quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

ESTUDO SOBRE DESCARTES






“Mesmo os mais excelentes espíritos terão necessidade de muito tempo e de atenção…”

             (Princípios.)







Contaram-me que Pierre Laffite, num dos seus cursos, sempre inspirados, como se sabe, na pura doutrina de Comte, erguia nas suas duas mãos um livro quadrado, dizendo: “Eis a grande obra dos tempos modernos.” Eram as Meditações de Descartes. Ora o discípulo, correndo a esse precioso livro, teria ficado surpreendido de só encontrar nele teologia no primeiro aspecto, e metafísica no melhor, género de meditação da qual Comte se abstinha. Stendhal diz nalgum lado que Descartes aparece primeiro, no seu Método, como um mestre da razão, mas duas páginas adiante, raciocina como um monge. Com este exemplo, e segundo a ideia temerária de que os momentos superados não são conservados, o leitor de Descartes  quererá talvez distinguir o ilustre geómetra, que subsiste todo, do aventuroso físico, desde há muito corrigido, e ainda mais do teólogo, que depois de tantos outros, pôs em provas aquilo em que acreditava; enfim, encontrará ramos mortos e esta árvore ainda vigorosa. Esta maneira de ler, muito e demasiado fácil, privá-lo-á também do mais poderoso mestre do pensamento que já se viu. Porque a parte da evidência está aberta, é verdade, sobre profundezas; mas isso não é um facto da história; em não importa que homem as ideias claras fazem enigma e escândalo desde que ele com elas se contente. E é também dizer muito pouco que Descartes abre a via; porque, seja nas suas audácias de físico, onde é o erro que se vê primeiro, seja nas suas audácias de teólogo, bem mais escondidas, ele vai pelo caminho e muito à nossa frente. Mas não anjo; homem e carregado de matéria como nós, como nós impedido pelas paixões, e governando juntamente corpo e alma, conforme a situação humana. Em resumo, nenhum homem é mais inteiro que Descartes, nenhum se deixa menos dividir, nenhum pensou mais perto de si. Com o que devemos seguir o culto humano, que tão bem enterra os mortos. Enquanto tentamos acordar aqui, e negar acolá, e enfim explicar pelo peso da história porque  é que ele talvez não disse  tudo  como era preciso, ele, pelas leis não escritas da glória, subsiste todo.

Já disse muitas vezes que o que nos falta para compreender Descartes, é a inteligência; quem não experimentou isso cruelmente, devemos lamentá-lo, e envergonhá-lo por essa geometria recebida. Todavia este reparo não nos conduziria muito longe; porque se nós não temos, pela graça, o génio de Descartes, que podemos fazer? Ele próprio corrigiu de antemão, como se verá,  este juízo de modéstia, pela mais forte lição de coragem que já se ouviu, pois que ele quis chamar de generosidade essa força em nós que faz com que julguemos bem. Sumariamente, digamos que este Príncipe do Entendimento, medindo o entendimento mesmo, recusou procurar a nossa perfeição por aí e Deus por aí, rebaixando audazmente o nosso poder de compreender diante do atributo do querer. De modo nenhum pedante, e completamente gentil-homem, é a sua maneira própria, como se vai perceber, de recusar ser difícil. Severo entre todos por aí, ele recusa-nos em cada linha essa desculpa dos preguiçosos que gostariam de dizer que a tolice não é voluntária. Assim este mestre não pede respeito, mas atenção. 


Alain
(Tradução de José Ames)

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