segunda-feira, 26 de março de 2012

A LEI SOCIOLÓGICA DOS TRÊS ESTADOS




A ideia de que as ciências mais avançadas, que são naturalmente as mais abstractas e as mais fáceis, são também apenas um encaminhamento para as outras, e que, assim, a última e a mais complexa é também a mais eminente, esta ideia é colocada enfim sob a sua verdadeira luz por este comentário decisivo de que todas as ciências são factos sociológicos. Só há factos sociológicos, uma vez que no menor teorema o homem está  inteiro, e toda a sociedade, e todas as pressões do mundo. Mas as ciências abstractas, como a palavra o diz tão bem, separam e isolam o seu objecto, sem o que elas se perderiam nesse pensamento prematuro de que geometria é o fruto duma época, duma civilização, dum regime de trabalho, e  mesmo dum clima.  O que conduziria a esta conclusão, frequentemente fraca  por precipitação,  que o homem só tem os pensamentos que pode ter pela sua situação histórica, pelos trabalhos dos seus predecessores, por um certo espírito reinante que depende do comércio, das fortunas, das guerras, dos lazeres, dos arquivos, e da linguagem. É o que é, no entanto, verdadeiro, mas verdadeiro no seu lugar, e sob a condição dum desenvolvimento progressivo que faz com que o espírito seja capaz de julgar isso sem cair num absurdo fatalismo e no cepticismo negador. Aqui a tirania da sociologia, não menos temível do que a tirania das ideias abstractas, é abolida pela força mesma que toma a última das ciências e a mais alta, naquele que conhece bastante profundamente todas as outras. E este justo equilíbrio entre todos os graus do saber é o espírito de conjunto, em que a história esclarece a razão pelo facto da razão ter em primeiro lugar corrigido a história. Feita esta reserva, entreguemo-nos audazmente à ideia sociológica.

É suficientemente claro que toda a ciência depende da linguagem comum, dos livros, dos arquivos, do ensino, dos institutos, dos instrumentos de observação e de medida; mas compreende-se também que estas condições não podem ser separadas dum estado da legislação, duma organização política, duma continuidade social, dum progresso da indústria, dum regime do comércio e dos trabalhos.  Os arquivos dos Chineses e dos Egípcios dependiam dum certo estado da religião, das artes, e dos costumes. E isso é verdadeiro de toda a época e de todos os países, embora muitas vezes, por uma ingratidão que se explica, o pensador esqueça esses contínuos e humildes serviços fora dos quais ele nada poderia. A linguagem comum exprime e conserva um pensamento comum que faz de princípio e sempre o apoio das especulações mais ousadas. O vocabulário e a sintaxe são os arquivos essenciais. Mas quantos outros monumentos sustentam o espírito! O indivíduo, seja ele Descartes, Leibniz, ou Newton, não faz mais do que continuar um lento progresso dos conhecimentos, em que milhares de predecessores, conhecidos ou desconhecidos, têm uma parte. E o próprio conhecimento não seria o que é sem uma marcha geral das sociedades que rompe as castas, muda o regime familiar, assegura os direitos e a segurança, sempre em relação com as descobertas técnicas. Comte pergunta por que Hiparco não descobriu as leis de Kepler. Não se pode compreender isso pela inteligência separada. Mas Hiparco não tinha cronómetro suficiente; um tal instrumento supõe o operário e o engenheiro. A imprensa, como se sabe, não oferecia grandes dificuldades técnicas; mas esta invenção, cujos efeitos não têm necessidade de ser assinalados, supunha ela própria um certo  despertar crítico, portanto, condições de política, de religião, de comércio, de guerra e de paz. Uma vez que é preciso encurtar, digamos que é a sociedade que pensa. Mas digamos melhor.  Uma vez que o progresso dos conhecimentos sobreviveu a tantas sociedades, digamos que é a humanidade que pensa. Assim, no desenvolvimento sucessivo das diversas ciências segundo a sua complexidade crescente, haverá outra coisa que não uma lei de lógica; e trata-se de reencontrar a lei sociológica desse progresso capital, o que logo descobre relações completamente desconhecidas até aí entre o inferior e o superior, contrariamente a essa ideia anárquica de que cada ciência é absolutamente autónoma, por si mesma suficiente, e ocupa o lugar da sabedoria para aquele que a sabe. As raízes da ciência estão escondidas, ao ponto de fazer repudiar, como que por sistema, a nossa longa infância e a longa infância da nossa espécie.

Consideremos agora em que é que as noções científicas participam nessas ideias e nesses sentimentos, tão poderosos quanto confusos, que conduziram por muito tempo as sociedades, e aos quais nenhum pensador se pode vangloriar de ser estranho. Trata-se de preconceitos, de costumes, de superstições, de loucas crenças, que quereriam separar do espírito, mas que é pelo contrário preciso tomar como antecipações naturais, formando um estado nascente de toda a ciência. E decerto parece de princípio absurdo que os trabalhos da astronomia nunca tenham contado com as paixões do príncipe, e até que eles lhe devam alguma coisa. Mas a astrologia logo nos esclarece sobre isso. Porque, por um lado, o estudo dos astros não teria sido suficientemente  nutrido pelo puro amor da verdade, sentimento tão fraco quanto é eminente. Mas por outro lado, o esforço de predizer a partir duma sumária e quimérica ideia da relação entre os astros e os nossos destinos, conduzia naturalmente a observações seguidas e mesmo a cálculos, da mesma maneira que a observação ritual dos pássaros e o culto dos animais sagrados devia dirigir a atenção mais escrupulosa para as menores diferenças de forma, que não se teriam notado, nem sobretudo conservado na memória, sem os poderosos motivos da política e da religião. Uma vez mais é preciso dizer que a passagem insensível da superstição à ciência é apenas observável na história da nossa espécie. O indivíduo dura demasiado pouco para notar em si mesmo essas grandes mudanças.

Esta história das ciências não é igualmente conhecida, sob este aspecto, em todas as suas partes. Pode-se prever que a ciência mais abstracta, que chegou antes das outras ao estado positivo, não traga as marcas da antiga superstição donde  saiu. Todavia, no tempo de Pitágoras e de Platão, os matemáticos não tinham ainda rejeitado a tradição dos números sagrados, o que permite supor um tempo em que as afinidades e propriedades dos números sagrados foram observadas como milagres. E aqui ainda era inevitável que a superstição ligada a certos números levasse a conhecê-los melhor. Vemos também que no tempo de Aristóteles, as propriedades dos astros, as constâncias do seu retorno, e até o círculo, figura perfeita, única que devia convir ao seu movimento, eram ainda explicados pela natureza incorruptível e divina que se supunha nos corpos celestes. Este género de teologia comprometia-se nos caminhos da ciência positiva. Todavia, esta relação teria alguma coisa de fortuito se se tivesse limitado à consideração das ciências que foram de há muito libertas de teologia. Mas, se pelo contrário, vamos às ciências mais difíceis, estamos em medida de constatar como um facto do que chamaremos o estado teológico de toda a pesquisa. O uso que a biologia fez por tanto tempo das causas finais é teológico, se se pensar bem nisso; teológico enquanto  se explica o arranjo dos órgãos e a fixidez das espécies pelos desígnios dum criador. Na sequência, e tanto quanto ela utiliza um misterioso instinto, ou um arquitecto imanente aos tecidos, ou uma força vital definida pelos efeitos que se trata de explicar, sem que a experiência aí encontre algo que agarrar, dir-se-á justamente da biologia que  é metafísica; e enfim, a partir da recusa de todas estas causas, e da única pesquisa das relações primeiro físico-químicas entre o vivo e o meio, se definirá a biologia positiva. E, por exemplo, podemos agora discernir em Lamarck qualquer coisa de metafísico que já não está em Darwin. É assim que uma ciência se liberta das suas fraldas. Mas é importante perceber também que os começos da atenção estiveram naturalmente, aqui como noutros lados, ligados ao culto, e que a própria ideia duma lei depende duma crença prática numa sabedoria escondida e invariável, mesmo no  mais grosseiro fetichismo.  E, como o culto dos astros levou a  observar o seu retorno, também os auspícios foram naturalmente observadores de aves, e conservadores de formas e de arquivos. E não se deixará de notar que as sociedades animais não têm qualquer arquivo nem culto, o que leva a considerar a religião e mesmo a arte plástica como o começo da ciência organizada. E esta mesma ideia conduz a definir a sociologia pela comemoração e a história sagrada. Donde o nosso autor tirou esta advertência, ainda mal compreendida, que as pretensas sociedades animais não são realmente sociedades.

Chegando enfim à própria sociologia, constatamos facilmente que, conformemente à série das seis ciências, ela é de todas as ciências aquela que conservou mais tempo as marcas dum primeiro estado, que é teológico.  E, coisa digna de nota, por isto que o estado social é o que regula  e ao mesmo tempo retarda e assegura toda a pesquisa, o estado teológico da sociologia, ou digamos a política, é a sequência dum estado teocrático da própria sociedade. A Política tirada das Santas Escrituras é um monumento que testemunha aqui pelo seu título mesmo, como também o Discurso sobre a história universal, do mesmo autor, é uma admirável prova do socorro que é trazido por hipóteses puramente teológicas a uma primeira tentativa de observação dos factos sociais e a uma primeira visão das suas leis. E a série dos três estados, de princípio esclarecida pela biologia, torna-se para o sociólogo um instrumento de investigação. Porque ele devia pesquisar, na sequência da história, uma mudança da teologia em metafísica, que teria regulado a partir de abstracções sem corpo, ao mesmo tempo um estado de sociedade e as pesquisas teóricas que com ele se relacionam. E a Revolução Francesa encontrou-se assim definida, a partir das antecipações metafísicas da Igreja Reformada, a partir duma doutrina dos direitos absolutos, naturalmente junta à ideia oca do Ser Supremo. Assim, como a sabedoria divina, em Descartes, quer ditar as leis do movimento, o que conduz a colocar à natureza questões precisas, assim a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade devem ser tomadas como deuses abstractos, ou se se quiser, como decretos absolutos, segundo os quais, e porque se pretendia submeter-lhes a experiência, se produziram as retumbantes lições de política positiva que presentemente nos instruem. E, na ciência mais complexa, do mesmo modo que nas outras, se acabará por depor as hipóteses metafísicas auxiliares que na verdade são apenas referências, como foi o círculo para os astros. E sem dúvida nós estamos no expediente dos epiciclos, que traz, em política como na astronomia, uma marca de religião. Sem estas simplificações audazes, tão evidentemente antropocêntricas, não se concebe como o investigador poderia reconhecer-se nos seus erros, e discernir na observação o que é dele e o que é da coisa. Em conclusão, o nosso filósofo gaba-se, e não sem razão, de ter sido o primeiro a tentar libertar a sociologia dos seus andaimes metafísicos, e de assim ter feito aparecer os primeiros delineamentos da sociologia  positiva. Quer o queiramos quer não,  desenvolvemos essa rica herança.

Ousemos agora traçar o imenso quadro do progresso humano. O estado teológico, subdividido ele próprio em Fetichismo, Politeísmo, Monoteísmo, define ao mesmo tempo o mais antigo dos regimes sociais, a Teocracia inicial, e os mais antigos dos regimes intelectuais, onde se discernirá um avanço bem notável, desde os sistemas fechados do fetichismo até à vasta concepção duma Providência imutável nos seus desígnios, passando por essa classificação das forças naturais que o politeísmo greco-romano realizou por um transporte da ordem política para a ordem cósmica. E estas observações têm por efeito abolir a estéril oposição, tantas vezes comentada, entre a superstição e a ciência, a superstição sendo apenas, a ver bem, e de início nos melhores espíritos, um primeiro inventário, cada vez mais sistemático, das necessidades exteriores às quais estamos submetidos. A passagem da astrolatria à astronomia marca esse longo reino dos adivinhos e dos sacerdotes. O regime das castas corresponde-lhe naturalmente, pela predominância, apenas sofrida, das relações biológicas, que a sociologia descobrirá em seguida como formando o primeiro assento de toda a sociedade. Esse regime, que cobre absolutamente o domínio da antiga história, está já em decomposição, nos tempos da Grécia e de Roma, pela predominância do poder militar sobre o antigo poder sacerdotal, e pelo desenvolvimento, sobretudo em Roma, do regime militar conquistador. Resumindo este imenso assunto, retiram-se-lhe as provas, que se encontrarão em Comte, com as marcas duma espantosa erudição e também duma arte admirável de adivinhar, que os trabalhos ulteriores confirmaram, e nos quais se poderiam ainda inspirar, se a ingratidão fosse melhor reconhecida como o principal defeito do espírito.

Por falta de explicações suficientes, que as amplas lições de Comte fornecerão, aliás, ao leitor, bastará admirar como o desenvolvimento do monoteísmo, primeiro efeito do espírito metafísico já liberto, corresponde a um regime militar defensivo, que desenvolve os costumes correspondentes, e uma tentativa de organização de todo o Ocidente, sob um poder espiritual desenhado por antecipação, e enfraquecido somente por dogmas inverificáveis próprios dum regime de discussão crítica. Discernir-se-á então, nessa pretensa noite da Idade Média, um despertar do espírito e um maravilhoso esforço de cultura, directamente oposto à tirania militar, e ainda mais ao regime das castas, a Igreja católica tendo-se libertado da hereditariedade biológica, e tendo aberto a sua hierarquia a todos os méritos, como ela ensinava indistintamente a todos o que sabia de melhor, que infelizmente não podia, por falta de provas positivas, ser ensinado senão através duma servidão íntima do espírito. Esta reabilitação da Idade Média, mesmo sob o aspecto do progresso espiritual, é uma das descobertas de Comte; e é também uma das partes da sua doutrina que o entregou às suspeitas dos partidos opostos, uns não podendo admitir que se julgasse a religião como um facto humano, ao mesmo título que a arte e a indústria; os outros não podendo compreender que se relevasse a superstição até ao nível dos mais altos e mais fecundos pensamentos da nossa espécie. Estamos mais maduros, espero-o, por esse grande juízo e por essa humana reconciliação.

O espírito metafísico, essencialmente crítico e negador,  não cessou nunca de ser o fermento do progresso intelectual, mesmo nas idades recuadas do politeísmo e da magia fetichista. Encontrar-se-á disso a maior expressão na famosa Ética de Spinoza; mas, nesta mesma obra, se aperceberá também os limites, por uma espécie de delírio de abstracção, que submete o real à dedução pura; e a própria política desse autor, já revolucionária por um admirável avanço, permite compreender como o individualismo negativo, e a reivindicação dos direitos, se acordam com o que se poderia chamar o direito divino do filósofo, derivado evidentemente do direito divino dos reis, por uma enérgica antecipação do reino do entendimento. Ao mesmo tempo, pois, que este espírito, menos rigoroso então e mais popular, arruína, no decurso do século negador, os restos do edifício teocrático, nota-se que as ciências se desenvolvem segundo o seu nível, do estado metafísico e mesmo teológico, até ao estado positivo, ao qual chegam irrevogavelmente a matemática e a astronomia, arrastando já no seu movimento a física e até a química. Todavia a física devia conservar ainda por muito tempo os traços do regime metafísico, pelas suas hipóteses inverificáveis, e no fundo puramente verbais, de que o éter é um perfeito exemplo.

O regime positivo mal se instala nos nossos costumes políticos. Comte tinha esperado, conforme o impulso que comunicou a tantos discípulos, que a passagem da metafísica revolucionária à verdadeira física social poderia ser muito encurtada. Na realidade, a nossa época mostra tacteamentos e aparentes retornos, em que se discernirá, no entanto, um descrédito das construções socialistas, evidentemente metafísicas, e uma investigação política fundada primeiramente sobre as necessidades económicas, quer dizer, biológicas, o que é um sadio método. Julgar-se-á utilmente da sociologia mais recente perguntando-se se ela está suficientemente de acordo com o espírito de conjunto, tão fácil de apreciar em Comte, mesmo segundo este simples resumo. A grande lei dos três estados não foi decerto suficientemente apreciada como ideia directriz, e de justiça, a respeito das populações atrasadas, cujos pensamentos são muitas vezes desconhecidos segundo um preconceito escolar, ou, para chamá-lo pelo verdadeiro nome, metafísico.  Mas sem decidir do que é ainda tão disputado, pode-se, a partir do modelo das ciências mais avançadas, caracterizar o bastante o estado positivo. Primeiro, por esse espírito de conjunto, que liga ao presente mesmo o passado mais longínquo; e, mais precisamente, pela organização da experiência, à qual são a partir de agora submetidas, pelo menos por um consentimento abstracto, todas as nossas concepções, em qualquer ordem que seja; e, enfim, por uma recusa de procurar a partir de agora as causas, que sempre trazem a marca metafísica e mesmo teológica, e pela única investigação das leis, ou relações constantes, entre todos os fenómenos, segundo os modelos matemáticos, astronómicos e físicos, e que disso dão a partir de agora  uma ideia suficientemente precisa, desde que nos separemos completamente da tirania dedutiva, que tende ainda a reduzir demasiado o concreto ao abstracto. Mas sobretudo, em correlação com esta severa disciplina, que não pode ser mais recusada, o espírito positivo, tão bem nomeado por Comte, é construtor e não somente negador, e propõe-se, segundo o exemplo da física, imprimir à realidade social variações, pequenas mas suficientes, em aplicação da máxima de Bacon, de ordenar à natureza obedecendo-lhe, e segundo uma enérgica negação da ideia fatalista, que é metafísica e, no fundo, teológica.


Alain
(Tradução de José Ames)

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