A
ideia de que as ciências mais avançadas, que são naturalmente as mais
abstractas e as mais fáceis, são também apenas um encaminhamento para as
outras, e que, assim, a última e a mais complexa é também a mais eminente, esta
ideia é colocada enfim sob a sua verdadeira luz por este comentário decisivo de
que todas as ciências são factos sociológicos. Só há factos sociológicos, uma
vez que no menor teorema o homem está
inteiro, e toda a sociedade, e todas as pressões do mundo. Mas as
ciências abstractas, como a palavra o diz tão bem, separam e isolam o seu
objecto, sem o que elas se perderiam nesse pensamento prematuro de que
geometria é o fruto duma época, duma civilização, dum regime de trabalho, e mesmo dum clima. O que conduziria a esta conclusão, frequentemente
fraca por precipitação, que o homem só tem os pensamentos que pode
ter pela sua situação histórica, pelos trabalhos dos seus predecessores, por um
certo espírito reinante que depende do comércio, das fortunas, das guerras, dos
lazeres, dos arquivos, e da linguagem. É o que é, no entanto, verdadeiro, mas
verdadeiro no seu lugar, e sob a condição dum desenvolvimento progressivo que
faz com que o espírito seja capaz de julgar isso sem cair num absurdo fatalismo
e no cepticismo negador. Aqui a tirania da sociologia, não menos temível do que
a tirania das ideias abstractas, é abolida pela força mesma que toma a última
das ciências e a mais alta, naquele que conhece bastante profundamente todas as
outras. E este justo equilíbrio entre todos os graus do saber é o espírito de
conjunto, em que a história esclarece a razão pelo facto da razão ter em
primeiro lugar corrigido a história. Feita esta reserva, entreguemo-nos
audazmente à ideia sociológica.
É
suficientemente claro que toda a ciência depende da linguagem comum, dos
livros, dos arquivos, do ensino, dos institutos, dos instrumentos de observação
e de medida; mas compreende-se também que estas condições não podem ser
separadas dum estado da legislação, duma organização política, duma continuidade
social, dum progresso da indústria, dum regime do comércio e dos
trabalhos. Os arquivos dos Chineses e
dos Egípcios dependiam dum certo estado da religião, das artes, e dos costumes.
E isso é verdadeiro de toda a época e de todos os países, embora muitas vezes,
por uma ingratidão que se explica, o pensador esqueça esses contínuos e
humildes serviços fora dos quais ele nada poderia. A linguagem comum exprime e
conserva um pensamento comum que faz de princípio e sempre o apoio das
especulações mais ousadas. O vocabulário e a sintaxe são os arquivos
essenciais. Mas quantos outros monumentos sustentam o espírito! O indivíduo,
seja ele Descartes, Leibniz, ou Newton, não faz mais do que continuar um lento
progresso dos conhecimentos, em que milhares de predecessores, conhecidos ou
desconhecidos, têm uma parte. E o próprio conhecimento não seria o que é sem
uma marcha geral das sociedades que rompe as castas, muda o regime familiar,
assegura os direitos e a segurança, sempre em relação com as descobertas técnicas.
Comte pergunta por que Hiparco não descobriu as leis de Kepler. Não se pode
compreender isso pela inteligência separada. Mas Hiparco não tinha cronómetro
suficiente; um tal instrumento supõe o operário e o engenheiro. A imprensa,
como se sabe, não oferecia grandes dificuldades técnicas; mas esta invenção,
cujos efeitos não têm necessidade de ser assinalados, supunha ela própria um
certo despertar crítico, portanto,
condições de política, de religião, de comércio, de guerra e de paz. Uma vez
que é preciso encurtar, digamos que é a sociedade que pensa. Mas digamos
melhor. Uma vez que o progresso dos
conhecimentos sobreviveu a tantas sociedades, digamos que é a humanidade que
pensa. Assim, no desenvolvimento sucessivo das diversas ciências segundo a sua complexidade
crescente, haverá outra coisa que não uma lei de lógica; e trata-se de
reencontrar a lei sociológica desse progresso capital, o que logo descobre
relações completamente desconhecidas até aí entre o inferior e o superior,
contrariamente a essa ideia anárquica de que cada ciência é absolutamente
autónoma, por si mesma suficiente, e ocupa o lugar da sabedoria para aquele que
a sabe. As raízes da ciência estão escondidas, ao ponto de fazer repudiar, como
que por sistema, a nossa longa infância e a longa infância da nossa espécie.
Consideremos
agora em que é que as noções científicas participam nessas ideias e nesses
sentimentos, tão poderosos quanto confusos, que conduziram por muito tempo as
sociedades, e aos quais nenhum pensador se pode vangloriar de ser estranho. Trata-se
de preconceitos, de costumes, de superstições, de loucas crenças, que quereriam
separar do espírito, mas que é pelo contrário preciso tomar como antecipações
naturais, formando um estado nascente de toda a ciência. E decerto parece de
princípio absurdo que os trabalhos da astronomia nunca tenham contado com as
paixões do príncipe, e até que eles lhe devam alguma coisa. Mas a astrologia
logo nos esclarece sobre isso. Porque, por um lado, o estudo dos astros não
teria sido suficientemente nutrido pelo
puro amor da verdade, sentimento tão fraco quanto é eminente. Mas por outro
lado, o esforço de predizer a partir duma sumária e quimérica ideia da relação
entre os astros e os nossos destinos, conduzia naturalmente a observações
seguidas e mesmo a cálculos, da mesma maneira que a observação ritual dos
pássaros e o culto dos animais sagrados devia dirigir a atenção mais
escrupulosa para as menores diferenças de forma, que não se teriam notado, nem
sobretudo conservado na memória, sem os poderosos motivos da política e da
religião. Uma vez mais é preciso dizer que a passagem insensível da superstição
à ciência é apenas observável na história da nossa espécie. O indivíduo dura
demasiado pouco para notar em si mesmo essas grandes mudanças.
Esta
história das ciências não é igualmente conhecida, sob este aspecto, em todas as
suas partes. Pode-se prever que a ciência mais abstracta, que chegou antes das
outras ao estado positivo, não traga as marcas da antiga superstição donde saiu. Todavia, no tempo de Pitágoras e de
Platão, os matemáticos não tinham ainda rejeitado a tradição dos números sagrados,
o que permite supor um tempo em que as afinidades e propriedades dos números
sagrados foram observadas como milagres. E aqui ainda era inevitável que a
superstição ligada a certos números levasse a conhecê-los melhor. Vemos também
que no tempo de Aristóteles, as propriedades dos astros, as constâncias do seu
retorno, e até o círculo, figura perfeita, única que devia convir ao seu
movimento, eram ainda explicados pela natureza incorruptível e divina que se
supunha nos corpos celestes. Este género de teologia comprometia-se nos
caminhos da ciência positiva. Todavia, esta relação teria alguma coisa de
fortuito se se tivesse limitado à consideração das ciências que foram de há
muito libertas de teologia. Mas, se pelo contrário, vamos às ciências mais
difíceis, estamos em medida de constatar como um facto do que chamaremos o
estado teológico de toda a pesquisa. O uso que a biologia fez por tanto tempo
das causas finais é teológico, se se pensar bem nisso; teológico enquanto se explica o arranjo dos órgãos e a fixidez
das espécies pelos desígnios dum criador. Na sequência, e tanto quanto ela utiliza
um misterioso instinto, ou um arquitecto imanente aos tecidos, ou uma força
vital definida pelos efeitos que se trata de explicar, sem que a experiência aí
encontre algo que agarrar, dir-se-á justamente da biologia que é metafísica; e enfim, a partir da recusa de
todas estas causas, e da única pesquisa das relações primeiro físico-químicas
entre o vivo e o meio, se definirá a biologia positiva. E, por exemplo, podemos
agora discernir em Lamarck qualquer coisa de metafísico que já não está em
Darwin. É assim que uma ciência se liberta das suas fraldas. Mas é importante
perceber também que os começos da atenção estiveram naturalmente, aqui como
noutros lados, ligados ao culto, e que a própria ideia duma lei depende duma
crença prática numa sabedoria escondida e invariável, mesmo no mais grosseiro fetichismo. E, como o culto dos astros levou a observar o seu retorno, também os auspícios
foram naturalmente observadores de aves, e conservadores de formas e de
arquivos. E não se deixará de notar que as sociedades animais não têm qualquer
arquivo nem culto, o que leva a considerar a religião e mesmo a arte plástica
como o começo da ciência organizada. E esta mesma ideia conduz a definir a
sociologia pela comemoração e a história sagrada. Donde o nosso autor tirou
esta advertência, ainda mal compreendida, que as pretensas sociedades animais
não são realmente sociedades.
Chegando
enfim à própria sociologia, constatamos facilmente que, conformemente à série
das seis ciências, ela é de todas as ciências aquela que conservou mais tempo
as marcas dum primeiro estado, que é teológico.
E, coisa digna de nota, por isto que o estado social é o que regula e ao mesmo tempo retarda e assegura toda a
pesquisa, o estado teológico da sociologia, ou digamos a política, é a
sequência dum estado teocrático da própria sociedade. A Política tirada das
Santas Escrituras é um monumento que testemunha aqui pelo seu título mesmo,
como também o Discurso sobre a história universal, do mesmo autor, é uma
admirável prova do socorro que é trazido por hipóteses puramente teológicas a
uma primeira tentativa de observação dos factos sociais e a uma primeira visão
das suas leis. E a série dos três estados, de princípio esclarecida pela
biologia, torna-se para o sociólogo um instrumento de investigação. Porque ele
devia pesquisar, na sequência da história, uma mudança da teologia em metafísica,
que teria regulado a partir de abstracções sem corpo, ao mesmo tempo um estado
de sociedade e as pesquisas teóricas que com ele se relacionam. E a Revolução
Francesa encontrou-se assim definida, a partir das antecipações metafísicas da
Igreja Reformada, a partir duma doutrina dos direitos absolutos, naturalmente
junta à ideia oca do Ser Supremo. Assim, como a sabedoria divina, em Descartes,
quer ditar as leis do movimento, o que conduz a colocar à natureza questões
precisas, assim a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade devem ser tomadas
como deuses abstractos, ou se se quiser, como decretos absolutos, segundo os
quais, e porque se pretendia submeter-lhes a experiência, se produziram as
retumbantes lições de política positiva que presentemente nos instruem. E, na
ciência mais complexa, do mesmo modo que nas outras, se acabará por depor as
hipóteses metafísicas auxiliares que na verdade são apenas referências, como
foi o círculo para os astros. E sem dúvida nós estamos no expediente dos
epiciclos, que traz, em política como na astronomia, uma marca de religião. Sem
estas simplificações audazes, tão evidentemente antropocêntricas, não se
concebe como o investigador poderia reconhecer-se nos seus erros, e discernir
na observação o que é dele e o que é da coisa. Em conclusão, o nosso filósofo
gaba-se, e não sem razão, de ter sido o primeiro a tentar libertar a sociologia
dos seus andaimes metafísicos, e de assim ter feito aparecer os primeiros
delineamentos da sociologia positiva.
Quer o queiramos quer não, desenvolvemos
essa rica herança.
Ousemos
agora traçar o imenso quadro do progresso humano. O estado teológico,
subdividido ele próprio em Fetichismo, Politeísmo, Monoteísmo, define ao mesmo
tempo o mais antigo dos regimes sociais, a Teocracia inicial, e os mais antigos
dos regimes intelectuais, onde se discernirá um avanço bem notável, desde os
sistemas fechados do fetichismo até à vasta concepção duma Providência imutável
nos seus desígnios, passando por essa classificação das forças naturais que o
politeísmo greco-romano realizou por um transporte da ordem política para a
ordem cósmica. E estas observações têm por efeito abolir a estéril oposição,
tantas vezes comentada, entre a superstição e a ciência, a superstição sendo
apenas, a ver bem, e de início nos melhores espíritos, um primeiro inventário,
cada vez mais sistemático, das necessidades exteriores às quais estamos
submetidos. A passagem da astrolatria à astronomia marca esse longo reino dos
adivinhos e dos sacerdotes. O regime das castas corresponde-lhe naturalmente,
pela predominância, apenas sofrida, das relações biológicas, que a sociologia
descobrirá em seguida como formando o primeiro assento de toda a sociedade.
Esse regime, que cobre absolutamente o domínio da antiga história, está já em
decomposição, nos tempos da Grécia e de Roma, pela predominância do poder
militar sobre o antigo poder sacerdotal, e pelo desenvolvimento, sobretudo em
Roma, do regime militar conquistador. Resumindo este imenso assunto, retiram-se-lhe
as provas, que se encontrarão em Comte, com as marcas duma espantosa erudição e
também duma arte admirável de adivinhar, que os trabalhos ulteriores
confirmaram, e nos quais se poderiam ainda inspirar, se a ingratidão fosse melhor
reconhecida como o principal defeito do espírito.
Por
falta de explicações suficientes, que as amplas lições de Comte fornecerão,
aliás, ao leitor, bastará admirar como o desenvolvimento do monoteísmo,
primeiro efeito do espírito metafísico já liberto, corresponde a um regime
militar defensivo, que desenvolve os costumes correspondentes, e uma tentativa
de organização de todo o Ocidente, sob um poder espiritual desenhado por
antecipação, e enfraquecido somente por dogmas inverificáveis próprios dum
regime de discussão crítica. Discernir-se-á então, nessa pretensa noite da
Idade Média, um despertar do espírito e um maravilhoso esforço de cultura,
directamente oposto à tirania militar, e ainda mais ao regime das castas, a
Igreja católica tendo-se libertado da hereditariedade biológica, e tendo aberto
a sua hierarquia a todos os méritos, como ela ensinava indistintamente a todos
o que sabia de melhor, que infelizmente não podia, por falta de provas
positivas, ser ensinado senão através duma servidão íntima do espírito. Esta reabilitação
da Idade Média, mesmo sob o aspecto do progresso espiritual, é uma das
descobertas de Comte; e é também uma das partes da sua doutrina que o entregou
às suspeitas dos partidos opostos, uns não podendo admitir que se julgasse a
religião como um facto humano, ao mesmo título que a arte e a indústria; os
outros não podendo compreender que se relevasse a superstição até ao nível dos
mais altos e mais fecundos pensamentos da nossa espécie. Estamos mais maduros,
espero-o, por esse grande juízo e por essa humana reconciliação.
O
espírito metafísico, essencialmente crítico e negador, não cessou nunca de ser o fermento do
progresso intelectual, mesmo nas idades recuadas do politeísmo e da magia
fetichista. Encontrar-se-á disso a maior expressão na famosa Ética de
Spinoza; mas, nesta mesma obra, se aperceberá também os limites, por uma
espécie de delírio de abstracção, que submete o real à dedução pura; e a
própria política desse autor, já revolucionária por um admirável avanço,
permite compreender como o individualismo negativo, e a reivindicação dos
direitos, se acordam com o que se poderia chamar o direito divino do filósofo,
derivado evidentemente do direito divino dos reis, por uma enérgica antecipação
do reino do entendimento. Ao mesmo tempo, pois, que este espírito, menos
rigoroso então e mais popular, arruína, no decurso do século negador, os restos
do edifício teocrático, nota-se que as ciências se desenvolvem segundo o seu
nível, do estado metafísico e mesmo teológico, até ao estado positivo, ao qual
chegam irrevogavelmente a matemática e a astronomia, arrastando já no seu
movimento a física e até a química. Todavia a física devia conservar ainda por
muito tempo os traços do regime metafísico, pelas suas hipóteses
inverificáveis, e no fundo puramente verbais, de que o éter é um perfeito
exemplo.
O
regime positivo mal se instala nos nossos costumes políticos. Comte tinha
esperado, conforme o impulso que comunicou a tantos discípulos, que a passagem
da metafísica revolucionária à verdadeira física social poderia ser muito
encurtada. Na realidade, a nossa época mostra tacteamentos e aparentes
retornos, em que se discernirá, no entanto, um descrédito das construções
socialistas, evidentemente metafísicas, e uma investigação política fundada
primeiramente sobre as necessidades económicas, quer dizer, biológicas, o que é
um sadio método. Julgar-se-á utilmente da sociologia mais recente perguntando-se
se ela está suficientemente de acordo com o espírito de conjunto, tão fácil de
apreciar em Comte, mesmo segundo este simples resumo. A grande lei dos três
estados não foi decerto suficientemente apreciada como ideia directriz, e de
justiça, a respeito das populações atrasadas, cujos pensamentos são muitas
vezes desconhecidos segundo um preconceito escolar, ou, para chamá-lo pelo
verdadeiro nome, metafísico. Mas sem
decidir do que é ainda tão disputado, pode-se, a partir do modelo das ciências
mais avançadas, caracterizar o bastante o estado positivo. Primeiro, por esse
espírito de conjunto, que liga ao presente mesmo o passado mais longínquo; e,
mais precisamente, pela organização da experiência, à qual são a partir de agora
submetidas, pelo menos por um consentimento abstracto, todas as nossas
concepções, em qualquer ordem que seja; e, enfim, por uma recusa de procurar a
partir de agora as causas, que sempre trazem a marca metafísica e mesmo
teológica, e pela única investigação das leis, ou relações constantes, entre
todos os fenómenos, segundo os modelos matemáticos, astronómicos e físicos, e
que disso dão a partir de agora uma
ideia suficientemente precisa, desde que nos separemos completamente da tirania
dedutiva, que tende ainda a reduzir demasiado o concreto ao abstracto. Mas
sobretudo, em correlação com esta severa disciplina, que não pode ser mais
recusada, o espírito positivo, tão bem nomeado por Comte, é construtor e não
somente negador, e propõe-se, segundo o exemplo da física, imprimir à realidade
social variações, pequenas mas suficientes, em aplicação da máxima de Bacon,
de ordenar à natureza obedecendo-lhe, e segundo uma enérgica negação da ideia
fatalista, que é metafísica e, no fundo, teológica.
Alain
(Tradução de José Ames)
Sem comentários:
Enviar um comentário