O
Espírito eleva-se das profundezas, eis o que significa a Filosofia da natureza.
No sistema de Hamelin, mais rigoroso, menos poema, o espírito cristaliza-se
segundo o abstracto; uma consciência finalmente se forma; uma natureza é
desenhada; mas ela é apenas o espelho duma consciência; e não há outro dado, em suma, para uma
consciência, além do que é querido por outra; o mundo é uma cidade de
espíritos, e a aparência dum mundo mecânico apenas traduz falhas, decadências, ou talvez o irreparável
do facto consumado. A história não encontra aí a sua substância. Tal é o puro
idealismo, intransigente, paradoxal. Já notei que Hegel, na sua lógica, segue
mais de perto a história das doutrinas,
procurando no jogo dos sistemas, “Panteão das formas divinas”, e segundo a sua ordem, o termo seguinte que lhe
falta, e de que precisa. É que ele não perde de vista a outra forma, o grande
oposto, sob a dominação do que temos de
viver, vencer, pensar, agir, morrer. O que significa a lógica de Hegel, é que a
lógica não chega. Muito longe de nos
conduzir até ao ser concreto, pelo contrário, ela deixa-nos à beira do vazio,
donde é preciso primeiro cair em plena natureza. Os biógrafos contam que Hegel
disse um dia diante das montanhas: “É assim.” Este momento de pensamento, esta
aceitação, é o movimento da vida, ou, se quisermos, a respiração da vida depois
dum pensamento. A queda na natureza, é o grande suspiro. Aquilo que não é mais
do que lassidão e marca de dependência em todo o homem é todavia melhor
determinado aqui por um movimento lógico coeso, continuado, purificado; porque,
por um lado as formas lógicas desenham como que uma sombra de natureza que
permite ordenar o caos; por outro lado, o que se encontra na natureza como
marca de Deus faz melhor aparecer a imensa cavidade de sombra donde saímos, em
que reentramos, pelo despertar e pelo sono, pelo nascimento e pela morte.
Certamente, é preciso não esquecer a fórmula célebre que é como que a epígrafe
da obra: “Tudo o que é racional é real; tudo o que é real é racional.” O esboço
duma filosofia na natureza basta para que se creia nele; não basta para que o
pensemos; e a imperfeição tantas vezes reprovada nesta parte do sistema é ela
própria cheia de sentido; e mesmo que a adaptássemos à nossa física, o que é
fácil de fazer, continuaríamos a não apreender, neste mar do mundo, senão
traços de espírito isolados, e raras aparições de Ulisses nadando. O
afastamento permaneceria grande e suficiente entre a Lógica e a Filosofia
do Espírito. Entre o nosso destino lógico e o nosso destino real é preciso
uma natureza. O que existe de real e de eficaz na filosofia de Hegel, o que faz
com que tenha entrado não somente na história da filosofia, mas na história do
mundo, repousa pois sobre esta parte do sistema que se julga fraca e que se
quereria desprezar. Toda a força desta parte é que ela é fraca e sê-lo-á
sempre, qualquer adivinhação que se faça.
O
princípio da Filosofia do Espírito, é que as maneiras de pensar, os erros
corrigidos, o desenvolvimento, a conquista de si, tudo isso depende
primeiramente das necessidades naturais e vitais. O espírito humano salvou-se e
salva-se da massa do mundo; não somente da sua própria vida, mas duma multidão
viva e duma multidão inerte. E a sequência deixará ver em que é que esta
história do espírito difere duma lógica. Pode-se já julgá-lo a partir das
divisões deste amplo edifício, tão bem apoiado sobre a terra. Espírito
subjectivo, Espírito absoluto, tais são os grandes momentos. Sob o título de
espírito subjectivo, devemos manter uma Antropologia, que é como que a história
natural dos nossos pensamentos, uma Fenomenologia, que descreve o mal-estar da
consciência natural, uma Psicologia, que releva até ao universal este
conhecimento de si. Mas o homem real não aparece ainda. O Espírito Objectivo
faz ver como o espírito humano se desenvolve segundo as suas obras. Aqui o
direito, a moral, a vida social, o Estado, a história humana, são apresentadas
como condições de natureza, e já imagens
de si esculpidas pelas quais o espírito se conhece. A partir destas preparações
perceber-se-á já que o Espírito absoluto não é de modo nenhum esse extremo
abstracto que esperávamos, nem alguma definição informe do Eterno, mas
exactamente a descrição e reconstrução do que traz o sinal do eterno, dessa
história acima da história que são a Arte, a Religião, e a Filosofia. Toda a
extensão do sistema estando agora circunscrita, falta-nos percorrer as partes
segundo a ordem. E, porque uma exposição da doutrina Hegeliana se arrisca sempre
a parecer-se com um índice, seguirei
ainda aqui este método, de desenvolver bastante amplamente uma ideia em cada
uma das partes, uma ideia que possa esclarecer a marcha. Quanto ao resto, o
leitor será remetido para o próprio Hegel, bem mais rico no detalhe, bem mais
sábio, bem mais vivo do que se diz.
Alain
(Tradução de José Ames)
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