segunda-feira, 12 de março de 2012

O ESPÍRITO OBJECTIVO




O que faz o espírito real, é o que ele faz. Separado da obra, é apenas subjectividade inexprimível. Mesmo vivo, ele só é para si pelo signo, e melhor ainda pelo signo escrito. Ler é um grande momento do pensamento. Mas não é o pensamento encerrado em si mesmo que inventa o signo; o signo é um objecto entre outros. A arte é o signo por excelência. Sem as obras da arte o que seria a religião? E o que pensaria a filosofia se não pensasse a religião? Todavia a arte não é tampouco separável da civilização, quer dizer dos costumes e do direito, das constituições, das guerras, das revoluções, da história humana enfim; tal é a vida do espírito. Nós procuramos, pela dialéctica descendente, as condições que faltam, de grau em grau. Como a lógica esclarece a filosofia do espírito, assim sempre o termo abstracto, suprimido e  conservado, é o que permite  reencontrar o espírito na sua obra; mas as obras do espírito são enigmas, para quem não seguiu a ordem. Por exemplo, não é difícil conceber o Estado a partir da relação exterior, quer dizer, a partir do método atomístico, que é próprio do entendimento. Os indivíduos não podem viver sem associação, e a associação, nas suas condições exteriores, prudência, interesse, troca, segurança, define o direito. Esse direito é marcado de necessidade; a natureza está nele representada segundo a essência, mas o espírito não está aí. E a ficção própria deste conhecimento prematuro, é que é o indivíduo que faz a realidade do Estado. E ainda não tanto pelas perfeições próprias do indivíduo, como ciência, sabedoria, liberdade, moralidade, mas antes pela renúncia e uma diminuição do indivíduo, que, como dizia o sofista, sacrifica alguma coisa da sua liberdade e do seu espírito para conservar o seu ser. O indivíduo é assim apenas um  elemento mecânico, e o Estado um agregado sem pensamento. Ora, é preciso que este raciocínio se complete, e que nele se reconheça, atravessando-o, a insuficiência da lógica. Sem o que não se encontrará o que é o Estado segundo a noção, o Estado verdadeiro, que é o Estado real. Sem o que se irá dum raciocínio ao outro, dizendo primeiro que, pelas necessidades, o indivíduo depende do Estado, dizendo que, pelo trabalho de cada um, o Estado depende dos indivíduos, e é apenas uma soma de indivíduos. Estes raciocínios são sem verdade. É preciso compreender que o Estado é a mediação substancial em que os indivíduos encontram o seu fundamento, o seu meio, e a sua completa realidade.  O Estado não é portanto uma coisa fundada por um homem, nem por homens. O Estado é um ser de natureza que se desenvolve ao mesmo tempo que os homens, e pelo qual os homens desenvolvem ao mesmo tempo o seu pensamento e a sua liberdade. Do mesmo modo que o homem em si é a criança, do mesmo modo que a planta em si é o gérmen, assim o “Estado em si é o Estado não desenvolvido, patriarcal, em que as funções políticas que estão contidas na noção do Estado não atingiram ainda a sua forma constitutiva e racional”. E o desenvolvimento dialéctico do homem verdadeiro não é separável do desenvolvimento dialéctico do Estado verdadeiro. Assim, mesmo a psicologia, menos abstracta do que a lógica, é abstracta ainda. O homem vivo,  no meio da natureza, porque continuará encerrado na subjectividade, não chegará mais do que o animal a conhecer-se a  si mesmo; e a sua própria relação com o seu semelhante, sem as mediações do ofício, da família, do direito, não se elevará acima da cólera e do estéril combate.

Esta ideia será melhor esclarecida ainda pela doutrina da pena. Porque ao entendimento não faltam razões exteriores para justificar as penas, como fazer medo, a fim de proteger os bens e as pessoas, e procurar a maior utilidade pelo menor mal. Mas estas razões não justificam de modo nenhum a pena; pelo contrário, elas apagam toda a justiça, e mesmo todo o dever real. O indivíduo que se contenta com elas coloca-se a si mesmo, porque não conhece o seu pensamento, realmente fora do Estado, embora não possa escapar ao Estado. Ora, não é assim que ele se prende ao Estado. O direito é de facto diferente duma convenção; o direito é a substância mesma do indivíduo pensante e livre; o atentado ao direito é um atentado ao seu pensamento; e da sua própria parte, o atentado ao direito é uma profunda e radical negação de si mesmo, negação que se torna real pela pena,  seja prisão, exílio ou morte.  Assim, a pena cumpre a vontade do culpado. E a justiça é de facto uma exigência do mais alto do homem, e não somente do mais baixo do homem. Na verdade, a pena é devida ao culpado; e se não nos dignamos a puni-lo, é então que não o honramos como se deve; é então que não o tratamos como homem; assim, diz-se bem que ele merece a pena. Esta forte ideia despertou-me, pela minha parte, do sono de entendimento em que me comprazia; pareceu-me que as razões de Bentham estavam muito abaixo do homem. E foi por este caminho que entrei nas razões Hegelianas, e, cada vez mais próximo, num sistema que não me persuade, mas que me forneceu grandes luzes sobre muitas coisas.

O que aparece em Hegel é a própria sociologia, e, ao que creio,  pelas suas verdadeiras razões; a sociologia, não ainda nomeada em Hegel, nomeada e anunciada ao mesmo tempo por Auguste Comte, por ele enraizada nas ciências e na natureza exterior, mas não pensada em espírito. E é de facto  notável que o Pensador Positivo, que contava em cinquenta anos laborar toda a terra, apenas fundou um culto estreito e uma tradição de professores; enquanto que o outro, tão ingenuamente professor, e tão afastado quanto Descartes de toda a reforma real, preparou o movimento de ideias mais eficaz que já se viu desde a revolução cristã. É que mística nada é se a cortarmos do espírito. Auguste Comte, que conhecia Hegel pelo menos pela fama, perguntava: “O quer ele dizer com o seu Espírito?” Por uma volta que é bem Hegeliana, foi o materialismo histórico que respondeu.

A partir deste sumários, compreende-se talvez o suficiente o que é o direito, noção que só Hegel pôs no seu lugar, definindo-a como moralidade real. Antes dele, o direito  flutua entre a pura moralidade e a simples força. Do ponto de vista da moral individual, ou da moral pura, o direito é o correlativo do dever; o meu direito é o dever de outrem. Mas o direito permanece assim como o próprio dever, um ser de consciência teórica; com esta diferença que o dever se funda na consciência solitária, e parece nela poder viver; enquanto que o direito supõe a cidade dos fins, a qual não existe. É muito pouca realidade para o direito, coisa real e eficaz, formulada e agindo em toda a parte. Por outro lado, o direito fundado apenas sobre o útil e a necessidade não é mais do que força e ameaça, e é demasiado pouco. Ora, segundo Hegel, a liberdade abstracta nada faz, e a vontade não existe fora da acção. O espírito é objectivo quando a liberdade se põe em relação com o mundo exterior; e a actividade final da vontade consiste em realizar a sua noção, a liberdade, nesta esfera objectiva e exterior. “Esta realidade enquanto existência da livre vontade, é o direito. Consideradas relativamente à vontade subjectiva, as determinações do direito constituem os deveres e os costumes.” Assim, é pelo direito que o dever encontra realidade. Como se vê nos ofícios e nas funções, em que a ordem do direito nos dita tão energicamente os nossos deveres, de juiz, de pai, de médico, por oposição à consciência solitária, que se perde numa abstracta dialéctica dos deveres, e não pode nunca dela sair. É unicamente na esfera da vida social que o direito e o dever alcançam a sua verdade. Por exemplo, não é apenas um direito possuir a coisa como propriedade, é um dever;  doutra maneira dito, é um  dever existir como pessoa. O direito é portanto a moralidade tanto quanto chega à existência; e a esfera do direito não compreende somente o direito civil; ela envolve a moralidade, a política, e a história universal. Tal é o grande domínio que nós temos agora que explorar segundo a ordem.

A livre vontade deve primeiro dar-se a existência, e a primeira matéria desta existência é a coisa; a primeira forma da liberdade real deve pois ser concebida como propriedade; assim a propriedade não é uma forma acidental do direito; é o direito, porque é a liberdade existente; é o traço da acção, traço reconhecido como sinal do eu. A coisa então não é mais simplesmente coisa, ela é um momento da própria personalidade. A propriedade está numa coisa, e é por aí que a pessoa livre participa na existência. Mas é preciso também que a propriedade seja reconhecida. Não é só portanto o contrato a fundar explicitamente a propriedade. “A propriedade só é pela vontade duma outra pessoa.” Esta vontade acarreta outras, porque um contrato novo depende do antigo contrato, e toda a propriedade se estabelece  respeitando toda a propriedade. O simples reconhecimento desenvolve assim uma espécie de sociedade. “Eu possuo em virtude duma vontade comum.” Todavia, os contratos não formam logo um sistema. Simplesmente o homem confia em tal homem e em tal outro. Por exemplo, os Judeus perseguidos formavam entre eles uma sociedade secreta de comércio e de crédito, mantendo o governo e as leis num estado de indiferença, ou mesmo como objecto de desconfiança. Há qualquer coisa desse espírito em todo o homem;  e é querer fundar uma sociedade sobre o espírito, directamente e sem as mediações necessárias. Eis por que este primeiro momento é o momento do direito abstracto.

Antes de desenvolver a dialéctica do direito abstracto, vem a propósito notar que duas ideias importantes se encontram aqui no lugar, ideias que a história, depois de Hegel, iluminará e porá em acção; são as ideias conexas de trabalho e de valor. No trabalho está encerrada a noção duma sequência de acções, cada uma segundo os traços da precedente, o que mantém e renova a propriedade por novos signos; de que o campo cultivado e preparado é a imagem mais impressionante. Na noção de trabalho está contida também a relação dos trabalhos, que realiza a sociedade mercantil. E, se não se esquecer que a propriedade é reconhecida como obra da pessoa livre, não se procurará o valor somente na coisa; subir-se-á até ao trabalho, e ao valor dos valores, que é o espírito livre. As doutrinas económicas próprias do entendimento não podiam descobrir esta noção até às raízes; é que, explicando a sociedade apenas pela privação e pela necessidade, elas não sabem reunir o espírito à coisa, e perdendo o espírito, perdem o direito. Admirar-se-á aqui a fecundidade duma dialéctica que se move por todas as forças do homem, e que incorpora a alma pelo trabalho; mas digamos, para nos afastarmos duma ideia abstracta, o trabalho sobre a coisa. E esta condição do pensamento  define o homem dos novos tempos, pela unidade reencontrada da lógica e da acção. Esta ideias estão muito longe de ter chegado ao seu pleno desenvolvimento; elas são, pode-se dizê-lo, o texto único das reflexões eficazes no século de Hegel e neste. O Aristotelismo continua portanto a traçar o seu sulco, enquanto que o espírito Platónico se perde em utopias e constituições separadas. O que o entendimento exprime dizendo que a justiça ideal não basta, e que é preciso olhar também às carências, ao trabalho, enfim às necessidades inferiores. Mas, é dizer pouco; porque a justiça não se realiza senão passando ao objecto pelo trabalho; e esta dialéctica do direito é toda a justiça; digamos mais precisamente que é a passagem que é justiça, e que não há outra justiça. Comparando esta ideia aos factos deste mundo humano que nos rodeia, apreciaremos melhor a força desta metafísica do devir.

É preciso voltar. O direito abstracto move-se através das contradições; e, num sentido, é sempre a lógica que recomeça. Estamos aqui de novo na doutrina do ser, na esfera do sim e do não. Porque o direito abstracto recusa as relações, por exemplo o direito de terceiros, os precedentes, a jurisprudência, a lei, que formam o tecido do direito real, formam-se aparências do direito, ou antes porque esta expressão ultrapassa o presente momento dialéctico, forma-se em cada um a evidência do direito. Ou estou errado, ou tenho razão. Não se trata aqui do conflito entre o justo e o injusto, conflito que o direito abstracto resolve facilmente pela pena. Trata-se dum conflito entre o justo e o justo, quer dizer pretensões inconciliáveis entre pleiteantes de boa fé. É que o reconhecimento do direito de outrem é ainda abstracto. Sou eu que sou disso juiz. Não reconheci ainda a sociedade como a minha própria substância, como o espírito real. Eis porque o direito abstracto está continuamente em revolta e se nega a si mesmo. O movimento natural em cada um de nós é de se reportar ao árbitro pela certeza que se tem, e de negar o árbitro se ele não nos der razão. Tal é o estado ingénuo do direito. Apenas o procurador e o advogado reconhecem aqui as aparências do direito, todas verdadeiras como são as aparências, mas verdadeiras somente como momentos superados e conservados. Digamos que o contrato supõe um sistema dos contratos; assim um contrato não pode ser justo em si mesmo. Por muitas precauções que se tomem, o direito não  pode estar nele inteiro, e é a sequência do desenvolvimento que o mostrará. É pois deste começo abstracto do direito que renascem os processos e as paixões do pleiteante. Todavia, é apenas o primeiro ataque ao direito, e não existe aqui nenhuma falta.

A segunda negação do direito é uma violação dum outro género, é a fraude. Aqui eu não me deixo enganar por uma aparência; sou eu que avanço com uma aparência destinada a enganar os outros. Mas enfim, reconheço ainda o direito duma certa maneira, visto que produzo voluntariamente a aparência do direito. Aqui se desenha a nossa natureza média. Porque o pleiteante está muitas vezes de boa fé, mas não o está sempre inteiramente. Ele crê-se justificado a produzir aparências, quer dizer a pleitear, desde que o outro o possa também. Mas esta permissão que se dá o pleiteante só é razoável e justa por um sistema existente de todas as aparências possíveis; e isso supõe um direito orgânico. Aqui se encontra a verdade de toda a jurisprudência, demasiadas vezes e muito ligeiramente julgada como uma inútil salsada.

A terceira violação é o crime, e o crime é uma negação do próprio direito. Aqui eu não invoco mais o direito; já não procuro produzir a aparência do direito. E é isso que é o crime no crime. Do mesmo modo, o que é vingança na vingança, sequência natural do crime, é uma vontade que pune, uma vontade que quer restabelecer o direito. A vingança contém pois a noção da pena. E a noção da pena está assim muito mais próxima da vingança do que da precaução. Aqui ainda a pena natural, ou vingança, conduz, pelas aparências, as contradições, as consequências sem fim, à pena organizada, quer dizer, à sociedade propriamente dita, com as suas leis, as suas funções,  os seus poderes. A perfeição da pena encontra-se quando o criminoso confessa o facto, reconhece a intenção criminosa, e afirma até a lei do crime como a sua própria lei; porque ele deve então aceitar a pena como um efeito da sua própria vontade. Assim, a pena realiza a fé formal do crime; e o direito torna-se real pela violação suprimida. “O sentimento universal dos povos e dos indivíduos, relativamente ao crime, é e sempre foi que o crime merece o castigo, e que é preciso retribuir ao criminoso o que ele fez aos outros”; entendei, tratá-lo segundo a sua própria lei. Aqui aparece a fraqueza dessas doutrinas de bela aparência, e na realidade inumanas, segundo as quais a pena se justifica por uma necessidade de circunstância; mas reconhecer-se-á nelas também uma concepção da sociedade à qual falta o espírito; porque não é o espírito do sociólogo que é o espírito social. Substancialmente existe uma conexão segundo a qual “o crime, enquanto vontade que se anula a si mesma, encerra em si mesmo o seu próprio aniquilamento, o qual aparece como pena”. Não se trata portanto de suprimir o crime porque produziu um mal, mas antes de o suprimir porque violou o direito enquanto direito. Talvez se compreenda, por este exemplo, que a dialéctica trabalha agora no próprio objecto.

Estas análises estendem-se naturalmente ao direito real, porque é sempre o momento seguinte que esclarece o precedente. Mas restabeleçamos o direito abstracto, fundado somente sobre os contratos, sobre a arbitragem espontânea, sobre a vingança. Não pode acontecer que este direito abstracto não encerre um esboço dos poderes, das funções, das sanções; toda a imperfeição do direito se mostra aí, resgatada no entanto pela existência. É desse estado que a moral ressalta, e é por essa oposição que o direito se organiza. Notemos que de facto a moralidade é sempre uma negação do direito, como se vê em Antígona. E, o que é preciso compreender agora, é a insuficiência da moral pura, e o vazio em que necessariamente ela cai. É aqui que encontra o seu lugar a doutrina prática de Kant. Ela é suficientemente conhecida para que não insistamos. A oposição entre o dever e o bem acaba por ser a oposição entre a forma e o conteúdo, que é o direito e a lei social, eu reconheço-me livre em mim mesmo, e só esta liberdade me obriga; o essencial são, então, as minhas opiniões, as minhas intenções e os meus fins; o exterior é posto como indiferente. Ninguém é meu juiz. Só eu sou juiz. Mas este momento da moralidade pura é o momento da anarquia pura. O indivíduo apela para si, mas “o seu apelo exclusivamente a si mesmo é imediatamente oposto àquilo que ele quer ser, a saber, uma regra para um modo de agir racional, e tendo um valor universal e absoluto”.

Nesta posição extrema, a lei apaga-se diante da própria liberdade da vontade; é essa liberdade que é o bem; mas, porque o mal tem como o bem a sua origem na vontade, a vontade reduzida a ela só é tão má como boa. Há ambiguidade a todo o momento entre o dever puro e a simples satisfação de mim mesmo. E, sob um outro aspecto, o bem sendo vontade e o mal objecto, “tudo o que eu quero é bom; tudo o que eu faço é mau”. Este ponto extremo, próprio da adolescência, é o ponto da ironia, quer dizer da desproporção absoluta entre o ideal e o real. O exame de consciência encontra sempre que refazer; encontra sempre que suspeitar as paixões e a fantasia. Por outro lado, o objecto, a realidade, a existência, são postos como sem valor. Justiça pura, sempre irritada e má. Mas é o momento mesmo em que a natureza, pelo amor, vai fundar a família, e mudar profundamente a questão.

Compreende-se como se faz a passagem à moralidade social, que se desenvolve pela família, sociedade civil, Estado. Pela intercessão da família, o orgulhoso espírito anarquista é levado a reconhecer que a existência tem também os seus direitos, e a procurar a existência organizada pelo espírito, a sociedade, o espírito real, enfim. A experiência social imediata torna misantropo; a família, a cidade, o Estado, são mediações necessárias. Cada um sentirá aqui alguma coisa de profundamente verdadeiro. É preciso viver humanamente, ter família, ofício, função, ser respeitado, participar do espírito dum povo, nele verificar, confrontar e retemperar a moralidade pura; agir a fim de querer. Esta passagem é importante em qualquer doutrina moral. Porque permanecer na sua própria consciência e ocupar-se só absolutamente da sua própria salvação, é inumano. E, no oposto, divinizar a sociedade, definir como dever o que ela impõe, extinguir a reflexão interior, tudo isso é extinguir a moralidade interior; e, sem o contínuo controle do juízo moral, os resultados são inumanos também. É preciso pois passar à vida social sem se perder a si mesmo, sem perder o espírito. Eis por que as mediações importam; e pelo exemplo o momento da moralidade pura deve ser superado, mas conservado. Na verdade, toda a dialéctica se reúne nos momentos ulteriores; ou, para dizer ainda melhor, os nossos menores pensamentos percorrem de novo todos os momentos dialécticos, e só por aí são pensamentos. Porque o que é um pensamento, um pensamento sozinho, um pensamento que nada desata nem nada ata?

Que o amor, o casamento, a família, sejam reguladores dos nossos pensamentos adolescentes, e que essa situação nova nos intime a pensar em conjunto o direito e a moral, quer dizer a pensar mais real e mais verdadeiro, é o que ninguém negará. Mas, no sistema de Hegel, e pela própria marcha da sua dialéctica, compreende-se melhor por que o homem se liga, e a que é que se liga. Dum lado o espírito volta aqui à natureza e até nela recai, como para tomar pé, pelo fastio das ideias errantes e flutuantes. É claro que esta passagem dialéctica não é apenas lógica; é o homem natural que ama. Todavia, esta mudança, mesmo segundo a pura animalidade, não é estranha às oposições e às soluções da lógica. O animal que se reproduz testemunha só por isso duma imperfeição que ele sente no seu próprio ser, ou, como diz Hegel,  duma desproporção entre si e o seu género, entre o individual e o universal. Reconhecimento do semelhante no outro, oposição superada, novo nascimento,  em tudo isso a lógica pode reconhecer-se; mas essa dialéctica natural está envolvida por trevas profundas. Aqui, como noutros lugares, é o momento seguinte que esclarece o precedente. O mesmo drama se encontra na consciência do homem; porque o eu pensante pensa-se como universal e legislador; e diante do seu semelhante, diante do outro eu, não pode desconhecer esse outro pensante, seu igual,  mas não o quer reconhecer. A fenomenologia, como se viu, não resolve esta oposição a não ser pela sociedade, se se pode dizer sociedade, do senhor e do escravo, que se desenvolve pela força e pela astúcia, sem que o género humano nela seja realmente pensado. O pensamento adolescente move-se nesta procura, em que a contradição rebenta sempre entre a natureza que separa e o espírito que quereria unir. A este nível do direito abstracto, o direito não cessa de vigiar o direito. O amor exige uma outra união, e o amor humano reconhece que é a própria união. Donde essa decisiva passagem, em que o direito é superado e ao mesmo tempo fundado. Neste duplo reconhecimento, de natureza e de espírito, fica ainda qualquer coisa do combate, da dominação e da servidão; mas são momentos suprimidos e conservados. Insisto um pouco aqui para fazer entender que a dialéctica Hegeliana agarra a natureza humana e o jogo das paixões de muito mais perto do que se crê. É o bastante para que se compreenda que o amor humano não pode completar-se senão por um reconhecimento mais extenso e mais livre da comunidade humana. O casamento é um momento do direito, e o casamento é a verdade do amor. Este momento dialéctico, que tanto importa para assegurar a realidade dos pensamentos e a continuidade das acções, é apoiado de dois lados, pela sociedade, que o regula e o confirma, e pela natureza, que realiza a união na criança. Que a família se desenvolva em três momentos, o casamento, a educação, o bem de família, isso é muito fácil de compreender. Mas também estas análises deverão ser retomadas, e aplicadas à nossa experiência, se se quer que a sociologia assente os pés no chão.

A sociedade civil forma-se de famílias, pelo reconhecimento mútuo, pelos laços do ofício e do comércio, e pela defesa comum. E, por esta sociedade possuir uma unidade de facto, essa unidade não é ainda explicitamente um pensamento. A cidade não é ainda o Estado. Todavia procurar-se-ia em vão na história uma cidade de famílias de artesãos, de comerciantes, que não fosse de algum modo um Estado. É preciso pensar, aqui como em toda esta dialéctica, que o momento precedente só existe pelo seguinte. Na verdade, em todo o Estado, a sociedade civil, que é a sociedade dos interesses, reforma-se sempre em dupla oposição, diante da família, que repele o direito, embora não possa passar sem ele, e diante do Estado, que, à maneira duma família pensada, exige que o direito estrito seja ultrapassado. A sociedade civil tenta em vão viver segundo o direito abstracto, quer dizer segundo a solidariedade dos interesses; e a análise política segundo o entendimento tenta sempre aqui algum sistema atómico segundo a relação exterior. O Estado é de facto  outra coisa. A unidade não é nele sofrida, mas voluntária. O reconhecimento nele é de confiança, de obediência e de amor, como na família; mas ela está aí como pensada. O indivíduo nele reconhece a condição objectiva, dada, do seu pensamento universal. É por isso que do seu pensamento mais livre ele adere ao Estado. É assim que o direito abstracto é superado, e ao mesmo tempo salvo. “O princípio dos Estados modernos contém essa força e essa profundidade extraordinária que deixa ao princípio da subjectividade a independência da sua existência e dos seus interesses pessoais e particulares, ao mesmo tempo que reconduz esse princípio à sua unidade substancial.” Estas ideias são desenvolvidas em Hegel com uma amplidão e uma precisão admiráveis. O que nos interessa, neste resumo, é a marcha dialéctica; porque a ideia, “esse deus real”, trabalha presentemente no próprio objecto. Ora, qual é, na sociedade civil, a alma envolvida que desenha já os contornos do Estado? Duas instituições são aí pensadas, a saber a polícia e a corporação. Sob estas duas relações é claro que o indivíduo não pode continuar a viver de comércio e de troca, sem nunca o saber; pelo contrário, ele pensa aqui o bem comum como o seu próprio bem. Sob este duplo aspecto, é a ordem que se mostra, e, correlativamente,  uma adesão de espírito que está muito acima do contrato, em que o ganho e a perda estão compensados.

Assim se faz o Estado, por um concerto de pensamentos. Mas é preciso compreender que o concerto de pensamentos se faz também pelo Estado. Porque não se trata aqui de pensamentos lógicos sempre abstractos, nem de pensamentos fenomenológicos, sempre errantes, mas de pensamentos reais, que se formam  através dos monumentos, das instituições, das cerimónias e das funções do Estado. A forma e o conteúdo fazem apenas um. Por exemplo, não se deve perguntar quem faz as leis. Ninguém faz as leis. Elas não resultam duma meditação abstracta. As leis são costumes pensados; elas formam os costumes, e  são liberdades. A maneira como as leis são feitas e alteradas, a partir do concurso da jurisprudência e dos usos, dá uma ideia desse pensamento real, desse Espírito objecto que termina as divagações subjectivas. Semelhantemente ninguém faz as Constituições. Toda a constituição saiu do espírito dum povo por um desenvolvimento interno; ou, para dizer melhor, toda a constituição é o espírito dum povo. Esta individualidade do Estado, e esta certeza que ele tem de si mesmo traduz-se numa pessoa real, que é o monarca, qualquer que seja o nome que se lhe dê. E não há nada de menos arbitrário do que a decisão do verdadeiro rei.

As relações ente os Estados fazem a história do mundo. A força tem nelas uma grande parte. Mas aquele que compreendeu o que é o espírito dum povo sabe ler a história do mundo; é a história do Espírito Imanente que se reconhece a si mesmo, que se opõe a si mesmo, que se liberta superando, numa dialéctica sem fim. Os povos por sua vez dominam, são dominados, desaparecem; mas o espírito continua. Não se pode negar, por exemplo, que o espírito grego e o espírito judaico, tão fortemente opostos, não se achem ao mesmo tempo ultrapassados e salvos, um e o outro pela revolução cristã. E este exemplo, mesmo sumariamente referido, faz compreender que os povos são apenas os servidores do Espírito, que se afirma sobre as suas ruínas. Espírito absoluto, sob a tripla forma da Arte, da Religião e da Filosofia.

Mas antes de retraçar essa História absoluta, que é a verdade da história, vem a propósito determinar ainda um pouco mais de perto este espírito histórico, que é o espírito hegeliano, vivo e actuante. A história do mundo é “o movimento pelo qual a substância espiritual entra na posse das sua liberdade”. A lei interna da ideia, quer dizer a dialéctica, é o que conduz o mundo dos homens. Mas é preciso não compreender com isso que as ideias abstractas sejam o que determina as constituições, as revoluções e todos os outros acontecimentos políticos. “O espírito não somente plana sobre a história como plana sobre as águas, mas  delas faz  a trama e é  o seu principal motor.” Não pode haver aqui descuido, pois que toda a filosofia de Hegel quer mostrar que o devir real do espírito não é lógica mas história. Isso significa dizer que o espírito jurídico está antes no juiz do que no teórico do direito, que o espírito político está antes no rei do que no historiador, que o espírito corporativo está antes no artesão fiel ao seu ofício do que no orador que anuncia o futuro das corporações, enfim que há mais pensamento real na obra de arte do que na crítica. Estas observações definem a história, tanto quanto restabelecem o laço entre o espírito  e a natureza. E compreende-se que história não possa nunca ser deduzida da lógica, e que a dialéctica interna, pela qual a história  se deduz ela própria no seu dever, difere profundamente da dialéctica externa ou abstracta. O que quer dizer? Que o espírito real na história age por pensamentos estreitamente ligados aos trabalhos e às funções, como também às mais estritas necessidades. O espírito nada pode senão do seu lugar. O espírito apenas pode tanto quanto  é orgânico. E estas notas aproximam-nos do que alguns Hegelianos que se crêem fiéis, chamam a dialéctica materialista. Nós compreendemos bem agora que a razão vem ao homem por vias humildes e desviadas.  Não há talvez “astúcia da Razão” a não ser aos olhos do pensamento abstracto; e, a partir do momento em que somos natureza na natureza, é natural que os pensamentos mais bem ligados ao objecto sejam os mais eficazes.


Alain
(tradução de José Ames)

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