O
conjunto do sistema estando agora exposto, ficam por explicar mais amplamente, e
conformemente a toda a experiência humana, as ideias capitais que devem reger a
nossa reforma intelectual, política e moral. O espírito positivo é assaltado
pelas paixões, e não pode ser de outra maneira,
sobretudo nas pesquisas que tocam directamente aos nossos interesses.
Não é mais, finalmente, do que a ordem exterior que triunfa das paixões; mas a
resposta das coisas às nossas exigências e às nossas esperanças não é sempre
suficientemente clara para nos desencorajar das nossas quimeras. Todavia o
homem não pôde deixar de reconhecer primeiro que as relações dos números e das
grandezas, tão sensíveis nos trabalhos e no comércio, não se dobravam aos
nossos desejos, e que a rigorosa previsão dos resultados valia mais aqui do que
as nossas esperanças, mesmo quanto à felicidade mais vulgar. A primeira ideia
da ordem inviolável, e a mais poderosa, resulta em todo o homem primeiramente
da arte de contar e de medir. Esta experiência, embora indirecta, não é menos
convincente. Donde vem a autoridade da matemática, em todos os tempos
reconhecida. Trata-se então das relações mais abstractas, as mais simples, e
também as mais usuais; por isso, as relações mais extensas, uma vez que não há
objecto no mundo que não caia sob o
número e sob a medida. Eis por que o movimento indutivo, que recolhe
procedimentos a partir de experiências constantes, é aqui quase sempre
mascarado pelo aparelho e o sucesso das deduções que dizem respeito ao futuro,
e sempre verificadas. Donde o espírito humano primeiro reconheceu que as suas
próprias faltas, e sem desculpa, eram muito mais importantes, nesta ordem de
conhecimentos, do que as surpresas da experiência. Assim a ideia de milagre
pôde sempre ser apagada por uma revisão exacta do nosso trabalho intelectual. E
foi aí que o nosso espírito formou a ideia do seu poder, e, num sentido, da sua
inteira autonomia. Eis por que a matemática chegou prontamente à sua perfeição,
quanto ao seu objecto próprio, que é sempre a medida indirecta. Donde um
império indiscutível, e indiscutido, que faz deste primeiro conhecimento o
modelo de todo o conhecimento positivo, e o preâmbulo de toda a cultura
enciclopédica. Quanto ao preconceito dedutivo, que alimentou as fantasias de
Pitágoras e mesmo de Platão, ele foi sempre mais útil do que prejudicial pelos
efeitos; porque não é de temer que a natureza das coisas não nos corrija desde
que um problema seja matematicamente colocado, quer dizer passível duma observação
directa sem nenhuma ambiguidade. Foi certamente sob o império das matemáticas
que a astronomia renunciou pouco a pouco aos preconceitos da astrolatria e da
astrologia. Kepler, ainda místico nisso, procurava assiduamente alguma harmonia
digna de Deus entre os elementos dos planetas; mas a forma numérica da questão
não permitia qualquer resposta que fosse contrária às medidas; e o afastamento
mesmo entre as medidas existentes e a célebre lei dos quadrados dos tempos
proporcionais aos cubos dos grandes eixos, era ele próprio medido, o que
orientava a pesquisa para os caminhos que Newton devia seguir. De resto, todo a
fantasia sobre os astros se submete inevitavelmente a uma primeira descrição,
toda matemática quanto aos seus instrumentos, esfera celeste, equador, meridiano,
eclíptica. Comte, seguindo nisso uma ideia justa, e demasiado esquecida, nunca
deixou, tanto quanto lhe foi possível, de ensinar a astronomia a um auditório
de trabalhadores, desenhando assim o plano que as nossas Universidades
Populares não souberam seguir. E todavia notar-se-á que a vulgarização das
noções astronómicas não cessou, no
decurso da emancipação metafísica, de esclarecer utilmente o espírito
público. É preciso dizer aqui isto, que, por uma preparação matemática
insuficiente, se arrisca sempre a sacrificar a simples descrição ao que há de
emocionante em certos factos raros e mal conhecidos. Os nossos vulgarizadores
falarão mais depressa dos canais de Marte do que da órbita desse planeta e dos
seus movimentos observáveis. Comte tinha previsto bem que a astronomia se
arriscava a esquecer o seu destino em pesquisas menos directamente úteis à
formação do espírito positivo. Estas páginas fazem escândalo aos olhos dos
investigadores para quem toda a verdade é suposta útil e boa. Eles estão muito
longe da disciplina positivista, que se
propõe sempre, como se observou, uma justa proporção entre os diversos
conhecimentos, e uma orientação de todos para o principal, que deve mudar os
nossos destinos. Existe um grande
contraste, e chocante, entre o que um espírito curioso pode saber das
estrelas duplas, e as noções incoerentes às quais ele está muito vezes reduzido
no que diz respeito às riquezas, aos direitos, aos deveres, e ao futuro humano.
O espírito positivo reagiu energicamente contra a intemperança do saber,
retomando a antiga ideia de Sócrates, de que no fundo é a moral que importa,
mas prestando também a cada uma das ciências o culto, pode-se dizer, que lhe é
devido. A verdadeira razão do saber não é uma vã curiosidade, que aliás se
contenta frequentemente com pouco, nem mesmo uma preocupação com os progressos
materiais, que muitas vezes só interessam as paixões inferiores; a verdadeira
razão de saber é a própria sabedoria, e a organização dum futuro razoável para
toda a nossa espécie.
Importa,
porém, seguir essa grande ideia até às raízes. Porque não é de modo nenhum
questão de substituir a desordem das paixões por uma ordem fundada unicamente
na inteligência. Em todo o homem o conhecimento eficaz provém dum tumulto de
sentimento que ele deve superar. Quer se trate do medo, da coragem, ou do amor,
os primeiros movimentos são naturalmente convulsivos, e o conhecimento só tem
primeiro valor tanto quanto imponha a esses
movimentos a regra mesma das coisas, quer dizer, tanto quanto os
transforme em acções. Assim, não é somente a necessidade propriamente dita que,
levando à acção, torna necessária a investigação. Um outro género de utilidade,
profundamente sentido desde que as primeiras necessidades estejam satisfeitas,
consiste numa disciplina do próprio sentimento; e tal é a recompensa do esforço
mental. Um dos efeitos da física, e não dos menores, é de nos curar do pavor que
produz naturalmente todo o fenómeno raro, como o eclipse ou o cometa. E isso
estende-se a todos os nossos conhecimentos, e estamos muito longe de conceber o
mundo incoerente das emoções de todo o género, tal qual ele foi antes da menor
tentativa de explicação. A antiga magia, os oráculos, a pretensa ciência dos
sonhos, os sacrifícios, as cerimónias, as festas, dão-nos disso alguma
ideia. Esses enérgicos remédios são o
sinal indirecto dum estado mental, que verosimilmente volta em todos os géneros
de loucura. Se se compreendeu bem que o saber positivo saiu, por um longo
progresso, das antigas doutrinas teológicas, compreender-se-á então como, no
indivíduo tanto como na espécie, um conhecimento real corresponda sempre a um
primeiro impulso, primeiro de sentimento, e manifestado por actos instintivos que a natureza das coisas corrigia
primeiramente, mas ainda melhor manifestado pela menor previsão. Está pois fora
de dúvida que a ciência se enxerta e vive sobre um sentimento vivo e forte, que
ela transforma sem nunca abolir. Comte ousou dizer, o que cada um reconhecerá
sem vergonha, que o puro amor da verdade é ao mesmo tempo muito eminente e
muito fraco, e que a própria ambição não é aqui uma garantia que baste. E o
amor por outrem se não fosse ele mesmo purificado por uma reflexão suficiente,
seria ainda demasiado fraco para determinar os primeiros passos do espírito.
Dizer que toda a concepção foi de início teológica, e é-o também na criança, é
dizer que é preciso reencontrar, no começo do saber, algum sentimento ao qual o saber responda; e
é o que a comum linguagem exprime, porque sentimento diz mais do que opinião, e
mais do que parecer, e mais do que doutrina quando o homem quer seriamente
aconselhar ou julgar. É pois por um retorno ao sério do espírito que o sábio
dos novos tempos aprecia sem indulgência as investigações que não têm
directamente por fim um progresso de íntima civilização. De resto, é claro para
todos que o progresso dos conhecimentos, quanto à extensão e à variedade, não
pode sustentar a esperança humana, atendendo a que nós estaremos sempre
infinitamente afastados de saber tudo o que um espírito curioso quereria
agarrar; e seria louco contar com que o milagre duma descoberta intelectual
pudesse avançar dum golpe a solução do problema humano. Por exemplo, a
explicação de alguns milagres basta para os eliminar a todos; e o bom uso do saber faz-nos mais falta do
que próprio saber. É o que significa uma educação de espírito sempre
enciclopédica, quer dizer, sempre visando o equilíbrio interior. Considerada
sob este aspecto, a ciência não pode iludir a esperança.
Esta
segurança positiva, evidentemente compatível com uma modéstia do espírito, por
de mais bem fundada, difere completamente da curiosidade vã que se dirige às
novidades. A lei dos três estados significa que não há novidades, mesmo no
saber, e que o espírito tem somente por
papel responder às questões que a antiga teologia colocava ingenuamente. Nesse
sentido, a idade metafísica, que destrói sem fundar, e a que é preciso chamar
de negativa, deve ser considerada, segundo a expressão do nosso filósofo, como
uma longa insurreição do espírito contra o coração. E este género de
conhecimento, demasiado comum entre os especialistas que apenas sabem refutar
os seus predecessores, conduz naturalmente à declamação céptica, por um hábito de misantropia que é só um conhecimento
do passado humano. Apreende-se talvez agora que o espírito de conjunto está
mais fundado num melhor conhecimento das verdadeiras necessidades do homem do
que num sistema do mundo que será sempre miseravelmente incompleto.
Concebe-se
sem dúvida presentemente o que é o espírito sociológico, e que a sociologia não
é uma ciência nova que apenas se acrescente às antigas, mas antes uma
disciplina de reflexão que as domina a todas; e esta concepção, que se conta
entre as partes menos compreendidas e as menos aceites do positivismo, permite
mesmo regular, pelo espírito sociológico, o que se deverá chamar a intemperança
sociológica. A sociologia é essencialmente uma filosofia, que nunca deve deixar
de equilibrar a cultura científica, de a preparar pela educação dos sentimentos
e pelo culto das artes, nem de religar, o que é a mesma coisa, o presente e o
futuro a partir da contemplação do conjunto do passado humano. Este género de
síntese, já tentado, mas prematuramente, por Bossuet, Montesquieu, Condorcet,
foi amplamente realizado pelo nosso autor nas suas admiráveis lições de
Dinâmica Social, que todavia não são plenamente esclarecidas a não ser pelo
sistema de Estática Social que se encontrará no Curso de Política positiva.
Confunde-se demasiado depressa o espírito positivo e a crítica negativa que
marca demasiadas vezes o preconceito científico. Mas as próprias palavras
corrigem esse juízo. Positivo opõe-se a negativo; e o espírito positivo retoma
e desenvolve, com vista ao futuro, todo
o tesouro da religião, dos costumes, e das artes, por uma consideração sempre
mais escrupulosa do sistema inteiro das ciências, enfim completado pelo esboço,
e mais do que esboço duma sociologia positiva. É de desejar que esta atitude de
espírito, sempre fundada na experiência interpretada segundo o rigor, seja
melhor compreendida e mais imitada pelas jovens gerações, legitimamente
preocupadas em ligar o progresso à tradição, e de legitimar, sobretudo por
ideias de início estritamente biológicas, tal como se explicará, todas as
antecipações e as pretensões do coração.
Fora do sistema de que dei uma ideia, e sem o fio condutor das duas
preciosas séries, uma mais epistemológica, e a outra directamente sociológica,
a ciência está condenada a errar entre as aplicações mercantis e a sofística. A
nossa época esclarece o pensamento de Comte, e verifica-o duma maneira
retumbante, pelas próprias surpresas da nossa desordem, tanto moral quanto
intelectual.
Alain
(Tradução de José Ames)
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