FILOSOFIA
Auguste
Comte, politécnico, depois leccionador na escola em que tinha sido aluno,
finalmente expulso de todo o lado e livre pensador absolutamente, teve uma vida
miserável por duas causas. Primeiro foi mal casado, e só encontrou a mulher
digna dele e do amor verdadeiro tardiamente, em 1844, e não usufruiu mais de um
ano da felicidade de pensar amando. Essa mulher chamava-se Clotilde de Vaux;
ela pensava; ela julgava as paixões. Duas das suas máximas darão a ideia do que
ela foi: “São precisos, à nossa espécie, deveres para fazer sentimentos.” Esta
máxima faz eco a esta outra do filósofo: “Regular o dentro pelo fora”, que diz,
por outras palavras, a mesma coisa; e adivinhar-se-á aqui como dois pensamentos
se encontram sem que um force ou mesmo altere o outro. A segunda máxima que eu
quero citar de Clotilde é mais directamente eficaz para todos; “É indigno duma
grande alma comunicar a inquietação que sente.” Isso despede o actor
trágico; e Comte nunca esteve disposto a fazer de actor trágico. Fica, dessa
pura união entre duas almas fortes e atormentadas, as efusões em forma de
oração do viúvo sem casamento, efusões que seriam sublimes em verso, e que são
ainda bastante tocantes nessa prosa construída que é o instrumento do nosso
filósofo. Por esta segunda fase de infelicidade do sentimento, pode-se julgar
da primeira, que foi bem pior e sem consolação. E esta profunda divisão
contribuiu ainda, depois da morte do filósofo, para se querer cortar esta
filosofia em duas; tentativa que de modo nenhum seguirei, negligenciando nisso
as fracas polémicas. Julgar-se-á, depois da própria exposição, que as
conclusões estavam todas no começo. Disso ter-se-á já alguma ideia a partir da
máxima célebre que acabo de citar, sobre o dentro e o fora; porque ela
esclarece em primeiro lugar toda a doutrina do conhecimento, que comanda todo o
sistema; mas significa também uma severa
doutrina dos costumes, e um dos meios dessa fé reencontrada, que fez escândalo
para os corações secos, mas que concorda exactamente com a situação humana
positivamente definida, como espero se verá.
A
outra infelicidade visava mais directamente o centro dos pensamentos. Na
sequência de meditações imprudentemente prolongadas sobre o conjunto do
problema humano, o nosso filósofo foi lançado num trágico estado de fadiga que
fez crer em alguma doença mental. Todavia o sábio triunfou dos médicos; e o
que escreveu, ele mesmo, sobre essa
crise é o que se pode ler de mais belo sobre a aparência da loucura, que é
quase toda a loucura, e sobre o remédio que o pensamento pode ainda encontrar
em si mesmo neste estado de confusão ameaçadora. Dessa amarga experiência, ele obteve,
mais directamente sem dúvida que qualquer outro sábio em qualquer tempo, o
conhecimento das divagações anárquicas às quais se entrega o espírito sem
objecto e sem regras, e do absurdo natural às fantasias de todo o género. Esta
lição é boa para todos; porque a ideia de que há um pensamento natural, e mesmo
mais clarividente e mais verdadeiro do que o outro, o Cartesiano, é uma ideia
ruinosa, e que só é suportada nas naturezas em que a própria loucura é medíocre
e de boa companhia. Feliz quem divaga irrecusavelmente desde que se afasta do
verdadeiro para todos. Esta lição devia ser mais cruel para o pensador da ordem
do que para qualquer outro; mas ela explica também essa disciplina
continuamente procurada, na ordem exterior, na ordem social, e na prática duma
religião estritamente racional fundada
sobre uma e outra.
Nessa
vitória custosamente adquirida, não tentarei adivinhar as derrotas, as fugas, e
os momentos de desespero. A segunda máxima de Clotilde foi aplicada com
coerência, e muito antes de ter sido formulada. Nada ficou das fraquezas duma
grande alma no sistema tão bem fortificado de que vou traçar o esboço. Comte
ensinou-nos a comemoração, que é simplificação e purificação. Aconselho o
leitor a rodear alguma vez o busto de Comte, tão bem colocado na praça da
Sorbonne em que se encontra o mercado não coberto do espírito. Essa forte
cabeça, tão bem construída, não se parece com a dum homem infeliz. O que o
estatuário soube fazer, é o que eu tento fazer também, conservando a
arquitectura e rebaixando os vãos incidentes, que de resto são de todos, e não
ganharam importância na história deste pensamento, a não ser pela própria importância
do que era preciso salvar e que foi salvo.
Nem
tudo foi amargura nos acontecimentos que bordejavam este pensamento. Desde os
seus primeiros trabalhos, Comte teve a glória real. Logo apoiado, mesmo
materialmente, por eminentes discípulos
de todos os países, ele viu-se chefe de escola e sacerdote da nova religião; e,
na sua nobre pobreza, permaneceu livre
de toda ligação aos poderes e aos corpos académicos, conformemente à severa
doutrina segundo a qual o Poder Espiritual deve separar-se absolutamente da
força temporal, e agir sempre por livre ensinamento, livre conselho, e livre
consentimento. Por uma consequência bem instrutiva, e que a doutrina tinha
previsto, ele foi capaz de prosseguir livremente e publicamente as suas
pesquisas, sem ter de temer nenhum género de perseguição política. Esta vida
foi, pois, no total, o que ela tinha sonhado ser. Mas, por um contraste
chocante, a doutrina não conheceu depois
dele o amplo e eficaz desenvolvimento que ele lhe prometia. Sabe-se que, em
todos os países civilizados, o Culto Positivista tem ainda hoje os seus templos
e os seus fiéis. Todavia pela fraqueza dos estudos científicos, cada vez mais
subordinados aos resultados materiais, e também pela decadência das
Humanidades, tão bem chamadas, a propagação da doutrina achou-se menos rápida
do que o mestre ousara esperar. Uma fidelidade estreita, quanto ao número dos
fiéis, e se se ousa dizer mesmo quanto ao espírito, faz com que agora um
profano, como eu sou, se possa crer em condições de defender utilmente a
doutrina, e até de a ressuscitar de algum modo naqueles mesmos que juraram acreditar nela e de por ela
regular a sua vida normal. Não percorrerei todas as causas desta espécie de
esquecimento, exterior e mesmo interior. Eu senti disso mais de uma vez
vivamente os efeitos. A doutrina positivista, bem mais largamente aberta em
todas as partes do que se crê, era moderadora
primeiro pelas suas partes pesadas e inabaláveis, e civilizadora, como
era preciso pelas suas consequências, que são imensas, imprevisíveis, e
completamente conforme as necessidades urgentes. A Igreja Positivista do Brasil
foi capaz de escrever, em 1914: “A presente catástrofe fratricida resulta dum
atraso da propaganda positivista, especialmente em Paris.” Julgar-se-á pelo que
segue se esta frase é ridícula ou não. Foi daí que veio ao autor destas
páginas a ordem imperativa de reconduzir
a estes caminhos as meditações dos espíritos pacientes, sérios e novos, não
através dum resumo ou duma súmula desta imensa doutrina, mas antes pela
exposição directa de algumas das ideias que nela se encontram, e que ajudaram o
leitor atento a compreender pelas suas causas as suas próprias faltas, as de
outrem, e finalmente as provações destes tempos difíceis. Eis por que retomei
em 1933 uma exposição de 1918 à qual só faltava um pouco mais de extensão, e
talvez uma experiência redobrada das necessidades e também da força do ensino
público.
Alain
(Tradução de José Ames)
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