O
espírito sem objecto divaga. Por isso é preciso meditar não tanto sobre os
métodos como sobre as próprias ciências; porque o espírito eficaz é o espírito
actuante na ciência, e por uma espécie de experiência humana continuada. A
ciência é a ferramenta e a armadura do espírito; e o espírito encontrará o seu
destino e a sua salvação, se pode encontrá-los, não voltando a si mesmo confuso e confundível, perseguição duma
sombra, mas sempre procurando o objecto e nele se apoiando. Todavia o poder
industrial que dá a ciência só deve figurar aqui a título de prova indirecta;
porque acontece muitas vezes, segundo uma frase célebre, que o sábio pode mais
do que o que sabe. E, pelo contrário, as partes das ciências mais instrutivas,
para esse outro poder sobre si que aqui buscamos, são aquelas cujas conquistas,
desde há muito asseguradas, já não atordoam; o que deixa perceber que os
conhecimentos tornados escolares, e que são familiares ao homem médio, bastarão
ao leitor atento. Não que Comte não se tenha mostrado muitas vezes
profundamente iniciado nas pesquisas mais difíceis, como estava, e bom de ler
ainda hoje para o matemático mais ousado e para o físico mais engenhoso. Essas
partes de alta dificuldade assinalá-las-ei conforme o respeito, mas renuncio à
partida a propor a doutrina por esse lado. Porque me apercebo dum género de
dificuldade que é preciso primeiro vencer, e que está ligado às partes fáceis e
evidentes, que facilmente se crê compreender. Em todo o autor de monta, as
partes fáceis são demasiadas vezes desprezadas, e assim a escalada até aos
cimos não se encontra preparada, contemplando-se então de muito longe. De
resto, quanto à eficácia para a política real e para os costumes de amanhã, as
partes fáceis são as que importam mais. E pudesse eu tornar essas velhas coisas
difíceis e novas, ao ponto de alguém se surpreender por achar irrefutáveis
conclusões cem vezes refutadas. Ora é o que se obtém não pela prova, que é
muitas vezes apenas uma refutação da refutação, mas pela própria exposição, e
sem nenhuma astúcia de polémica.
Nada
caracteriza melhor o Espírito positivo do que essa cultura, coisa completamente
nova, pela ciência real e enciclopédica. Mas também essa cultura supõe uma
visão de conjunto, que alguns se comprazem em dizer impossível, mas que é pelo
contrário fácil pela revisão dos conhecimentos incontestáveis. Em lugar do que
os corpos académicos, vivendo cada um segundo a sua especialidade, se encontram
completamente afastados da sabedoria que está no entanto ao alcance das suas
mãos, e caem pelo contrário, como Comte o tinha visto e previsto, em pesquisas
subtis e ociosas, e finalmente em divagações cépticas, como acontece com os
matemáticos, os médicos, os historiadores. E porque esta falsa elegância é uma
coisa demasiado familiar ao público, a ideia dum conjunto de conhecimentos
adquiridos, reguladores, eficazes para a
polícia do espírito, é daquelas que é preciso apresentar desde o começo, como se
se falasse a ignorantes. Porque como acreditar, antes de um exame amplo e
atento, que as nossas ciências, tão evidentemente insuficientes quanto ao
imenso objecto, sejam pelo contrário amplamente suficientes quanto à disciplina
do sujeito?
A
matemática foi originariamente, e é ainda, numa boa parte, uma física dos
números, das formas e das grandezas. Mas, pela necessidade das medidas
indirectas, segundo a nossa aptidão para medir sobretudo ângulos, o cálculo
amplificou-se até se tornar uma ciência das ligações mensuráveis; e a partir
daí o domínio das matemáticas estende-se tão longe quanto o nosso próprio
conhecimento. Por estas razões, enganámo-nos durante muito tempo e enganamo-nos
ainda, até ao ponto de tomar a ciência mais abstracta pela mais relevante e
eminente. Na realidade é a mais fácil de todas, pois que em cada ciência
dificuldades novas se acrescentam àquelas que são próprias do cálculo. Por isso
mesmo é preciso considerar o estudo das Matemáticas como a indispensável
preparação ao espírito de pesquisa, e exactamente a todos os géneros de
observação. Não há pesquisa, mesmo histórica,
na qual o problema do Onde e do Quando não suponham uma
iniciação matemática. A partir destes exemplos compreender-se-á, em
contrapartida, que o imenso domínio das ligações e combinações somente
possíveis abre um campo ilimitado às pesquisas ociosas. A matemática encontra o
seu sentido nas ciências mais complexas que dependem dela; e assim se mostra o
começo duma série de ciências, ordenadas segundo marcha cartesiana do simples
ao complexo e do abstracto ao concreto. A matemática ela mesma forneceu o
modelo irrepreensível das séries plenas e bem ordenadas. O nosso filósofo foi um dos raros homens que
pensou por séries, aplicando assim a nova lógica, bem diferente do antigo
silogismo. Encontraremos na sequência exemplos da aplicação deste método a
problemas muito difíceis. Mas a série das seis ciências fundamentais é uma das
que fornecem desde já a ocasião duma reflexão regulada, cujos desenvolvimentos
estão muito longe de estarem esgotados.
A
relação da matemática à astronomia não está de modo nenhum escondida. Que se
considerem os meios do cálculo, ou apenas os instrumentos, percebemos
facilmente que as mesmas descrições preliminares que dão a conhecer o céu
supõem já os rudimentos da geometria e do cálculo. Que a astronomia encontre o
seu lugar logo a seguir à Matemática, e que ela seja a sua aplicação mais
fácil, formando assim a passagem à
ciência da natureza, é o que resulta ao mesmo tempo do afastamento dos objectos
astronómicos, que simplifica os dados, e do facto dos acontecimentos
astronómicos se encontrarem subtraídos à nossa acção. A astronomia devia ser,
pelas suas causas, e foi realmente, a
iniciadora de toda a física real, pela pronta eliminação das causas ocultas e a
aparição, desde as primeiras pesquisas, de leis invariáveis. Que a física seja
como que a filha da astronomia, é o que a história das hipóteses permite
compreender até ao detalhe. E que a física seja ela própria mais abstracta do
que a química, ninguém o contestará; o simples exemplo da balança, que foi o
primeiro instrumento da química positiva, leva a pensar que o estudo das
relações como peso, calor, electricidade, entre os corpos terrestres, precedia
naturalmente uma investigação concernindo à sua estrutura íntima, e às suas
estáveis combinações. A história da energia, noção preparada pela mecânica
celeste e desenvolvida pela física, até fornecer a primeira ideia positiva
sobre a lei das mudanças químicas, justifica amplamente a ordem das quatro
primeiras ciências. E quaisquer que sejam os retornos pelos quais as
descobertas químicas ou físicas possam reagir sobre a astronomia e sobre a
própria matemática, provocando novas pesquisas, essas relações secundárias não
devem de modo nenhum mascarar aos olhos do filósofo o principal trabalho do
espírito, necessariamente conduzido do mais fácil ao mais difícil. A ordem
enciclopédica mostra-se. Falta prosseguir e acabar a série, trabalho que se fez
na história, mas de que a reflexão nem sempre se apercebeu.
A
biologia, ou ciência da vida, oferece evidentemente dificuldades superiores,
uma vez que os vivos, qualquer que possa ser a sua lei própria, são
necessariamente submetidos às lei químicas, físicas, astronómicas, e mesmo
matemáticas. A história faz ver, e a lógica real faz compreender que os
problemas biológicos não podiam ser convenientemente colocados senão depois
duma preparação química que supunha ela própria as disciplinas precedentes.
Todavia, na sequência do imenso interesse, seja por curiosidade, seja por
utilidade, que estava ligado a este género de pesquisas, um imenso esforço foi
feito, desde os tempos mais antigos, para descrever e tentar prever, quanto às
espécies, às filiações, e quanto ao resultado das doenças e ao efeito dos
remédios. Não é menos notável que esse grande esforço dos naturalistas e dos
médicos não tenha tido outros resultados, durante longos séculos, além de descobrir procedimentos empíricos,
decerto não negligenciáveis, mas sem nenhuma luz para o espírito. O uso do termómetro
na observação médica é um exemplo entre mil da dependência em que se encontra a
biologia em relação às ciências precedentes. De qualquer modo, é preciso
concluir que as noções físicas e químicas previamente elaboradas foram os reais
instrumentos da biologia positiva. Esses artigos de filosofia são hoje bem
conhecidos; mas importa estar bem seguro
deles por um retorno sobre os inumeráveis exemplos. Porque a sequência e o fim
da série das ciências reserva ainda muitas surpresas.
A
sociologia, nomeada por Comte, e podemos mesmo dizer inventada por ele, como
acabando a série das seis ciências fundamentais, é tão antiga quanto os homens.
Mas o desejo de saber não basta para nada. A história e a política pareceram
andar à volta entre as obscuridades e as contradições que se julgarão
inevitáveis, se se compreender que os factos sociológicos são os mais complexos
de todos. A sociedade, qualquer que seja a sua estrutura própria, é
necessariamente submetida às leis da vida, e, por elas, a todas as outras. Por
exemplo, o problema da alimentação domina toda a política, e mesmo toda a
moral. Os trabalhos são biológicos, químicos, físicos, e mesmo astronómicos;
assim, o problema social do trabalho não pode ser abordado utilmente sem a preparação enciclopédica. O problema da
família é primeiramente biológico. Por exemplo, o regime das castas, em que a
hereditariedade regula os níveis e as funções, deve ser primeiro compreendido
como uma espécie de tirania da biologia sobre a sociologia. Mas era apenas uma
prática sem qualquer reflexão. Assim, em todas as ordens de pesquisa, as
condições inferiores, que não são tudo, mas que não se podem deixar de sofrer,
permaneciam desconhecidas aos puros literatos a quem competia a função de
escrever a história; e os nossos programas de estudos consagram ainda essa separação
entre as ciências positivas e as considerações de utilidade ou de dignidade ou
de partido que se reporta impropriamente à filosofia da história.
É
preciso considerar como uma das mais importantes descobertas de Comte a ideia
de ligar a ciência das sociedades bem ordenadas segundo a ordem de complexidade
crescente. A sociologia é a mais complexa das ciências; ela supõe uma
preparação biológica, química, física e
mesmo astronómica. E como as primeiras tentativas verdadeiramente
eficazes da biologia resultaram do
preconceito químico, do mesmo modo se deve dizer que as primeiras luzes reais
nas pesquisas sociológicas vieram e
virão do preconceito biológico, como as célebres antecipações de
Montesquieu o deixam adivinhar. E
reconhece-se aqui facilmente a ideia marxista, tão celebrada depois, que
evidentemente nada deve a Comte, mas que está no entanto em Comte. Quando tivermos de explicar que as próprias
ciências são factos sociológicos, o leitor deverá reter este exemplo duma mesma
ideia descoberta ao mesmo tempo por diferentes caminhos, a mudança das
sociedades ocidentais, e um certo regime dos trabalhos industriais, e também
dos trabalhos intelectuais, tendo levado à maturidade uma concepção até aí
profundamente escondida. Limitemo-nos a dizer agora, pela nossa própria série,
que a última das ciências, a mais complexa, aquela que depende de todas as
outras, é também aquela de que depende a solução do problema humano. É tão vão procurar uma moral antes de ter estudado
segundo o método da situação humana, como o é abordar a sociologia sem uma
preparação biológica suficiente, ou a biologia sem a preparação físico-química
que depende ela mesma evidentemente dos estudos astronómicos e matemáticos.
Toda a cultura científica é enciclopédica; isso esclarece de novo a própria
pesquisa, e também a educação.
Talvez
o leitor tenha agora a ideia, segundo a importância, o peso e a dificuldade do
termo final, de que a filosofia positiva está muito longe de se satisfazer com
abstracções, que são aos seus olhos, pelo contrário, tão-só preliminares. Esta
visão de conjunto não vai deixar de corrigir a partir de agora o que o espírito
científico, entregue às especialidades, mostra agora de insuficiência e algumas
vezes de enfatuação. Depois da indispensável reforma que deveria retirar e
retirará inevitavelmente a direcção dos estudos aos literatos e aos eruditos, é
preciso agora julgar os próprios sábios, e sobretudo os mais seguros no seu
domínio, que não tiranizam menos. A nossa adolescência encontra-se como que
dilacerada entre os matemáticos e os historiadores, segundo uma sumária
oposição entre o espírito de geometria e
o espírito de finura. Mas mais uma vez a inspecção da nossa série das ciências
vai reduzir os conflitos à ordem de razão.
De
que cada ciência depende da precedente, e de que precedente fornece
naturalmente à seguinte as primeiras hipóteses, que são verdadeiramente
instrumentos, não se deve concluir que a
primeira das ciências seja a mais eminente de todas, como os orgulhosos
especialistas se-lo persuadem. A primeira das ciências, entendei aquela por que
é preciso começar, é também a mais abstracta de todas, digamos mesmo a mais
vazia e a mais pobre se a tomarmos como fim. Considerando a nossa série,
matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia, julgar-se-á que
a ciência que segue é sempre mais rica, mais fecunda, mais próxima do problema
humano; por isso ela é sempre caracterizada pelas leis que lhe são próprias e
que as ciências precedentes não teriam podido adivinhar. Na verdade, é sempre
pela sua insuficiência, mas muito precisamente determinada, que as hipóteses
devidas à ciência precedente fazem aparecer as verdades próprias da ciência que
a segue. Esta observação é de natureza a terminar todos os debates sobre o
valor das ideias. Mas o império da ciência precedente, mais segura, e primeiro
a única segura, ilude sempre; por exemplo, a equação dá forma à física, a
balança rege a química, a energética domina a biologia, e a biologia condiciona
a verdadeira sociologia. Todavia, é de bom senso que a pretensão de deduzir o
concreto do abstracto, ou com mais nuanças, de reduzir a ciência que segue a
ser apenas uma província daquela que precede, vai contra a regra suprema dos
nossos conhecimentos, segundo a qual a experiência é a única fonte das
verdades, sem nenhuma excepção. E esta chamada à modéstia faz aparecer na sua
verdadeira luz uma ideia em todos os tempos proposta e repudiada; os filósofos
encontrarão aqui, pode-se dizê-lo, a solução duma das dificuldades que os
ocupam sem que eles possam alguma vez avançar um passo. Seguindo o luminoso
comentário de Comte, nós chamaremos materialismo a essa tendência, que a verdadeira cultura enciclopédica corrige, para reduzir cada ciência à
precedente, o que é apenas idolatria da forma abstracta, e o instrumento tomado
pelo objecto. Esta ideia surpreende ao princípio, mas imediatamente esclarece.
Por pouco que se preste atenção à própria definição da matéria, que é sempre
abstracta e sem corpo, compreender-se-á que a palavra Materialismo não caracteriza
menos bem a disposição para reduzir a mecânica à matemática, do que a
tendência, mais facilmente julgada, para
subordinar sem reservas a sociologia à biologia até a reduzir todas as leis
sociais dizendo respeito mesmo à religião e à moral a condições de reprodução,
de alimentação e de adaptação ao clima, aberração conhecida agora sob o nome de
materialismo histórico. Comte não pôde prever esta maneira de dizer, hoje
popular, e que a renovação ousada duma
das noções mais disputadas verifica plenamente. Todavia o leitor não aceitará
sem resistência que o matemático esteja disposto pelos seus estudos mesmos ao
mais puro materialismo, e que nele se deixe
deslizar facilmente. É notável,
mas é de princípio incompreensível, que o idealismo e o materialismo,
esses dois contrários, passem subitamente de um para o outro; por um lado,
porque o materialismo só encontra para pensar uma simplificação ousada e um
mundo todo o abstracto tal qual o homem o fabricaria segundo o modelo das suas
máquinas, o que é supor que as nossas ideias mais simples são o estofo do
mundo; e por outro lado porque o matemático só apreende as relações exteriores,
e se encontra para sempre separado do que dá valor à existência, desde que
crê demasiado em si. A história dos
sistemas é como que iluminada por observações deste género. Mas, como é preciso
alguma preparação para as compreender bem, considerar-se-á frutuosa uma outra
usurpação e uma outra tirania, que quer submeter absolutamente a biologia à
química; a ideia popular do materialismo concordará aqui facilmente com o
paradoxo positivista. E eu insisti um pouco sobre isso para fazer perceber, ou
pelo menos entrever, o preço duma série bem ordenada. O desenvolvimento seria
sem fim.
A
este propósito, quero esboçar ainda a noção duma lógica real, noção nova, e que
deve modificar profundamente as doutrinas da escola. O espírito humano conhece
muito mal a sua própria acção, e não devemos surpreender-nos com isso, uma vez
que a extrema contracção do espírito exclui todo o olhar complacente do
pensador sobre si mesmo; e que, assim, aqueles que pensam melhor são também os
menos dispostos a pensar o pensamento. É somente na história humana que o
espírito se conhece. E, por exemplo, revela-se, pelo desenvolvimento tardio das
ciências mais concretas, que os diversos procedimentos da lógica foram
aprendidos sucessivamente, cada uma das ciências fundamentais despertando e
exercendo no homem um modo de pensar que responde à natureza mesma das questões
postas; donde se vê como um espírito se forma segundo a ordem enciclopédica. É
assim que o matemático nos ensina o raciocínio, a astronomia, a arte de
observar, a física, as astúcias da experimentação, a química, a arte de
classificar, a biologia, o método comparativo, e a sociologia, o espírito de conjunto.
Compreende-se facilmente que o espírito de observação corrompe o raciocínio
quando as dificuldades do cálculo não impuseram ao investigador um severo
exercício prévio. E também a arte de experimentar, se nela nos precipitarmos,
extenuará a observação pura, que apenas a astronomia nos podia ensinar. Quanto
às outras relações, e sobretudo à última, segundo a qual a sociologia, por um
retorno de reflexão, deve regular finalmente todas as outras ciências por uma
espécie de juízo final, encontram-se dificuldades que não se vencerão sem
esforço, e diante das quais um resumo é necessariamente insuficiente. O próprio
Comte não escapou, nos seus resumos, à tentação de traçar caminhos fáceis, e
demasiado fáceis, o que é persuadir em vez de instruir. Daí os equívocos, e
sobretudo nos seus discípulos mais fiéis. É preciso seguir passo a passo as
amplas lições do Curso de filosofia positiva; sem o que se acreditará
saber o que é o Positivismo, e não se lo-saberá de todo.
Alain
(Tradução de José Ames)
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