A
Antropologia descreve o inferior do espírito; e é preciso prestar aqui muita
atenção. Essa descrição, que só se pode fazer de fora, porque o homem no primeiro despertar e na infância
não sabe de si mesmo, é no entanto esclarecida pela dialéctica, porque este
primeiro momento é abstracto e sem diferenças. A alma natural é em si e não
para si. Privada ainda das mediações pelas quais se libertará, ela sofre,
resume e unifica todo o organismo e toda
a natureza, sem discutir consigo, sem nada separar de si, sem nada negar
de si. É um estado de inocência e de infância; ninguém se pode dele separar
completamente. No sono e nos sonhos cada um regressa a esse estado sibilino. A
alma profética conhece num sentido todas as coisas, porque vive com a vida planetária universal, com os
climas, as estações, as horas do dia, numa intimidade em que nada se divide; e
é por isso também que a alma profética conhece para os outros, não para si.
Pode-se dizer também que uma tal alma vive segundo a sensação pura; mas é
preciso que nos guardemos aqui das abstracções do entendimento. O que distingue
a sensação do sentimento, é um estado de dispersão e de exterioridade; mas isso
não quer dizer que essa dispersão e exterioridade estejam representadas numa
percepção; uma tal representação, que dá às sensações uma existência distinta e
separada, supõe uma separação de si consigo mesmo, uma oposição entre a vida
interior e a vida exterior, enfim o estado imediato dominado, o que marca a
passagem à consciência. No primeiro momento, pelo contrário, tudo está junto, nada está longe ou perto,
porque toda a sensação é primeiro toda a alma; e esse estado é quase inexprimível,
pois que a consciência logo o dissolve em objecto e sujeito, em percepções e
recordações, em pequenos e grandes acontecimentos, tudo no lugar e como em
perspectiva. Nós só temos aqui as disposições do humor, e os movimentos do
génio, coisas apreciáveis somente de fora, mas para aquele que é delas o
sujeito. De qualquer modo, essa vida imediata do espírito é o que explica o
talento de cada um, a maneira própria como descobre as ideias, as suas paixões,
as suas desgraças e as suas alegrias. As diferenças de raça repousam sobre este
obscuro começo dos pensamentos. O que não quer dizer que as raças se encontrem
determinadas seja para a liberdade, seja para a escravidão, nem que o indivíduo
encontre na sua natureza imediata um destino todo feito. Isso quer dizer que o
pensamento humano se deve libertar, e nunca o pode fazer sem esforço. “Todo o
homem tem acessos de maldade, mas o homem moral sabe como os vencer.”
Maldade?
Sim, porque essa vida imediata não é pacífica; não o pode ser. O homem, porque é virtualmente
razoável, não pode deixar de sentir uma contradição entre uma vida dependente e
escrava e a outra vida que deve ser a sua. Donde se compreende que o simples
humor seja sempre brumoso e melancólico, muitas vezes irritado. A loucura é
apenas esse estado aonde se regressa e donde já não se pode sair. Admiramo-nos da loucura, porque se conhece
mal o estado de inocência e de infância; só o conhecemos quando dele saímos,
quando o dominámos. Há loucura no pensamento natural. Em vez de perguntar
porquê a loucura, é preciso que coloquemos a questão inversa: como é que a alma
consegue sair desse estado ao mesmo tempo sibilino e convulsivo que lhe é
natural? Esta profunda ideia, e que se tenta em vão recusar, circula em toda a
filosofia do espírito. A primeira consciência é uma consciência doente. O
adolescente é o ser que censura, que se indigna, que despreza. A moral ergue-se
diante do direito como uma cólera; o mais alto ponto da pura moral é a ironia;
da mesma maneira, o primeiro momento da
sociedade é o combate. O que é próprio deste poderoso génio, e que se encontra
dito doutro modo em Comte, é que o remédio está fora de nós, neste mundo que é
preciso reconhecer e preparar. Assim o jovem se torna homem pela acção e o
ofício. Ao mesmo tempo que a acção supera o obstáculo e organiza as coisas, ao
mesmo tempo também o peso do corpo vivo se aligeira, como se essas forças
fossem ordenadas, afastadas de nós, e retomadas como meios mecânicos, do mesmo
modo a natureza exterior é remetida para o seu lugar e dominada. “A liberdade
do espírito não é a independência que existe fora do seu contrário, mas a
independência que se obtém triunfando do contrário, não fugindo do contrário,
mas lutando com ele e submetendo-o. É a
independência concreta e real.”
O
momento da libertação, é o hábito. E eis um exemplo, aos meus olhos sem preço,
duma função exactamente posta no seu lugar, e que só por isso se esclarece.
Porque temos todos a experiência duma súbita cólera contra o corpo desajeitado;
é uma loucura dum momento; é um breve regresso à vida da alma natural; e é de
facto o hábito que nos reconcilia connosco mesmos. O hábito, conforme o sentido
próprio desta palavra, é de facto uma tomada de posse do corpo pelo pensamento.
O corpo já não é mais um ser hostil, que se insurge contra mim; encontra-se
penetrado pela alma, e torna-se o seu instrumento; mas ao mesmo tempo o corpo é
pensado como tal; o corpo é como que fluido, e o pensamento nele se exprime sem
comprometer nesses actos a consciência e a reflexão; tal é o feliz estado do
atleta, para quem querer e executar são uma única coisa. “A alma manifesta-se, mas retira-se também das suas manifestações,
marcando-as assim com a forma do ser mecânico, duma obra puramente natural.”
Esta possessão de si é o oposto da alma profética, que treme toda no seu corpo,
de que não se separa. Por isso esta espécie de timidez absoluta, logo irritada,
não se conhece nunca. Cada um reconhecerá essa primitiva natureza de acordo com
os retornos de inspiração iluminados por uma claridade indirecta; o momento
suprimido é também conservado; retomado e dominado sob a forma de signo, é
poesia. Mas, em vez de ser possuído por ele, possuímo-lo; hábito. Tal é de
facto a passagem à consciência, e a primeira aparição do espírito. “As
determinações ideais da alma tomam a forma dum simples ser, do ser que é
exterior a si mesmo; e, em contrapartida, o corpo encontra-se submetido.” Assim a alma se
aligeira e se liberta do mundo, e o seu próprio ser é para si espectáculo, seja que sinta, seja que perceba, seja que se recorde.
Mas importa notar aqui as nuanças; porque é o superior que esclarece o
inferior; a fraca consciência supõe a mais alta consciência; e por exemplo o
esboço duma recordação recai no nada, como um sonho, sem o socorro dum
conhecimento universal dos tempos, dos lugares, das pessoas; e a percepção sem
nenhuma ciência reduz-se a esse despertar ainda sem objecto, que só subsiste
pelo pleno despertar. O sentir mesmo é submetido a essa lei que, se
absolutamente apenas se sente, nada se sente; sentir, é saber que se sente. A
Psicologia descreverá essa consciência universal de si. A Fenomenologia, que é
a sequência da Antropologia, tem por objecto esse grau intermédio em que a
consciência apenas nasce da noite natural, e fica em perigo de a ela voltar.
Perigo
não é uma palavra vã. A Fenomenologia é a narração do drama da consciência
infeliz; e, para compreender bem essa inquietação absoluta, é preciso primeiro
ter apreendido bem a infância irritada do espírito, a convulsão Pítica, a
loucura, que são crises excepcionais num sentido, mas que reencontramos no
entanto na raiz de todos os nossos pensamentos. O drama do medo, tão
prontamente superado pelo homem razoável, apresenta-nos como que um clarão
dessa dificuldade entre nós e nós. Este sentimento duma natureza interiormente dividida, sempre acima ou
abaixo dela mesma, traduz-se por movimentos alternados de orgulho e de
humilhação. O Estóico e o Cristão oferecem-nos dois partidos violentos, que
suprimem um dos termos, mas que não cessam de se inquietar pela presença do termo suprimido. A oposição
do senhor e do escravo, que terá o seu lugar no desenvolvimento ulterior,
representa isso mesmo. O homem aqui separa de si a parte humilhada dele mesmo,
e tenta esquecê-la, mas não pode esquecê-la. E ao contrário, reduzido no
escravo à condição humilhada, ele consola-se pelo trabalho, sem poder nele
extinguir o insuportável clarão do direito. Nenhum dos dois pode apagar o
direito do outro. Este conflito é o grande motor da história; mas é preciso
compreender agora que este conflito está primeiro no interior de todo o homem.
O drama político é pois absolutamente de pensamento; as necessidades não estão
nele em nada; concebe-se um sistema imóvel de trabalhos, pelo sono do espírito.
Assim este drama de homem a homem, no qual estamos embarcados tão evidentemente,
é apenas a imagem na história do drama em cada um. A alma percebe ao mesmo
tempo a sua fraqueza e a sua grandeza. O Cristianismo é a consciência disso
mesmo, e a consciência atinge-se no Cristo como num objecto simbólico; aqui o
reconhecimento dum dos extremos pelo outro, dir-se-ia quase o perdão de cada um
dos dois ao outro. Só posso dar aqui a sombra da história Hegeliana como
epopeia do espírito; esta possante e inimitável poesia não se resume. A ideia
propriamente Hegeliana, e cujo contorno está perfeitamente fixado, é que a
solução só pode surgir da consciência individual, atendendo a que ela não se
pode desenvolver suficientemente sem o apoio da sociedade, quer dizer sem a
história. Isso quer dizer que o espírito sai da natureza e deve superar essa
natureza, opô-la a si, fazer dela uma
coisa razoável, tal o monumento, tal a instituição, e não só pelo pensamento,
mas pela acção pensada. O espírito
Hegeliano, que se procura muitas vezes nas nuvens da abstracção, conduz pelo
contrário a isto que a plena consciência de si supõe uma organização inferior
em que se reconciliam o espírito e a natureza; e é neste sentido que uma
dialéctica materialista podia ser antecipada e talvez compreendida segundo essa
Filosofia da História, lógica atormentada, que só se separa do seu conteúdo
para o retomar, e que não o aceita senão para o mudar. Filosofia da acção; não
plenamente para ele, que se satisfaz, como se verá, com a monarquia
constitucional; mas conforme os seus próprios princípios, este ponto final não
importa nada; uma sequência de Hegelianismo era de prever, pois que o espírito
desta filosofia é um devir irritado que nunca para. O desenvolvimento não é nele
um meio do espírito, mas é o espírito
mesmo. Nunca acabaremos de nos salvar.
Estas antecipações são substanciais à Fenomenologia, que é a primeira alma da
obra.
É
preciso agora desenhar, em traços mais contidos, o movimento que vai por graus
da simples consciência à consciência universal de si. Os três momentos são a
consciência que sente, a consciência que percepciona, enfim o entendimento; e é
bom que surpreenda encontrar-se o entendimento aqui; porque é o seu lugar. O
entendimento é já universal pelos seus princípios; mas não o é para si. Neste
grau como nos dois precedentes, trata-se de objecto, não de sujeito; e é
preciso compreender que a consciência fenomenológica não cessa nunca de
considerar este desenvolvimento dialéctico do eu que como se tivesse lugar no
objecto. A consciência sensível está inteira no seu contrário, o objecto
exterior como tal; e este objecto é conhecido sem mediação. É uma presença
estranha a mim que me está intimamente unida. Tal é a fantasia diante das
coisas. “A relação da consciência ao objecto, é a certeza simples e imediata
que ela tem do objecto.” Este estado é fugitivo, e está sempre atrás de nós;
esta primeira percepção que não é ainda percepção só é um primeiro momento no
segundo. “Eu via, e não sabia o que estava a ver”; quem não fez esta
observação? Sim, mas nós fazemo-la
quando sabemos, quando reconhecemos o objecto, quando o conhecemos no seu
lugar. A verdade da fantasia é a percepção atenta; e a percepção está diante de
nós como um ser complexo e ordenado, determinado por relações de qualidade, de
grandezas, de distâncias, que, reflectindo, supõem o pensamento, mas que, na
percepção mesma, são pensamentos como que inerentes ao objecto. O operário
pensante destas coisas ignora-se a si mesmo. A atenção ao objecto remete-nos
para esse estado em que existe a consciência muito clara num sentido, mas não
no entanto a consciência de si. No fundo, é a consciência de si que é a verdade
de toda a consciência; mas a percepção supõe um testemunho ainda mais próximo e
sem o qual ela não seria nada; é o entendimento.
Nesta
passagem, Hegel caracteriza a Crítica de Kant como uma filosofia da percepção,
que vai de resto até o entendimento, mas não mais longe. De facto nós vemos
que, na Lógica Transcendental, a unidade formal do Eu Penso não se distingue da
ligação dos objectos na experiência. Decerto esta filosofia é verdadeira num
sentido; só que ela permanece separada duma filosofia da natureza, que a
precederia, e duma filosofia do eu que a seguiria; ela é só um momento que, por
si mesmo e sozinho, não tem verdade. Não é que o entendimento Kantiano seja
completamente sem olhos; todavia ele volta sempre ao objecto. Hegel,
esclarecido pelo grau que vai seguir-se, descreve melhor, parece-me, o
entendimento cego. Porque é verdade que as relações de percepção são pensadas
pelo entendimento como universais, e segundo a sua própria natureza interior e
universal, mas o próprio do entendimento é nada saber de si. O entendimento é
propriamente o espírito fora dele mesmo, e como que disperso na natureza, mas
reencontrando a sua própria unidade pela representação duma natureza segundo leis.
Lucrécio pensa o mundo, mas Lucrécio não pensa que pensa o mundo. No átomo, no
movimento, no vazio, Lucrécio vê a sua própria imagem; porém, não a reconhece.
Esta unidade, como diz Hegel, é ainda coisa morta. Como o entendimento
esclarece a percepção, e, pela percepção, a sensação, é preciso a consciência
de si para esclarecer o entendimento. E é no vivo, no espectáculo do vivo, e
sobretudo do vivo semelhante, que a consciência tomará a intuição da sua
própria unidade. Mas esta história dialéctica vale sobretudo porque nos retém
nos escalões inferiores, preparando uma matéria já elaborada para o que vai
seguir. Nós devemos então, mesmo na nossa marcha precipitada, meditar ainda um
momento sobre este entendimento perdido no mundo, que quer ignorar as contradições,
e que não pode. Não pode, porque a consciência, como diz Hegel, é sempre o
dobro ou a metade dela mesma. A ciência será
maneira de ver, ou verdade? O movimento é relação ou propriedade? O
átomo é coisa ou ideia? Consciência inquieta; consciência doente. Mas há um
ascetismo do entendimento que se forma a
não fazer estas perguntas. O aborrecimento e o vazio do puro fenómeno chega
quase a ignorar-se a si mesmo.
Mesmo
que alguém se encontrasse a si por este caminho, seria um magro si mesmo, muito
longe da carne e do sangue. Eis agora a
real passagem, a impetuosa passagem, em que o vivo pensante se choca como um outro
consigo mesmo. Estranho caminho da razão! Mas é o do espírito mergulhado na
natureza. Este movimento é para o meu gosto o mais belo em todo o Hegel, e
também aquele que nos faz melhor
compreender que a Filosofia do Espírito não é uma lógica; ao mesmo tempo, este
drama tão novo está muito próximo do homem real, e esclarece todas as paixões. Três tempos, e
três títulos admiráveis: o Egoísmo destruidor, o Combate, Senhor e Escravo.
O
egoísmo destruidor, é o egoísmo sem o eu; ideia em si mesma profunda. Chamando
assim o desejo, arriscamo-nos a franquear um grau a mais, porque mal é desejo
este movimento de quebrar, tão notável na criança. Todavia, estamos acima da
necessidade; a conquista e a destruição sempre ultrapassaram a necessidade.
Este desejo ainda embrulhado é um pensamento de objecto, um pensamento que não
se pode contentar consigo mesmo. Agarrar e destruir, é a primeira solução da
contradição que está ligada à consciência, por muito obscura que seja ainda. Já
não é reagir, é agir; e o agir é dialéctico. Poderia dizer-se que o agir é o
acabamento da curiosidade; e a curiosidade é um
movimento dialéctico. O ser que não tem qualquer consciência não
tem desejo nenhum, porque ele não está
dividido; ele é todo. Pelo contrário, a consciência supõe que o eu esteja
separado do objecto; mas, como esta separação se faz no interior da própria
alma, a alma é imediatamente cortada de si mesma, e esta contradição não pode
ser suportada. Ao sentimento que isso não sou eu opõe-se o sentimento que tudo
isso é meu. Num grau inferior do
pensamento, o exterior em si mesmo irrita. “O sujeito vê qualquer coisa que faz
parte da sua essência e que no entanto lhe faz falta”; assim, “satisfazendo o
desejo, ele destrói a independência do objecto”. Reflictamos aqui sobre a
ambição e a avidez insaciáveis do homem, e como elas vão além da necessidade. O
objecto está cheio de virtualidades; ele é sempre promessa. Mas a curiosidade
não seria tirânica como é, se essa virtualidade no objecto não estivesse no
fundo de mim. E porque a reconheço como estranha, apenas sei submeter a mim o objecto. O
espírito deve retomar o objecto, e não conhece primeiro senão a violência para
conseguir isso. Tal é a guerra às coisas, aos animais, a tudo o que é outro.
Mas este movimento de guerra exterior é no fundo um movimento de guerra na
própria alma, presa duma contradição que é preciso superar, que renasce sempre,
e que irrita. Quem pode desconhecer no espírito de dominação um
descontentamento de si?
A
irritação é ainda mais viva, e de mais alta fonte, quando o eu, entre estes
objectos que se permitem existir, reconhece um outro eu, um semelhante. O
desejo de conquista marca como que um império a reconquistar; mas se um outro
eu é reconhecido, com os mesmos atributos, o meu universo teria então dois
senhores? O eu encontra como obstáculo a sua própria imagem, e independente.
“Contradição extraordinária, que, enquanto que o eu é o ser absolutamente
universal, absolutamente penetrável, que nenhum limite rompe, enquanto é a
essência comum a todos os homens, e que, em consequência, os dois eus que estão
aqui em relação formam um só e mesmo ser idêntico e uma só luz, estes eu são ao
mesmo tempo dois seres que subsistem numa completa dureza e rigidez.” Aqui há
um combate. Combate de vida e de morte. Um e outro põem a sua vida “como uma
coisa sem valor”. O facto não oferece dúvidas; os nossos mais cruéis combates
não são pela existência, mas de facto pela honra. Como diz Hegel, esclarecendo
de imediato a história privada e pública. “A liberdade exige que o sujeito
consciente de si mesmo não deixe subsistir a sua naturalidade, e não a tolere
num outro, por isso ele coloca em jogo a sua vida e a vida do outro.” Mas a
sociedade real não pode nascer por este meio, porque “o sobrevivente é tão
pouco reconhecido como o morto”. Este combate “só pode ter lugar no simples
estado de natureza, está ainda afastado da esfera da Sociedade civil e do Estado;
porque no Estado se encontra já contido o que está em jogo neste combate, quer
dizer, o reconhecimento da liberdade”. Isso quer dizer que, na ordem do
direito, o momento do combate está ultrapassado. Há portanto, de facto, uma filosofia da guerra em Hegel, mas sem nenhuma
semelhança com a feroz doutrina de Hobbes. Hegel o diz explicitamente: “A
força, que é o fundamento deste momento, não é por isso o fundamento do
direito.” O que é explicado aqui, é esse período tumultuoso, irritado, cheio de
desafios e de orgulhosas ameaças, que sempre precede, e de novo em cada homem,
o advento do direito. Os homens não são imediatamente amigos; longe disso. São
até imediatamente inimigos, ou, para falar melhor, rivais, por uma divisão no
interior de si mesmos. Aqui é tocado no homem o ponto de disputa, o ponto de
honra e de tirania. Em alguns traços de dialéctica, a história é desenhada, que
é a história do orgulho, da cólera e da coragem. História sangrenta que se
explica não pelo inferior, mas pelo superior encadeado. O homem, porque também
é natureza, não sustenta facilmente o pensamento. O seu primeiro movimento, a
partir duma justa pretensão ao universal, é a violência. E este movimento
encontra-se ainda na menor discussão. Vê-se claramente no espírito revolucionário
como se viu no espírito dogmático, imediatamente perseguidor sempre. O homem
não é um companheiro fácil. A coragem é própria de si, e a indignação
também, pela sua pretensão de pensar. É
porque o homem pensa que o homem é fanático. Sem esse grande motivo, ele não
poria em jogo deliberadamente a sua existência finita, como o faz. Este
desenvolvimento seria sem fim. Convenhamos que estas ideias sobre as paixões
vão muito além dos fracos sistemas do entendimento, tais como se encontram em
La Rochefoucauld ou Bentham. Retenhamos uma ideia que, desde que a
consideremos, não pode mais ser afastada, é que a consciência de si só pode ser
concebida pela relação com o semelhante reconhecido como tal. Este simples
enunciado renova a fundo um problema sempre tomado demasiado abstractamente,
quer dizer, demasiado logicamente.
A
consciência universal, que é propriamente a consciência, supõe o reconhecimento
recíproco de dois eus; eis por que a morte nada adianta. Resta que a submissão
de um forma entre o senhor e o escravo um começo de sociedade. Os homens só
pensam quase em termos de senhor e servidor; foi por esta dupla meditação que a
civilização se fez. Mas é quase impossível de circunscrever esta imensa ideia,
que está sempre em acção, e talvez em todos os nossos pensamentos. Do lado do
senhor nós encontramos e encontraremos sempre ociosidade, preguiça, egoísmo,
cólera, tentativa de desconhecer o escravo; e, em contrapartida, preocupação
pela ordem, previdência, arte de polícia e de administração; avareza no fundo,
quer dizer desconhecimento do valor humano, adoração do valor material. Do lado
do escravo encontramos e encontraremos sempre trabalho, invenção, paciência,
egoísmo dominado, estudo constante do senhor, pensamento do que o senhor deveria ser, meditação sobre a
justiça; em contrapartida, despreocupação, turbulência, puerilidade; no total,
um sentimento justo dos valores reais, que sempre ressaltam na provação. Basta
perceber que o escravo tem toda a vantagem sobre o senhor. “O senhor torna-se
escravo do escravo pela preguiça; o escravo torna-se o senhor do senhor pelo
trabalho.” A história seria então uma revolução sem fim. Não há virtudes a não
ser as virtudes do escravo: “O servidor, trabalhando para o senhor, usa a sua
vontade individual e egoísta, e suprime a imediatidade do desejo; esta
abdicação e o receio do senhor trazem o começo da sabedoria e a passagem à
consciência de si universal.” Tentemos compreender aqui essa outra lógica que é
a história, e os meios do escravo, coisas que o senhor não pode compreender.
Demorei
nos nevoeiros da Fenomenologia; é a parte fecunda e nova; todo o espírito
Hegeliano está aí. A Psicologia, que vem a seguir, é-nos melhor conhecida e nem
a vou resumir sequer. O que me parece somente de observar, é que as funções de percepção,
de imaginação, de memória, de razão,
além de estarem dispostas segundo a ordem, são apresentadas como
universais, e dizendo respeito ao espírito humano, não ao espírito individual.
Embora sob o título de Psicologia nós confundamos a antropologia e a
fenomenologia com a determinação das condições de todo o pensamento, apesar
disso, a psicologia é sempre e eminentemente, quer se queira quer não, a
ciência do espírito, e não a história íntima de tal ou tal. Assim é a razão que
a esclarece toda. E é em Hegel, primeiro aqui entre todos, que podemos aprender
a justa relação do inferior ao superior, um sustentando e o outro esclarecendo.
Quanto
à insuficiência da psicologia, donde devemos passar ao Espírito Objectivo, ela
resulta duma contradição evidente entre a pretensão do universal e a evidente
subjectividade da experiência; porque pela psicologia eu conheço todo o
espírito e todo o outro eu; mas por ela só me conheço a mim. De facto, o
espírito existe de outra maneira, e instrui-se de outra maneira. Ele não se
conhece em si e não se faz livre em si;
conhece-se nas suas obras, e é livre pelas suas obras. De facto, a
psicologia supõe a cultura humana, a experiência humana, o comércio, o direito,
a cidade, também a poesia e a religião. O seu verdadeiro nome é filosofia. Não
é verdade, por exemplo, que o espírito universal alguma vez se conheça como tal
sem passar pela religião e pela arte, que são produtos mesclados de natureza e
de espírito. Eu coloco aqui estas observações, que Hegel não se dá ao trabalho
de fazer. Ele contenta-se em opor ao espírito teórico, que reproduz
universalmente o objecto, o espírito prático, que desenvolve em objecto as suas
determinações subjectivas, e de reunir os dois termos no espírito livre,
realmente produtor. É o que se seguirá que explica esta passagem dialéctica; de
resto, o que é verdadeiro em todo o lado, a saber que a dialéctica é apenas um
pôr em ordem , é mais evidente aqui.
Alain
(Tradução de José Ames)
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