terça-feira, 27 de março de 2012

O ESPÍRITO POSITIVO




O conjunto do sistema estando agora exposto, ficam por explicar mais amplamente, e conformemente a toda a experiência humana, as ideias capitais que devem reger a nossa reforma intelectual, política e moral. O espírito positivo é assaltado pelas paixões, e não pode ser de outra maneira,  sobretudo nas pesquisas que tocam directamente aos nossos interesses. Não é mais, finalmente, do que a ordem exterior que triunfa das paixões; mas a resposta das coisas às nossas exigências e às nossas esperanças não é sempre suficientemente clara para nos desencorajar das nossas quimeras. Todavia o homem não pôde deixar de reconhecer primeiro que as relações dos números e das grandezas, tão sensíveis nos trabalhos e no comércio, não se dobravam aos nossos desejos, e que a rigorosa previsão dos resultados valia mais aqui do que as nossas esperanças, mesmo quanto à felicidade mais vulgar. A primeira ideia da ordem inviolável, e a mais poderosa, resulta em todo o homem primeiramente da arte de contar e de medir. Esta experiência, embora indirecta, não é menos convincente. Donde vem a autoridade da matemática, em todos os tempos reconhecida. Trata-se então das relações mais abstractas, as mais simples, e também as mais usuais; por isso, as relações mais extensas, uma vez que não há objecto no mundo que não caia sob o  número e sob a medida. Eis por que o movimento indutivo, que recolhe procedimentos a partir de experiências constantes, é aqui quase sempre mascarado pelo aparelho e o sucesso das deduções que dizem respeito ao futuro, e sempre verificadas. Donde o espírito humano primeiro reconheceu que as suas próprias faltas, e sem desculpa, eram muito mais importantes, nesta ordem de conhecimentos, do que as surpresas da experiência. Assim a ideia de milagre pôde sempre ser apagada por uma revisão exacta do nosso trabalho intelectual. E foi aí que o nosso espírito formou a ideia do seu poder, e, num sentido, da sua inteira autonomia. Eis por que a matemática chegou prontamente à sua perfeição, quanto ao seu objecto próprio, que é sempre a medida indirecta. Donde um império indiscutível, e indiscutido, que faz deste primeiro conhecimento o modelo de todo o conhecimento positivo, e o preâmbulo de toda a cultura enciclopédica. Quanto ao preconceito dedutivo, que alimentou as fantasias de Pitágoras e mesmo de Platão, ele foi sempre mais útil do que prejudicial pelos efeitos; porque não é de temer que a natureza das coisas não nos corrija desde que um problema seja matematicamente colocado, quer dizer passível duma observação directa sem nenhuma ambiguidade. Foi certamente sob o império das matemáticas que a astronomia renunciou pouco a pouco aos preconceitos da astrolatria e da astrologia. Kepler, ainda místico nisso, procurava assiduamente alguma harmonia digna de Deus entre os elementos dos planetas; mas a forma numérica da questão não permitia qualquer resposta que fosse contrária às medidas; e o afastamento mesmo entre as medidas existentes e a célebre lei dos quadrados dos tempos proporcionais aos cubos dos grandes eixos, era ele próprio medido, o que orientava a pesquisa para os caminhos que Newton devia seguir. De resto, todo a fantasia sobre os astros se submete inevitavelmente a uma primeira descrição, toda matemática quanto aos seus instrumentos, esfera celeste, equador, meridiano, eclíptica. Comte, seguindo nisso uma ideia justa, e demasiado esquecida, nunca deixou, tanto quanto lhe foi possível, de ensinar a astronomia a um auditório de trabalhadores, desenhando assim o plano que as nossas Universidades Populares não souberam seguir. E todavia notar-se-á que a vulgarização das noções astronómicas não cessou, no  decurso da emancipação metafísica, de esclarecer utilmente o espírito público. É preciso dizer aqui isto, que, por uma preparação matemática insuficiente, se arrisca sempre a sacrificar a simples descrição ao que há de emocionante em certos factos raros e mal conhecidos. Os nossos vulgarizadores falarão mais depressa dos canais de Marte do que da órbita desse planeta e dos seus movimentos observáveis. Comte tinha previsto bem que a astronomia se arriscava a esquecer o seu destino em pesquisas menos directamente úteis à formação do espírito positivo. Estas páginas fazem escândalo aos olhos dos investigadores para quem toda a verdade é suposta útil e boa. Eles estão muito longe da disciplina positivista, que se  propõe sempre, como se observou, uma justa proporção entre os diversos conhecimentos, e uma orientação de todos para o principal, que deve mudar os nossos destinos. Existe um grande  contraste, e chocante, entre o que um espírito curioso pode saber das estrelas duplas, e as noções incoerentes às quais ele está muito vezes reduzido no que diz respeito às riquezas, aos direitos, aos deveres, e ao futuro humano. O espírito positivo reagiu energicamente contra a intemperança do saber, retomando a antiga ideia de Sócrates, de que no fundo é a moral que importa, mas prestando também a cada uma das ciências o culto, pode-se dizer, que lhe é devido. A verdadeira razão do saber não é uma vã curiosidade, que aliás se contenta frequentemente com pouco, nem mesmo uma preocupação com os progressos materiais, que muitas vezes só interessam as paixões inferiores; a verdadeira razão de saber é a própria sabedoria, e a organização dum futuro razoável para toda a nossa espécie.

Importa, porém, seguir essa grande ideia até às raízes. Porque não é de modo nenhum questão de substituir a desordem das paixões por uma ordem fundada unicamente na inteligência. Em todo o homem o conhecimento eficaz provém dum tumulto de sentimento que ele deve superar. Quer se trate do medo, da coragem, ou do amor, os primeiros movimentos são naturalmente convulsivos, e o conhecimento só tem primeiro valor tanto quanto imponha a esses  movimentos a regra mesma das coisas, quer dizer, tanto quanto os transforme em acções. Assim, não é somente a necessidade propriamente dita que, levando à acção, torna necessária a investigação. Um outro género de utilidade, profundamente sentido desde que as primeiras necessidades estejam satisfeitas, consiste numa disciplina do próprio sentimento; e tal é a recompensa do esforço mental. Um dos efeitos da física, e não dos menores, é de nos curar do pavor que produz naturalmente todo o fenómeno raro, como o eclipse ou o cometa. E isso estende-se a todos os nossos conhecimentos, e estamos muito longe de conceber o mundo incoerente das emoções de todo o género, tal qual ele foi antes da menor tentativa de explicação. A antiga magia, os oráculos, a pretensa ciência dos sonhos, os sacrifícios, as cerimónias, as festas, dão-nos disso alguma ideia.  Esses enérgicos remédios são o sinal indirecto dum estado mental, que verosimilmente volta em todos os géneros de loucura. Se se compreendeu bem que o saber positivo saiu, por um longo progresso, das antigas doutrinas teológicas, compreender-se-á então como, no indivíduo tanto como na espécie, um conhecimento real corresponda sempre a um primeiro impulso, primeiro de sentimento, e manifestado por actos instintivos  que a natureza das coisas corrigia primeiramente, mas ainda melhor manifestado pela menor previsão. Está pois fora de dúvida que a ciência se enxerta e vive sobre um sentimento vivo e forte, que ela transforma sem nunca abolir. Comte ousou dizer, o que cada um reconhecerá sem vergonha, que o puro amor da verdade é ao mesmo tempo muito eminente e muito fraco, e que a própria ambição não é aqui uma garantia que baste. E o amor por outrem se não fosse ele mesmo purificado por uma reflexão suficiente, seria ainda demasiado fraco para determinar os primeiros passos do espírito. Dizer que toda a concepção foi de início teológica, e é-o também na criança, é dizer que é preciso reencontrar, no começo do saber,  algum sentimento ao qual o saber responda; e é o que a comum linguagem exprime, porque sentimento diz mais do que opinião, e mais do que parecer, e mais do que doutrina quando o homem quer seriamente aconselhar ou julgar. É pois por um retorno ao sério do espírito que o sábio dos novos tempos aprecia sem indulgência as investigações que não têm directamente por fim um progresso de íntima civilização. De resto, é claro para todos que o progresso dos conhecimentos, quanto à extensão e à variedade, não pode sustentar a esperança humana, atendendo a que nós estaremos sempre infinitamente afastados de saber tudo o que um espírito curioso quereria agarrar; e seria louco contar com que o milagre duma descoberta intelectual pudesse avançar dum golpe a solução do problema humano. Por exemplo, a explicação de alguns milagres basta para os eliminar a todos;  e o bom uso do saber faz-nos mais falta do que próprio saber. É o que significa uma educação de espírito sempre enciclopédica, quer dizer, sempre visando o equilíbrio interior. Considerada sob este aspecto, a ciência não pode iludir a esperança.

Esta segurança positiva, evidentemente compatível com uma modéstia do espírito, por de mais bem fundada, difere completamente da curiosidade vã que se dirige às novidades. A lei dos três estados significa que não há novidades, mesmo no saber, e que o espírito  tem somente por papel responder às questões que a antiga teologia colocava ingenuamente. Nesse sentido, a idade metafísica, que destrói sem fundar, e a que é preciso chamar de negativa, deve ser considerada, segundo a expressão do nosso filósofo, como uma longa insurreição do espírito contra o coração. E este género de conhecimento, demasiado comum entre os especialistas que apenas sabem refutar os seus predecessores, conduz naturalmente à declamação céptica, por um  hábito de misantropia que é só um conhecimento do passado humano. Apreende-se talvez agora que o espírito de conjunto está mais fundado num melhor conhecimento das verdadeiras necessidades do homem do que num sistema do mundo que será sempre miseravelmente incompleto.

Concebe-se sem dúvida presentemente o que é o espírito sociológico, e que a sociologia não é uma ciência nova que apenas se acrescente às antigas, mas antes uma disciplina de reflexão que as domina a todas; e esta concepção, que se conta entre as partes menos compreendidas e as menos aceites do positivismo, permite mesmo regular, pelo espírito sociológico, o que se deverá chamar a intemperança sociológica. A sociologia é essencialmente uma filosofia, que nunca deve deixar de equilibrar a cultura científica, de a preparar pela educação dos sentimentos e pelo culto das artes, nem de religar, o que é a mesma coisa, o presente e o futuro a partir da contemplação do conjunto do passado humano. Este género de síntese, já tentado, mas prematuramente, por Bossuet, Montesquieu, Condorcet, foi amplamente realizado pelo nosso autor nas suas admiráveis lições de Dinâmica Social, que todavia não são plenamente esclarecidas a não ser pelo sistema de Estática Social que se encontrará no Curso de Política positiva. Confunde-se demasiado depressa o espírito positivo e a crítica negativa que marca demasiadas vezes o preconceito científico. Mas as próprias palavras corrigem esse juízo. Positivo opõe-se a negativo; e o espírito positivo retoma e desenvolve, com vista ao futuro,  todo o tesouro da religião, dos costumes, e das artes, por uma consideração sempre mais escrupulosa do sistema inteiro das ciências, enfim completado pelo esboço, e mais do que esboço duma sociologia positiva. É de desejar que esta atitude de espírito, sempre fundada na experiência interpretada segundo o rigor, seja melhor compreendida e mais imitada pelas jovens gerações, legitimamente preocupadas em ligar o progresso à tradição, e de legitimar, sobretudo por ideias de início estritamente biológicas, tal como se explicará, todas as antecipações e as pretensões do coração.  Fora do sistema de que dei uma ideia, e sem o fio condutor das duas preciosas séries, uma mais epistemológica, e a outra directamente sociológica, a ciência está condenada a errar entre as aplicações mercantis e a sofística. A nossa época esclarece o pensamento de Comte, e verifica-o duma maneira retumbante, pelas próprias surpresas da nossa desordem, tanto moral quanto intelectual.


Alain
(Tradução de José Ames)


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