do que a química, ninguém o contestará; o simples exemplo da balança, que foi o primeiro instrumento da química positiva, leva a pensar que o estudo das relações como peso, calor, electricidade, entre os corpos terrestres, precedia naturalmente uma investigação concernindo à sua estrutura íntima, e às suas estáveis combinações. A história da energia, noção preparada pela mecânica celeste e desenvolvida pela física, até fornecer a primeira ideia positiva sobre a lei das mudanças químicas, justifica amplamente a ordem das quatro primeiras ciências. E quaisquer que sejam os retornos pelos quais as descobertas químicas ou físicas possam reagir sobre a astronomia e sobre a própria matemática, provocando novas pesquisas, essas relações secundárias não devem de modo nenhum mascarar aos olhos do filósofo o principal trabalho do espírito, necessariamente conduzido do mais fácil ao mais difícil. A ordem enciclopédica mostra-se. Falta prosseguir e acabar a série, trabalho que se fez na história, mas de que a reflexão nem sempre se apercebeu.

A biologia, ou ciência da vida, oferece evidentemente dificuldades superiores, uma vez que os vivos, qualquer que possa ser a sua lei própria, são necessariamente submetidos às lei químicas, físicas, astronómicas, e mesmo matemáticas. A história faz ver, e a lógica real faz compreender que os problemas biológicos não podiam ser convenientemente colocados senão depois duma preparação química que supunha ela própria as disciplinas precedentes. Todavia, na sequência do imenso interesse, seja por curiosidade, seja por utilidade, que estava ligado a este género de pesquisas, um imenso esforço foi feito, desde os tempos mais antigos, para descrever e tentar prever, quanto às espécies, às filiações, e quanto ao resultado das doenças e ao efeito dos remédios. Não é menos notável que esse grande esforço dos naturalistas e dos médicos não tenha tido outros resultados, durante longos séculos,  além de descobrir procedimentos empíricos, decerto não negligenciáveis, mas sem nenhuma luz para o espírito. O uso do termómetro na observação médica é um exemplo entre mil da dependência em que se encontra a biologia em relação às ciências precedentes. De qualquer modo, é preciso concluir que as noções físicas e químicas previamente elaboradas foram os reais instrumentos da biologia positiva. Esses artigos de filosofia são hoje bem conhecidos; mas importa  estar bem seguro deles por um retorno sobre os inumeráveis exemplos. Porque a sequência e o fim da série das ciências reserva ainda muitas surpresas.

A sociologia, nomeada por Comte, e podemos mesmo dizer inventada por ele, como acabando a série das seis ciências fundamentais, é tão antiga quanto os homens. Mas o desejo de saber não basta para nada. A história e a política pareceram andar à volta entre as obscuridades e as contradições que se julgarão inevitáveis, se se compreender que os factos sociológicos são os mais complexos de todos. A sociedade, qualquer que seja a sua estrutura própria, é necessariamente submetida às leis da vida, e, por elas, a todas as outras. Por exemplo, o problema da alimentação domina toda a política, e mesmo toda a moral. Os trabalhos são biológicos, químicos, físicos, e mesmo astronómicos; assim, o problema social do trabalho não pode ser abordado utilmente  sem a preparação enciclopédica. O problema da família é primeiramente biológico. Por exemplo, o regime das castas, em que a hereditariedade regula os níveis e as funções, deve ser primeiro compreendido como uma espécie de tirania da biologia sobre a sociologia. Mas era apenas uma prática sem qualquer reflexão. Assim, em todas as ordens de pesquisa, as condições inferiores, que não são tudo, mas que não se podem deixar de sofrer, permaneciam desconhecidas aos puros literatos a quem competia a função de escrever a história; e os nossos programas de estudos consagram ainda essa separação entre as ciências positivas e as considerações de utilidade ou de dignidade ou de partido que se reporta impropriamente à filosofia da história.

É preciso considerar como uma das mais importantes descobertas de Comte a ideia de ligar a ciência das sociedades bem ordenadas segundo a ordem de complexidade crescente. A sociologia é a mais complexa das ciências; ela supõe uma preparação biológica, química, física e  mesmo astronómica. E como as primeiras tentativas verdadeiramente eficazes da biologia resultaram  do preconceito químico, do mesmo modo se deve dizer que as primeiras luzes reais nas pesquisas sociológicas vieram e  virão do preconceito biológico, como as célebres antecipações de Montesquieu o deixam adivinhar.  E reconhece-se aqui facilmente a ideia marxista, tão celebrada depois, que evidentemente nada deve a Comte, mas que está no entanto em Comte.  Quando tivermos de explicar que as próprias ciências são factos sociológicos, o leitor deverá reter este exemplo duma mesma ideia descoberta ao mesmo tempo por diferentes caminhos, a mudança das sociedades ocidentais, e um certo regime dos trabalhos industriais, e também dos trabalhos intelectuais, tendo levado à maturidade uma concepção até aí profundamente escondida. Limitemo-nos a dizer agora, pela nossa própria série, que a última das ciências, a mais complexa, aquela que depende de todas as outras, é também aquela de que depende a solução do problema humano.  É tão vão procurar uma moral antes de ter estudado segundo o método da situação humana, como o é abordar a sociologia sem uma preparação biológica suficiente, ou a biologia sem a preparação físico-química que depende ela mesma evidentemente dos estudos astronómicos e matemáticos. Toda a cultura científica é enciclopédica; isso esclarece de novo a própria pesquisa, e também a educação.

Talvez o leitor tenha agora a ideia, segundo a importância, o peso e a dificuldade do termo final, de que a filosofia positiva está muito longe de se satisfazer com abstracções, que são aos seus olhos, pelo contrário, tão-só preliminares. Esta visão de conjunto não vai deixar de corrigir a partir de agora o que o espírito científico, entregue às especialidades, mostra agora de insuficiência e algumas vezes de enfatuação. Depois da indispensável reforma que deveria retirar e retirará inevitavelmente a direcção dos estudos aos literatos e aos eruditos, é preciso agora julgar os próprios sábios, e sobretudo os mais seguros no seu domínio, que não tiranizam menos. A nossa adolescência encontra-se como que dilacerada entre os matemáticos e os historiadores, segundo uma sumária oposição entre o espírito de geometria  e o espírito de finura. Mas mais uma vez a inspecção da nossa série das ciências vai reduzir os conflitos à ordem de razão.

De que cada ciência depende da precedente, e de que precedente fornece naturalmente à seguinte as primeiras hipóteses, que são verdadeiramente instrumentos,  não se deve concluir que a primeira das ciências seja a mais eminente de todas, como os orgulhosos especialistas se-lo persuadem. A primeira das ciências, entendei aquela por que é preciso começar, é também a mais abstracta de todas, digamos mesmo a mais vazia e a mais pobre se a tomarmos como fim. Considerando a nossa série, matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia, julgar-se-á que a ciência que segue é sempre mais rica, mais fecunda, mais próxima do problema humano; por isso ela é sempre caracterizada pelas leis que lhe são próprias e que as ciências precedentes não teriam podido adivinhar. Na verdade, é sempre pela sua insuficiência, mas muito precisamente determinada, que as hipóteses devidas à ciência precedente fazem aparecer as verdades próprias da ciência que a segue. Esta observação é de natureza a terminar todos os debates sobre o valor das ideias. Mas o império da ciência precedente, mais segura, e primeiro a única segura, ilude sempre; por exemplo, a equação dá forma à física, a balança rege a química, a energética domina a biologia, e a biologia condiciona a verdadeira sociologia. Todavia, é de bom senso que a pretensão de deduzir o concreto do abstracto, ou com mais nuanças, de reduzir a ciência que segue a ser apenas uma província daquela que precede, vai contra a regra suprema dos nossos conhecimentos, segundo a qual a experiência é a única fonte das verdades, sem nenhuma excepção. E esta chamada à modéstia faz aparecer na sua verdadeira luz uma ideia em todos os tempos proposta e repudiada; os filósofos encontrarão aqui, pode-se dizê-lo, a solução duma das dificuldades que os ocupam sem que eles possam alguma vez avançar um passo. Seguindo o luminoso comentário de Comte, nós chamaremos materialismo a essa tendência, que  a verdadeira cultura enciclopédica  corrige, para reduzir cada ciência à precedente, o que é apenas idolatria da forma abstracta, e o instrumento tomado pelo objecto. Esta ideia surpreende ao princípio, mas imediatamente esclarece. Por pouco que se preste atenção à própria definição da matéria, que é sempre abstracta e sem corpo, compreender-se-á que a palavra Materialismo não caracteriza menos bem a disposição para reduzir a mecânica à matemática, do que a tendência, mais facilmente julgada,  para subordinar sem reservas a sociologia à biologia até a reduzir todas as leis sociais dizendo respeito mesmo à religião e à moral a condições de reprodução, de alimentação e de adaptação ao clima, aberração conhecida agora sob o nome de materialismo histórico. Comte não pôde prever esta maneira de dizer, hoje popular,  e que a renovação ousada duma das noções mais disputadas verifica plenamente. Todavia o leitor não aceitará sem resistência que o matemático esteja disposto pelos seus estudos mesmos ao mais puro materialismo, e que nele se deixe  deslizar facilmente. É notável,  mas é de princípio incompreensível, que o idealismo e o materialismo, esses dois contrários, passem subitamente de um para o outro; por um lado, porque o materialismo só encontra para pensar uma simplificação ousada e um mundo todo o abstracto tal qual o homem o fabricaria segundo o modelo das suas máquinas, o que é supor que as nossas ideias mais simples são o estofo do mundo; e por outro lado porque o matemático só apreende as relações exteriores, e se encontra para sempre separado do que dá valor à existência, desde que crê  demasiado em si. A história dos sistemas é como que iluminada por observações deste género. Mas, como é preciso alguma preparação para as compreender bem, considerar-se-á frutuosa uma outra usurpação e uma outra tirania, que quer submeter absolutamente a biologia à química; a ideia popular do materialismo concordará aqui facilmente com o paradoxo positivista. E eu insisti um pouco sobre isso para fazer perceber, ou pelo menos entrever, o preço duma série bem ordenada. O desenvolvimento seria sem fim.

A este propósito, quero esboçar ainda a noção duma lógica real, noção nova, e que deve modificar profundamente as doutrinas da escola. O espírito humano conhece muito mal a sua própria acção, e não devemos surpreender-nos com isso, uma vez que a extrema contracção do espírito exclui todo o olhar complacente do pensador sobre si mesmo; e que, assim, aqueles que pensam melhor são também os menos dispostos a pensar o pensamento. É somente na história humana que o espírito se conhece. E, por exemplo, revela-se, pelo desenvolvimento tardio das ciências mais concretas, que os diversos procedimentos da lógica foram aprendidos sucessivamente, cada uma das ciências fundamentais despertando e exercendo no homem um modo de pensar que responde à natureza mesma das questões postas; donde se vê como um espírito se forma segundo a ordem enciclopédica. É assim que o matemático nos ensina o raciocínio, a astronomia, a arte de observar, a física, as astúcias da experimentação, a química, a arte de classificar, a biologia, o método comparativo, e a sociologia, o espírito de conjunto. Compreende-se facilmente que o espírito de observação corrompe o raciocínio quando as dificuldades do cálculo não impuseram ao investigador um severo exercício prévio. E também a arte de experimentar, se nela nos precipitarmos, extenuará a observação pura, que apenas a astronomia nos podia ensinar. Quanto às outras relações, e sobretudo à última, segundo a qual a sociologia, por um retorno de reflexão, deve regular finalmente todas as outras ciências por uma espécie de juízo final, encontram-se dificuldades que não se vencerão sem esforço, e diante das quais um resumo é necessariamente insuficiente. O próprio Comte não escapou, nos seus resumos, à tentação de traçar caminhos fáceis, e demasiado fáceis, o que é persuadir em vez de instruir. Daí os equívocos, e sobretudo nos seus discípulos mais fiéis. É preciso seguir passo a passo as amplas lições do Curso de filosofia positiva; sem o que se acreditará saber o que é o Positivismo, e não  se lo-saberá de todo.


Alain
(Tradução de José Ames)

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