quinta-feira, 8 de março de 2012

A FILOSOFIA DO ESPÍRITO




O Espírito eleva-se das profundezas, eis o que significa a Filosofia da natureza. No sistema de Hamelin, mais rigoroso, menos poema, o espírito cristaliza-se segundo o abstracto; uma consciência finalmente se forma; uma natureza é desenhada; mas ela é apenas o espelho duma consciência;  e não há outro dado, em suma, para uma consciência, além do que é querido por outra; o mundo é uma cidade de espíritos, e a aparência dum mundo mecânico apenas traduz  falhas, decadências, ou talvez o irreparável do facto consumado. A história não encontra aí a sua substância. Tal é o puro idealismo, intransigente, paradoxal. Já notei que Hegel, na sua lógica, segue mais de perto a história das doutrinas, procurando no jogo dos sistemas, “Panteão das formas divinas”, e  segundo a sua ordem, o termo seguinte que lhe falta, e de que precisa. É que ele não perde de vista a outra forma, o grande oposto,  sob a dominação do que temos de viver, vencer, pensar, agir, morrer. O que significa a lógica de Hegel, é que a lógica não chega.  Muito longe de nos conduzir até ao ser concreto, pelo contrário, ela deixa-nos à beira do vazio, donde é preciso primeiro cair em plena natureza. Os biógrafos contam que Hegel disse um dia diante das montanhas: “É assim.” Este momento de pensamento, esta aceitação, é o movimento da vida, ou, se quisermos, a respiração da vida depois dum pensamento. A queda na natureza, é o grande suspiro. Aquilo que não é mais do que lassidão e marca de dependência em todo o homem é todavia melhor determinado aqui por um movimento lógico coeso, continuado, purificado; porque, por um lado as formas lógicas desenham como que uma sombra de natureza que permite ordenar o caos; por outro lado, o que se encontra na natureza como marca de Deus faz melhor aparecer a imensa cavidade de sombra donde saímos, em que reentramos, pelo despertar e pelo sono, pelo nascimento e pela morte. Certamente, é preciso não esquecer a fórmula célebre que é como que a epígrafe da obra: “Tudo o que é racional é real; tudo o que é real é racional.” O esboço duma filosofia na natureza basta para que se creia nele; não basta para que o pensemos; e a imperfeição tantas vezes reprovada nesta parte do sistema é ela própria cheia de sentido; e mesmo que a adaptássemos à nossa física, o que é fácil de fazer, continuaríamos a não apreender, neste mar do mundo, senão traços de espírito isolados, e raras aparições de Ulisses nadando. O afastamento permaneceria grande e suficiente entre a Lógica e a Filosofia do Espírito. Entre o nosso destino lógico e o nosso destino real é preciso uma natureza. O que existe de real e de eficaz na filosofia de Hegel, o que faz com que tenha entrado não somente na história da filosofia, mas na história do mundo, repousa pois sobre esta parte do sistema que se julga fraca e que se quereria desprezar. Toda a força desta parte é que ela é fraca e sê-lo-á sempre, qualquer adivinhação que se faça.

O princípio da Filosofia do Espírito, é que as maneiras de pensar, os erros corrigidos, o desenvolvimento, a conquista de si, tudo isso depende primeiramente das necessidades naturais e vitais. O espírito humano salvou-se e salva-se da massa do mundo; não somente da sua própria vida, mas duma multidão viva e duma multidão inerte. E a sequência deixará ver em que é que esta história do espírito difere duma lógica. Pode-se já julgá-lo a partir das divisões deste amplo edifício, tão bem apoiado sobre a terra. Espírito subjectivo, Espírito absoluto, tais são os grandes momentos. Sob o título de espírito subjectivo, devemos manter uma Antropologia, que é como que a história natural dos nossos pensamentos, uma Fenomenologia, que descreve o mal-estar da consciência natural, uma Psicologia, que releva até ao universal este conhecimento de si. Mas o homem real não aparece ainda. O Espírito Objectivo faz ver como o espírito humano se desenvolve segundo as suas obras. Aqui o direito, a moral, a vida social, o Estado, a história humana, são apresentadas como condições de natureza,  e já imagens de si esculpidas pelas quais o espírito se conhece. A partir destas preparações perceber-se-á já que o Espírito absoluto não é de modo nenhum esse extremo abstracto que esperávamos, nem alguma definição informe do Eterno, mas exactamente a descrição e reconstrução do que traz o sinal do eterno, dessa história acima da história que são a Arte, a Religião, e a Filosofia. Toda a extensão do sistema estando agora circunscrita, falta-nos percorrer as partes segundo a ordem. E, porque uma exposição da doutrina Hegeliana se arrisca sempre a parecer-se  com um índice, seguirei ainda aqui este método, de desenvolver bastante amplamente uma ideia em cada uma das partes, uma ideia que possa esclarecer a marcha. Quanto ao resto, o leitor será remetido para o próprio Hegel, bem mais rico no detalhe, bem mais sábio, bem mais vivo do que se diz.


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário