Goethe
e Hegel compreendiam-se muito bem. Conhece-se a estranha teoria de Goethe sobre
as cores, consideradas como misturas em diversas proporções da luz e da
obscuridade. A partir destas opiniões, Goethe negava intrepidamente a
decomposição da luz pelo prisma. Encontrar-se-ão na física de Hegel estes mesmo
erros, e muitos outros. Não insistirei
muito nisso; vou resumir aqui ainda mais do que noutros lugares. Mas tentarei
no entanto fazer ver suficientemente o belo e o verdadeiro deste temerário
empreendimento. É como uma tentativa de religião. Trata-se de mostrar, depois
de tantos outros, que a natureza oferece pelo menos vestígios do espírito. Toda
a teologia é superabundante aqui, e fraca muitas vezes nas suas provas. Mas nós
temos agora sobre a teologia esta vantagem nítida, é que a lógica nos traçou um
retrato do espírito melhor ordenado, melhor articulado, mais distinto do que o
ingénuo antropomorfismo o podia fazer. Ora desta lógica a natureza oferece-nos
como que uma imagem quebrada. Certas partes são mais fáceis de ler, outras
menos. E pode-se renunciar a ler? Porque de todo o modo é preciso de facto ler o semelhante, o
homem, que é apenas coisa e enigma num sentido, mas em quem o espírito fala no
entanto. Do homem ao animal, quem não fez a passagem? Os graus mesmos do mundo
animal só têm sentido pela suposição de espírito que se agita nessas formas, e
procura libertar-se. Mesmo a planta, em que a relação exterior prepondera, em
que a unidade e a identidade se separam, por elas mesmas, pode oferecer-nos ainda
uma imagem degradada de nós mesmos tanto quanto faltamos ao espírito. O que é
digno de ser notado, é que no outro extremo, no mundo mecânico e inerte, nós
encontramos como que um traçado, e quase sem desvio, dos nossos pensamentos
mais abstractos. Os seres que não fazem, mais do que cair ou gravitar são como
teoremas em acção; a relação exterior rege-os como rege os nossos pensamentos
mais magros. De maneira que pouco falta para que o mundo na sua variedade nos
ofereça a imagem da lógica e as divisões da lógica. Uma parte da natureza seria
segundo o ser abstracto, e a outra no oposto segundo a noção. Os teólogos
sempre tiraram grande partido da ordem astronómica como também da estrutura dos
vivos. Entre estas duas ordens, o mecanismo e o organismo, encontram-se
colocadas a física e a química, que seriam portanto segundo a essência, quer
dizer segundo a relação pura. Mas o que é a relação tornada objecto? A luz, o
som, a electricidade, o calor são de facto qualquer coisa como isso; porque não
são objectos, mas por elas todos os objectos comunicam. Estas propriedades
físicas realizam a distância e o tempo. A química, por oposição, remete-nos
para figura do objecto, e para o trabalho que se faz no interior do objecto. A
formação do cristal, nomeadamente, é uma espécie de individuação mecânica.
Adivinha-se que esta parte intermédia da Filosofia da Natureza é a mais
perigosa. E todavia nós devemos ganhar familiaridade com o desenvolvimento
aristotélico, que é justamente o oposto do espírito cartesiano. Descartes
negava o pensamento animal; não nos admiramos depois disso que ele reduza a
qualidade à quantidade. Aqui, por um preconceito contrário, pressupomos que o
espírito, evidentemente esboçado na forma orgânica, mesmo inferior, deve
reencontrar-se ainda nos grandes factos
da Química e da Física. Mas também, contra a análise cartesiana, devemos tentar
pensar a qualidade como real. Aqui encontro a posição de Goethe contra Newton;
é por este caminho que se poderia compreender a teoria de Goethe sem ser como
um erro enorme. Não posso dizer que
tenha chegado a compreender isso completamente. Confessemos que, mesmo
considerando a natureza como um imenso ser vivo, se encontrarão partes quase
impossíveis de interpretar dessa maneira. Curar-nos-íamos de criticar se se chamasse
poesia ou mitologia a esta pesquisa divinatória. E é preciso de facto, no entanto, que este
espírito no sono, a que chamamos natureza, seja desenhado ou pelo menos
esboçado como tal com todos os riscos. Porque se o espírito humano não desperta da vida orgânica, se não for por
todos os lados batido pela vida universal, a filosofia do espírito será apenas
uma lógica recomeçada. Eu quereria mesmo dizer que o que fica de incerteza
nesse poema da natureza, define o melhor possível a situação humana, em parte
inumana, pelo qual o pensamento chega à existência.
Poema
em três cantos. Devemos seguir primeiro esses corpos gravitantes, segundo número, espaço, tempo, força; segundo o
espírito, mas sem espírito; o centro está fora; tudo está fora e é exterior
neste pensamento degradado. Em contrapartida tudo aí é claro para o espectador; porque o espaço, o
tempo e o movimento nele desenvolvem uma lógica real. O espaço real é o espaço
segundo a dialéctica abstracta. A linha
nega o ponto, a superfície nega a linha, e, por esta negação da negação, o todo
do espaço é restabelecido. Um tal espaço não é nada. A negação do espaço faz
aparecer o tempo; porque negai toda a
grandeza de espaço, há ainda duração para todo o ponto. O tempo é a
exterioridade pura, como se o ponto, reduzido à pura negação em si, escapasse
ainda por si mesmo. E a intuição do tempo como exterioridade traz o espaço;
somente o ponto agora é mais concreto; é o lugar, a identidade realizada do
tempo e do espaço; e o lugar que se nega a si mesmo e passa para outro lugar, é o movimento. A matéria é
a unidade negativa da atracção e da repulsão; é o número da lógica, mas
com intuição. A gravitação é a mecânica
absoluta. Eu só quero fazer um traçado sumário desta construção ousada. Não se
trata agora de saber se estas formas
abstractas estão alinhadas segundo a lógica da ordem, mas somente julgar se a
nossa lógica é a lógica da natureza. Quando Kant concluía que o entendimento é
por si mesmo uma legislação da natureza, queria dizer apenas que nós só
conhecemos a natureza através da nossa lógica; ora o desenvolvimento das
ciências, sobretudo da geometria e da mecânica, encerra ainda outra coisa, é
que a natureza verifica constantemente a
nossa geometria e a nossa mecânica; e o ponto difícil está nisto que o espaço,
o tempo, o movimento, as leis do movimento, são talvez apenas referências, que
a natureza não pode nunca contradizer, nem por consequência confirmar; por
estas ideias a filosofia crítica se reencontraria intacta e invencível. Mas se
se faz o salto dogmático, o que é afirmar que a natureza é homogénea com os
nossos pensamentos, é preciso saber bem com o que nos comprometemos; porque o
movimento real no mundo será um pensamento real no mundo, ou então não será
movimento. O mesmo a dizer do tempo e do espaço, e também da relatividade que
os nega; porque a relatividade é também um pensamento. A aventura Hegeliana,
como a aventura Aristotélica é de querer pensar o objecto como tal, e as
dificuldades da execução não devem ser tomadas por objecções de princípio. A
natureza resiste, e é nisso que ela é natureza. “Não se saberia, diz Hegel,
tudo remeter para a noção nesse cadáver, porque o acidente desempenha aí o seu
papel.” E todavia, quereria eu dizer, o universo é ainda uma metáfora sofrível
dos nossos pensamentos. Compreendo bem que Hegel não tome a sua cosmogonia por
metáfora somente; sem dúvida existiu só Platão que relevasse a mitologia
racional dando-lhe o seu justo lugar.
Mitologia
ainda mais evidentemente é a física conforme o espírito, que faz o segundo
canto do poema. Porque é belo reconhecer na luz a relação materializada, por
onde se exprime, de modo qualitativo já, a expansão absoluta no espaço, e o
poder da realidade universal de estar fora de si. É belo também reconhecer no
som, e por oposição, o tempo real tornado sensível; e enfim no calor a própria
negação da matéria. Enfim, em oposição a esta potência dissolvente, é belo
restabelecer a individualidade dos objectos como tendo figura, coesão, peso
específico, carga eléctrica, e enfim todas
as propriedades resistentes à física, e que definem a química. São no
entanto apenas metáforas mais ou menos felizes, e que não creio ser útil
desenvolver. No detalhe não faltam erros, e alguns chocantes. Já citei a teoria
das cores, que é a mesma de Goethe. Encontrar-se-ão fantasias do mesmo género
sobre o pêndulo, sobre o barómetro, sobre a chuva, sobre o magnetismo. Uma
ciência que apalpa ainda é um frágil apoio para a especulação filosófica. E, em
resumo, esta parte sobretudo foi julgada e será julgada muito severamente. Mas,
ainda uma vez, é preciso ver em que sentido se dirige este pensamento, e contra
o que luta. Como Goethe tinha um invencível preconceito a respeito da óptica de
Newton, que decompõe, assim se encontra em todas as linhas na física de Hegel,
uma extrema desconfiança para com o
pensamento que cinde, como ele o chama, que quer sempre remeter o estudo dos
fenómenos para a pura mecânica. Ao contrário, o esforço de Hegel está em
definir a qualidade contra as usurpações da quantidade. Este movimento de
espírito parecerá justo a muitos.
Porque, se se quer aproximar do vivo e sobretudo do pensante, não se
deverá, de ciência em ciência, determinar uma existência cada vez mais rica,
cada vez mais interior a si mesma? Quase todos estão de acordo hoje em
reconhecer que a vida é diferente de um mecanismo. O preconceito Hegeliano
encontra aqui a sua justificação. Deverá ele procurá-la ainda na região
intermédia, a física, que o mecanismo
tão brilhantemente conquistou e explorou? O orgânico será sempre o refúgio do
Aristotelismo. E quem impede de pensar que existem na natureza partes mortas,
como o próprio Hegel o reconheceu? Seria estender apenas a parte eterna do
mundo, móvel e imóvel, sem nenhum progresso, que Aristóteles reduzia ao céu dos
astros; e continua verdadeiro que esta parte inumana regula e limita o
progresso humano e em primeiro lugar a existência animal. Ora, não escapou a
Hegel que a ciência desses corpos mortos é a mais abstracta e a mais rigorosa;
não é preciso mais para que a sua astronomia e mesmo a sua física se encontrem
sem pecado como prefácio à filosofia do espírito.
Eis-nos
no terceiro canto do poema. Aqui o andamento é mais seguro, o acento mais
justo, a descrição sem falta. Porquê? É que o superior supõe o inferior. Porque
é da vida que nascem a consciência, o pensamento, a civilização, as
instituições, as obras. O que é feito segundo o espírito só é feito por um vivo
que se alimenta, dorme, cresce, se reproduz
num outro e primeiro em si mesmo, o pensamento e a acção repousando
sempre sobre o instinto. Aqui, por gradações cujo sentido é suficientemente
claro, o espírito encontra-se ligado à natureza viva toda inteira, e, por seu
intermédio, à própria natureza orgânica. A dificuldade é compreender que este
naturalismo é ainda uma espécie de lógica, e que a sombra da dialéctica se
reconhece ainda no animal e mesmo na planta. Mas esta passagem, que é própria
de Hegel, e que caracteriza este
pensamento, que em todas as suas partes é poema, será menos misterioso se se
tiver compreendido primeiro o bastante a alma da lógica Hegeliana, que é juízo
e não raciocínio, quer dizer invenção de pensamentos segundo a ordem; porque
desta mesma ordem resulta que o espírito concreto se desenvolve segundo uma
outra ordem que é família, sociedade, história, por nascimento, crescimento,
paixões, doenças, envelhecimento e morte. Que estas duas ordens sejam no fundo
a mesma, una
eademque res, isso
é, como em Spinoza, o objecto duma intuição que suporta o sistema em todas as
suas partes, mas, desta vez, sistema em movimento. A Ética está em
marcha; e o amor de Deus é Deus.
Mas
devemos reatar o fio dialéctico. Os corpos, quimicamente considerados, tendem
para uma espécie de individualidade por um amontoamento mecânico; e todavia o
calor, força exterior, altera-os e dissolve-os; mesmo o cristal, que deixa ver
uma espécie de reprodução da forma em si mesma, depende absolutamente das
circunstâncias exteriores. A esta fluidez opõe-se a permanência própria do ser
organizado, o qual age e reage conservando-se contra as forças as mais
diversas, e em que a matéria passa sem que a forma mude. Esta duração do
organismo não se faz sem dificuldade, e a actividade química retoma finalmente
a vantagem na morte. Mas o espírito triunfa na reprodução; e o espírito humano
triunfa ainda de outra maneira, na história, na arte, na religião, na
filosofia. A parte desta Odisseia do espírito, segundo a bela expressão de
Schelling, em que o espírito se salva a custo do naufrágio, é agora o nosso
objecto. A planta é apenas ainda uma imagem quebrada do espírito. A forma
conserva-se contra o assalto das forças cósmicas; mas a individualidade
produz-se nela ainda como exterior a si mesma. O crescimento faz-se pela
reprodução dum outro indivíduo; o embrião não é um membro; ele é semelhante à
planta; donde outros modos de reprodução, enxerto, mergulhia, estaca, ao lado
da reprodução pela semente, que é uma melhor imagem do desenvolvimento do
espírito. A planta não faz mais, pois, do que sair de si mesma. A destruição do
vegetal pelo animal que dela faz o seu alimento é assim o símbolo do movimento dialéctico que nega a
individualidade da planta a partir da relação exterior que nela reproduz sem
cessar. O animal realiza pelo contrário a unidade para si, quer dizer
indivisível, realmente sem partes. Disso só percebemos os sinais exteriores; de
qualquer modo é bastante claro que as partes não têm existência independente. A
mão cortada recai no quimismo; a mão
viva é portanto todo o organismo; ela só é o que é pelas outras partes. O sentir, que é próprio do animal, supõe e
exprime esta unidade indivisível; porque não é a parte que sente, mas é o todo
que se sente a si mesmo em todas as partes. O espaço, quer dizer a relação
exterior, não têm então aqui mais sentido; ele é superado. Dizer que o animal
sente, quer dizer que ele se sente, e que nele sente toda a natureza. “O ver e
o ouvir são apenas formas da minha transparência e da minha clareza para mim
próprio.” No animal, portanto, existe a verdadeira unidade subjectiva, a alma
simples, que está distribuída, sem ser dividida, pela exterioridade do corpo.
Por isso, não se deve procurar em que parte do organismo se encontra a alma. “
Há de facto milhares de pontos em que a alma está presente, mas nem por isso ela
está num ponto, numa parte do corpo, nem mesmo no corpo, porque a exterioridade
do espaço (como diz Hegel: “o ser de fora”) já não é verdadeira para a alma. É
este ponto da subjectividade que é preciso apreender e não perder de vista.” A
alma está em todo o lado em que conhece, e o sentimento do seu próprio ser é
também o conhecimento do universo. O animal tem portanto com o objecto uma
outra relação além da relação prática; ele já contempla. "Assim a vida animal é
absoluto idealismo.”
A
alma é pois o universal, uma vez que o seu contrário ela é-o, e porque nada há
no mundo que ela não seja. Mas ela não é primeiro o universal senão em si, pelo sentir, não
para si, como seria pelo pensamento. O em si designa a suficiência dum ser, o
para si encerra uma reflexão; e o pensamento, como dizia Aristóteles, é o
pensamento do pensamento. Aproximamo-nos da compreensão do que é sentir sem
pensar considerando o exemplo do homem puramente sensível, que sente os seus
desejos, mas não os julga, quer dizer não se compreende pelo pensamento como
ser universal. Tal é a existência animal do homem. E vê-se que a dialéctica
animal não se acaba na animalidade. A
exterioridade é nela negada em si, mas não é ainda negada para o sujeito. É
assim que o homem ingénuo se crê exterior às coisas que conhece; e no entanto ele domina já esta
contradição, pois que sente o seu próprio todo em cada parte; somente não tem
consciência desse poder.
O
organismo animal reproduz-se; este carácter, considerado como exterior, é já
bastante surpreendente. Todavia, é preciso compreendê-lo pela dialéctica. No
sentir está contida uma oposição do eu e do mundo, por isto que sendo tudo num
sentido, num outro sentido, sou apenas eu. Esta oposição não é pensada assim no
animal; é somente sentida, e esta desproporção nele sentida é o desejo. Apenas
o vivo sente a falta, e sente a falta porque
sente; quer dizer que só ele existe na natureza em quem a noção seja
como unidade de si mesma e do seu contrário. Aqui o superior explica o
inferior. “O termo que contém a contradição em si mesmo e que a pode sustentar,
é o sujeito, e é isso que faz a sua infinidade.” São os seres superiores que
têm o privilégio de sentir a dor. Privilégio, porque sentir a falta é possuir.
“As naturezas elevadas vivem assim na contradição e é esse o seu privilégio.”
Mas este desenvolvimento pertence à filosofia do espírito.
O
animal move-se segundo o instinto, quer dizer ao mesmo tempo conforme a sua
unidade própria e conforme o conjunto das forças naturais, sem pensar esta
oposição, quer dizer sem saber nem querer. “As migrações dos animais, por
exemplo dos peixes dum mar a outro, traduzem essa vida em comum com a natureza.
Do mesmo modo, os povos da natureza sentem a marcha da natureza e as estações,
enquanto o espírito faz da noite o dia.” O animal não é mais do que uma forma
armada que, na sua acção exterior, de preensão e de assimilação, se afirma ela
mesma e se reproduz. O instinto artístico, que por exemplo constrói os ninhos, é
apenas a consequência do instinto plástico que conserva e faz crescer o corpo
vivo. O animal, tendo tornado adequado a si o objecto exterior, reencontra-se a
si mesmo nesse objecto e nele se compraz. Do mesmo modo pela voz se sente a si
próprio no mundo. O canto dos pássaros é como que um gozo imediato de si,
imediato, logo sem saber.
São
apenas observações, e preparações. É preciso compreender de mais alto e mais
profundamente o drama da reprodução e da morte. Que o individual seja ao mesmo
tempo o universal, isso está contido no desejo, porque que o que falta não tem
sentido a não ser em relação a um tipo verdadeiro. A noção, arquitecto sem
consciência, supera o facto da existência individual; ela é já pensamento; mas
não é ainda pensamento do pensamento. O homem instruído e cultivado aproxima-se
do espírito real e concreto quando põe o género universal, o homem, como modelo
de si mesmo. Mas isso supõe um longo desvio e o apoio do Espírito Objectivo,
Arte, Sociedade, Religião. É o que vai expor a Filosofia do Espírito; mas é
preciso antecipar se se quer compreender no animal o que Hegel chama de
processo do género. É pelo género que se julgam os monstros; e todo o animal é
um monstro de algum modo, porque nenhum animal realiza o género. Mas também
todo o animal é governado pelo género, porque esta contradição ainda obscura
entre o que é e o que deveria ser é o que o move, o leva a reproduzir-se, e
finalmente o faz morrer. A doença, como a falta, é apenas a contradição entre a
independência das partes e a unidade do todo. A relação dos sexos é só o efeito
deste íntimo descontentamento de si, que sem fim engendra pela morte. Somente a
vida animal não faz mais do que recomeçar-se a si mesma. “O fim da natureza é
anular-se a si mesma, de quebrar o invólucro da existência imediata e sensível,
de se queimar como a Fénix para renascer desta existência exterior.” Mas é
preciso lançar os olhos para a frente, para os destinos do espírito, para
compreender completamente o sentido da morte. A doença original do animal, mais
sensível no homem, o gérmen mortal que ele traz no seu seio, é a desproporção
que existe entre ele e o universo. Aos olhos daquele que sabe isso, a morte,
que apaga a natureza, é menos negação do que afirmação. “Acima dessa morte da
natureza, acima desse invólucro inanimado ergue-se uma natureza mais bela;
acima ergue-se o espírito.”
Alain
(Tradução de José Ames)
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