segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A LÓGICA




O pensamento não é um pequeno acidente em qualquer pessoa. Quase todos os nossos bens e os nossos males vêm de pensamentos. Conhecemos suficientemente bem uma sequência de pensamentos que faz a história da Filosofia; quanto abstracta e aérea ao lado dos pensamentos reais de Esopo, de César, de Napoleão, dum banqueiro, dum comerciante, dum juiz, dum polícia, dum pedreiro! Todavia, aqui aparece claramente que  não é um bom método começar por estes últimos pensamentos, decerto os mais eficazes, mas os mais impenetráveis que podem ser. Pelo contrário, a sequência dos sistemas filosóficos oferece-nos um espectáculo abstracto e transparente. Que são as doutrinas? Teses não diferentes mas opostas, e das quais se diria que cada uma delas define a outra. O ser dos Eleatas e o não-ser de Heráclito são o exemplo mais flagrante; cada um diz não ao outro, e ambos têm uma espécie de razão. O árbitro gostaria, segundo a palavra de Platão, de fazer como as crianças e escolher os dois. É da mesma maneira, mas menos abstractamente, que o átomo se opõe à mónada; segundo o átomo, cada ser exclui todos os outros, e encontra-se face  a todos os outros numa relação puramente exterior; segundo a mónada, cada ser contém todos os outros e pensa-os todos juntos segundo uma unidade sem partes. Há verdade nos dois; mas é preciso no entanto escolher, e não se pode escolher. O espectador de boa fé começa por se dizer que se encontra metido numa imensa aventura. Só existe a matéria; bom; mas escavada até às forças e até ao atomismo, a matéria é um pensamento, e mesmo muito abstracto. O mundo está fora de mim; mas o mundo está em mim. Tudo é objectivo, eu o quero, e detenho-me nos seres particulares: mas, por isso mesmo, tudo é subjectivo.

Estes pensamentos são livrescos; mas a moral pressiona-nos. Toda a virtude é de intenção, certamente isso prova-se; mas toda a virtude é também de sociedade.  Só podereis saltar dum extremo ao outro. E cada um dos dois termos esclarece o outro. A ideia de moralidade não é uma ideia no ar, correctamente desenhada na ponta da pena; é sempre, pelo contrário, uma revolta do espírito inteiro contra a ordem do direito. Mas prestemos atenção a estes movimentos de todo o espírito em relação a si próprio. A ideia de moralidade não é a ideia dum litigante descontente; é um drama no interior do espírito. Donde cada um chega a uma moral Kantiana, de si para si, porque não há outra porta. Mas não se pode ficar aí; o apoio falta. Volta-se inevitavelmente à ordem exterior, que tem esta vantagem de existir. Volta-se aí, mas não o mesmo; já não se fia nela  imediatamente; ela é julgada e como que trespassada por razões opostas. Tal é a história íntima de muitos homens razoáveis, que, depois de terem afirmado, e a seguir negado, a moral pura, a reencontram na obediência; e é o que Hegel chama de momentos superados e conservados. Eis como o espírito real se faz uma filosofia real. As paixões seriam um outro exemplo; porque é preciso de facto ultrapassá-las; mas quem não vê que o melhor dos nossos pensamentos  está em paixões salvas?

Estas  ideias chegam por agora. Foi suficientemente lembrado ao leitor que a contradição não é um pequeno acidente nos nossos pensamentos, mas que, pelo contrário, nós só pensamos por contradições ultrapassadas. E, por esta outra observação, de que as teses opostas são sempre abstractas em relação à solução, que é mais concreta, estamos já quase de pés assentes nas abstracções  da lógica Hegeliana, porque os mesmos movimentos nela se encontram. O átomo é apenas um momento, e uma espécie de remédio para as contradições que se encontram na ideia ingénua do ser exterior e que se basta a si mesmo. E não se pode ficar no átomo; é preciso que se interprete como uma definição e como uma relação; donde somos lançados no vazio da essência, tecido de teoremas sem qualquer suporte. Será preciso depois disso que o pensamento volte a si mesmo, total e indivisível como é, porque as relações não se pensam elas próprias, e os seus termos são ao mesmo tempo distintos e unidos. Unidade mãe de todos estes pensamentos, donde estes pensamentos devem sair como dum  germe, tal é a Noção, e logo a Ideia, que nos lançará finalmente na natureza. A lógica nega-se então pelo seu próprio movimento. A partir destas sumárias explicações, encontrar-se-á já um grande sentido nesta construção em marcha que nos quer arrastar do ser à essência e para além da essência, ou, como nós diríamos, da física ingénua à física matemática, e enfim ao espírito vivo que soube atravessar este deserto.

A lógica da ordem, que é a lógica, exige que comecemos pelo princípio, quer dizer pelo que é o mais abstracto e o mais simples. Os Eleatas especularam sobre o ser, prevenindo-se de nada pensarem sobre isso para além de que ele é, o que faz um sistema fechado e um sistema vazio. O sofista, em face deles, divertia-se em provar que é o não-ser que é. Aproximemo-nos mais. O ser absoluto é exactamente o ser ao qual não convém qualquer atributo, nem o repouso, nem o movimento, nem a grandeza, nem a forma. Este ser não pode ser nada; ele é o não-ser. Pode-se andar à volta deste círculo de discurso; mas é claro que é preciso sair dele, e que pensar é sair dele. Que ideia nos permitirá pensar o conjunto destes  contrários? Não caminhar, como fazia Diógenes; porque essa solução, que é certamente uma solução, está muito longe do problema. Nós procuramos a ideia mais próxima, ainda abstracta, mas composta  pelas duas outras, ou antes reunindo-as num tecido já mais real, e salvando-as por aí. Esta ideia encontra-se na história como um produto; é o devir de Heráclito. Mas não o entendais como um simples possível, como se dissésseis: “Não há somente o ser, há também o devir.” Teríeis perdido o vosso primeiro dia de aprendiz. Não, não. Em vez de pensar o ser em face do não-ser, e de vos deixardes lançar de um para o outro, agora formais uma ideia positiva, e mais concreta dum grau, que implica que o ser não cessa de passar ao não-ser, e que o não-ser não cessa de passar ao ser. Somente não se trata já de um jogo sofístico; trata-se duma ideia comum; de uma ideia que toda a gente tem. E, pela impossibilidade de que o contrário deixe de passar imediatamente ao seu contrário, vós pensais fortemente o devir. No devir conservais ser e não-ser, e idênticos, mas justamente como eles o podem ser; quer dizer que o que é cessa logo de ser. O devir não espera; e o que não é começa logo a ser. O devir não espera; o devir não pára nunca; tal é a solução real, e eis que partimos.

Se compreendestes, nesta passagem tão simples, que uma porta se acaba de fechar atrás de vós, sois já um pouco Hegeliano. Decerto haveria esperança para a preguiça se pudésseis pensar que o devir algumas vezes pára. Mas não o podeis de modo nenhum, se pensardes atentamente que o ser passa ao não-ser. Assim, não há mais terra firme atrás de vós; não haverá jamais, e vós sabei-lo. Neste ponto da atenção experimentastes esse movimento basculante primeiro no lugar, e depois essa partida irresistível, essa passagem dirigida e irrevogável que nos precipita para sempre no oceano Heraclitiano. Antecipo; não estamos ainda na natureza; encontrar-se-á na lógica mais de um compromisso, mais de uma tentativa para estabilizar os nossos pensamentos. Todavia este primeiro momento encerra já o espírito deste imenso sistema; e creio ser útil reflectir por muito tempo nisso.

Lançar-se na existência movente do alto dos cimos áridos da abstracção, é o movimento de todos. Tudo contribui para isso, o universo, a família, o ofício, a função. O homem é um funcionário que disse adeus a pensamentos. Mas esse movimento de espírito, assim considerado como psicológico, fisiológico, social, histórico, é o enigma, é o ilegível. A lógica da ordem quer uma queda simplificada e uma trajectória calculável. Nós lançamo-nos duma ideia a uma ideia; e este movimento define a Lógica, que é a primeira parte do sistema. E decerto não é de pouca importância descobrir que a metafísica, quer dizer a especulação sobre as ideias eternas, é uma metafísica do devir. A razão da mudança encontra-se pois no próprio pensamento, o que leva a supor, em contrapartida,  que a própria mudança do mundo poderia muito bem ser o efeito duma dialéctica escondida. Percebe-se então, como dum lugar elevado, que o pensamento é homogéneo à experiência, quer dizer que a experiência é manejável pelo pensamento. Ou doutra maneira, o pensamento com as suas formas invariáveis, como em Kant, só é capaz de se representar o real; não entra nele; não está aí em sua casa. De modo que o que se mostra aqui são as primeiras articulações duma doutrina da acção. Isso dito, não esqueçamos que nos é preciso percorrer a lógica, ou seja a sequência dos movimentos e oscilações interiores próprios do pensamento separado, a fim de ir demonstrando a insuficiência da lógica, isto é a necessidade duma filosofia da natureza.

Como não posso expor em detalhe todas essas passagens, o que me levaria a escrever muito mais páginas do que o próprio Hegel, volto um pouco ainda a esse movimento dialéctico inicial, a respeito do qual existem tantos equívocos. Porque é verdade que Hegel edificou um Panlogismo (para falar calão); mas isso quer dizer simplesmente isto, é que o mesmo movimento que esclareceu a insuficiência da lógica é o mesmo que nos conduzirá à contemplação da natureza na sua variedade, depois à acção, por um regresso do espírito vivo. Não há no mundo, tal é o postulado Hegeliano, senão reviravoltas do espírito sobre si mesmo, pela impossibilidade de jamais  permanecer num pensamento. Agora, concluir que essas reviravoltas ou movimentos de todo o espírito se parecem com aquilo que nós chamamos raciocínios lógicos, quer dizer, tautológicos, é um mal-entendido grosseiro. A lógica de Hegel é a verdadeira lógica, isto é, o pensamento formal, ou separado, mas não pode permanecer tal e que vai até à sua própria negação, descobrindo, por esse mesmo movimento, o segredo da natureza e o segredo da acção. É a lógica real, a que deporta imediatamente o  verdadeiro pensador, o pensador que não se contenta em andar em círculo. Assim, podemos bem prever que a mola real desta lógica será completamente diferente da mola fraca às voltas na sua gaiola, como se vê no Parménides de Platão.  Ora, a força da lógica, é que não se pode ir e vir assim; e é certamente o que Platão nos quer fazer compreender. Pensar o um imóvel, o ser imóvel, o ser um, e sempre voltar aí, ou, ao contrário, pensar a multidão, a mudança inapreensível, o ser que não é, e voltando sempre, é como uma recusa de pensar. Lembrai-vos de que a natureza nos espera, e a sociedade, e a moral, e a religião. Há uma desproporção evidente aqui entre as nossas ferramentas intelectuais e o trabalho que temos de fazer. É assim que  somos expulsos desse pensamento; mas não se trata de fugir. Parménides dizia como um desafio: “O ser é e o não-ser não é, tu não podes sair desse pensamento.” O próprio do espírito vivo é sair. Mas como? Encontrando o pensamento que vem a seguir; aqui é o devir. Falando do Parménides de Platão, eu misturava ainda há pouco ao ser e ao não-ser o um e o múltiplo; e é bem assim que se pensa quando somente nos queremos evadir; mas é uma falta contra a lógica; é preciso começar pelo puro começo, o qual nos faz passar ao devir, um pouco menos abstracto, ainda muito abstracto. O um e o múltiplo terão o seu lugar também. O leitor poderá, desde este começo, comparar Hegel com o nosso Hamelin, e compreender já que este trabalho, conduza-se ele segundo uma ordem ou outra, é sempre o mesmo trabalho; trata-se de ultrapassar os jogos da abstracção, e o meio é esgotá-los, o que é deixá-los atrás de si para sempre, como uma infância. E não direi que existe apenas uma ordem; é que eu não sei nada sobre isso; como a ordem da linha recta ao ângulo, ao triângulo, ao círculo, aos polígonos, nada diz que seja absolutamente a melhor até ao pormenor; porque há juízo e não somente raciocínio nesta sequência; e é aqui sem dúvida que era preciso dizer que se o espírito fosse conduzido em tais séries por uma espécie de necessidade mecânica, o espírito já não seria espírito. Este pensamento, que é de Lagneau, projecta vivos clarões; aqui, neste ponto de dificuldade, eu esclareço-me como posso. Lucien Herr, que era um Hegeliano nato, disse-me um dia que a passagem, em Hegel, era sempre de sentimento. Aí está o que é difícil de compreender; mas pelo menos o presente exemplo é claro entre todos. Não, a primeira oposição do ser e do não-ser não contém o devir; se o contivesse, nós apenas desenvolveríamos uma lógica tautológica. Pensar o devir falando da primeira oposição, é descobrir o termo seguinte segundo a lógica da ordem. E a dialéctica de Hegel é assim uma contínua invenção, cuja regra é que ela dá conta, pela complicação progressiva, da Ciência, da Natureza, e da Humanidade como elas são, tais como elas são vistas, e cuja regra estrita, em cada  passagem, é formar, a partir duma impossibilidade aparente, as ideias tais quais cada um as tem. Deduzir é portanto aqui, como em toda a parte, uma palavra ambígua e perigosa; como se vê nas ciências demonstrativas, em que a dedução não se faz por silogismos, mas por uma construção toda inventada do termo mais próximo a seguir àquele que se compreendeu. A aventura, porque é uma, é a obra do juízo e releva do juízo.

Depois desta advertência permito-me procurar uma passagem abreviada que me conduza à essência através do ser; porque tal é a marcha de todo o espírito em trabalho qualquer que seja o seu objecto; e é bom, para a própria clareza, que eu dê aqui grandes passos. Pelo devir, nós estamos na experiência, mas a mais ingénua que se possa conceber. O mundo de Heráclito, o alguma coisa, considerado como suficiente, é a qualidade. Uma coisa é branca, pesada, húmida; é tomada assim que ela devém.  E tais exemplos mostram imediatamente que a qualidade tomada em si se nega a si mesma. “Uma coisa é o que ela é no seu limite e pelo seu limite” (Omnis determinatio est negatio). O aprendiz pode esclarecer-se facilmente nesta marcha abstracta, redizendo-se a si mesmo que o azul não é tal senão em relação a outras cores; o que não é logo evidente, mas sê-lo-á se se pensar noutras qualidades como pesado, quente, electrizado, que realmente não têm sentido a não ser pelas diferenças; porque um corpo não pode ser dito electrizado senão pela relação a um outro. E quem seguir esta ideia, de exemplo em exemplo, verá aparecer o deserto da essência, e um mundo tecido de relações: porque pode-se repetir que a qualidade é sentida imediatamente, e sem nenhuma comparação, por exemplo tal azul, não se pode pensar esse azul fora do grau e da medida; assim é a qualidade mesma que nos conduz à quantidade. Que se me perdoe franquear aqui vários escalões dum único movimento. A minha intenção é fazer compreender que este caminho é aquele que todo o espírito percorre, porém, sem saber o suficiente de quais são as abstracções que deixa atrás de si.

É assim que a passagem da qualidade à quantidade se encontrará feita sem que nos demos conta. É por isso que é preciso voltar. No domínio da qualidade, o um não é o outro, o um recusa o outro; mas também o um  tem necessidade do outro. Desta dupla relação, atractiva e repulsiva, entre o um e o outro um, cada um suficiente e insuficiente, resulta o número, e o próprio do número é  ultrapassar-se a si mesmo. “Grandeza, diz Hegel, ser variável, mas que apesar da sua variabilidade, permanece sempre o mesmo.” Notar-se-á como se é prontamente conduzido a este invariável devir, de que a sequência dos números oferece o exemplo mais simples. A matemática seria então a representação perfeita do devir; todo o espírito deve passar por aí. Tal é a pura essência; mas muitos gostariam de pensar a unidade e a multiplicidade como coisas. O atomismo encontra-se colocado entre qualidade e quantidade como num foco de contradições. Deve-se chegar a ele, mas é preciso superá-lo. O átomo marca uma hesitação entre a coisa que não pode ser uma coisa, e a ideia que não se quer reconhecer nessa coisa. A verdade do átomo é a quantidade, e a quantidade desenvolve-se através do número, do grau e da medida, Encontrareis, no próprio autor, amplos e lúcidos desenvolvimentos sobre estas difíceis questões. Mas não devo perder de vista o conjunto.

Quantidade, é a qualidade suprimida. Notareis em Hamelin o caminho inverso. Da relação, que está no começo de tudo, nasce a quantidade; e, pela insuficiência da quantidade, que é exterior a si mesma,  abstracta, sem conteúdo, nasce a qualidade, unidade mais concreta. Não se trata de escolher; isto não são dogmas. Vê-se bem que Hamelin vai, como o seu mestre Renouvier, até  um monadismo, por ter tomado a qualidade como um refúgio depois da abstracta quantidade. Passar da quantidade à qualidade, é voltar a si e afastar-se do mundo: é tomar a consciência como supremo concreto; tal é o movimento Hameliniano, que é o idealismo. O movimento Hegeliano dirige-se pelo contrário ao objecto, ou melhor faz-se todo no objecto, como o primeiro termo o exige. O ser não é mais o ser do eu do que o ser das coisas, e a qualidade ingenuamente pensada, é a qualidade dos objectos; do mesmo modo, o átomo é primeiro tomado como objecto; e é tomada como objecto que a essência será insuficiente e oca; o que exigirá uma natureza. O eu, nestes trâmites, não aparece a si mesmo; a consciência de si supõe outras condições, fisiológicas e políticas. É a partir do conjunto que é preciso julgar, e Hegel parece-me mais perto do que Hamelin de representar a marcha comum do espírito; porque, de facto, o atomismo e a matemática universal não são primeiros pensamentos. Eles supõem antes deles o que se pode chamar a sofística do ser, e a qualidade superada. Este movimento é de toda a ciência. E prevê-se que Hegel vá primeiro ao objecto e à verdade do objecto por uma via tantas vezes seguida. O eu perde-se primeiro neste materialismo da quantidade, abstracção que se ignora, e só se reencontrará numa outra relação à natureza, que fará nascer o eu concreto e universal ao mesmo tempo. Por isso, e por oposição,  compreende-se que não haverá Filosofia da Natureza em Hamelin; e isso merece grande atenção. O superior sustentado pelo inferior e salvando-se daí por real civilização, é toda a Filosofia do Espírito de Hegel. Limito-me agora a esta observação, que o leitor não deixará de continuar.

Pela quantidade, passamos à essência; e eis o progresso em resumo: “ No ser tudo é imediato; na essência tudo é relativo.” A essência, é o que nós chamamos ciência, ou representação do Universo por números, distâncias, movimento, força, energia. Que uma tal ciência deixe escapar o ser real, que não explique o vivo, e ainda menos o pensante, já se o mostrou mil vezes. Mas é refutar em vão. A essência é um momento do pensamento, um momento abstracto pelo qual é preciso passar, sem o que não se pode superá-lo. O arco íris não é mais do que uma lei ou uma composição de leis; a chuva, na mesma. Estas abstracções não são no entanto nem arco-íris, nem chuva. Tal é o deserto da essência. É o real sem nada de real.

Mas onde está o progresso a partir do ser? Nisto que, pela elaboração da quantidade, a identidade pura e a negação estão agora juntas. O mais e o menos substituíram o sim e o não. Sim e não, ao mesmo tempo que se supõem, excluem-se; mais e menos supõem-se, e são sempre pensados em conjunto. A oposição é realizada. “A via para o leste é ao mesmo tempo a via para o oeste.” O positivo é negativo do negativo, como o negativo é negativo do positivo. As ideias enlaçam-se.  O que era apenas abstracto e idealidade pura na quantidade quer  ser  agora o estofo do mundo. Mas, porque é a relação que existe, e de alguma maneira a relatividade em si, compreende-se esta contradição que está na essência e que leva a dizer que ela só aparece, e que é só fenómeno. A existência assim representada é apenas uma casca, e o termo correlativo é a coisa em si, incognoscível pela sua natureza. Tal é a posição de Kant. E porque, a partir desta mesma posição, a coisa em si não explica de modo nenhum o fenómeno, do mesmo modo que o conhecimento do fenómeno por mais avançado que se queira não nos aproxima da coisa em si, eis que a ciência do ser se nega a ela mesma, e que, como diz Hegel, o fundamento ou razão de ser se reduz ao próprio fenómeno. Porque a atracção, por exemplo, acaba por dizer como é o sistema solar. “ O que sai da razão de ser, é ela própria, e é nisso que reside o formalismo da razão de ser.

Todo o homem que se instrui passa do ser à essência, e ao extremo da essência, que é o fenómeno. Eu quero explicá-lo por um único exemplo, centro ilustre de disputas, é o movimento. O movimento não é; o movimento passa continuamente do estar aqui ao já não estar aqui; reconhece-se a lógica do ser, e a impotência do sim e do não. Mas continuemos. O movimento não é uma qualidade que pertença a um ser; não é inerente. Determina-se em quantidade; uma distância aumentou, a outra diminuiu. O movimento não existe em si; pelo contrário, determina-se pelo exterior, e é todo exterior. O movimento é relativo. Bom. Mas então é só uma ideia, ou uma representação; é apenas essência, quer dizer representação calculada e construída, e, como se diz, teoria duma coisa. Só os ingénuos acreditam que o nosso mecanismo universal é realmente o mundo. Da realidade somos então remetidos para a idealidade; mas o que é a idealidade sozinha? Lagneau dizia: “Se só há ideias, já não há ideias.” Assim a essência é necessariamente pensada como representando uma existência, que no entanto ela não pode alcançar. O que exprime Hegel dizendo que a essência é por si mesmo aparência. Não aparência imediata, como seria um fantasma, mas aparência que exige e contém o seu contrário, a coisa em si. Tal é o fenómeno. Poder-se-ia fazer as mesmas observações sobre o espaço, que, como o movimento, está fora de si mesmo e é pura relação. Admirar-nos-emos mais de encontrar numa qualidade como o calor a mesma dialéctica; no entanto, se disserdes que um corpo está quente, deveis pensar também que ele está frio, como Platão já o sabia dizer. O grau fixa-nos; mas passamos então à quantidade. É preciso que eu deixe o leitor prosseguir estas análises que são sem fim. Talvez se veja o bastante o que é a passagem à essência, não para Hegel somente, mas em todo o espírito. O que quer que pretendam dizer os nossos preguiçosos historiadores, não se trata aqui de julgar Hegel, mas de julgar os nossos próprios pensamentos. A essência é o domínio próprio em que os homens de entendimento se elevam prontamente pela matemática, e sobre o qual pretendem ficar. Estas ideias sobre o mundo são falsas? São verdadeiras?  Elas são falsas se ficarmos por elas; são verdadeiras como passagem, verdadeiras a título de momentos suprimidos e conservados. No juízo dos antigos atomistas, é a essência que existe; mas como eles não reflectem sobre isso, e ignoram o seu próprio pensamento, debatem-se com as contradições, as relações, as correlações, como o movimento, o vazio, o cheio; debatem-se com elas como se fossem coisas; até que, pela reflexão de que a coisa em si mesma nos permanece perfeitamente desconhecida, eles compreendem que a essência é apenas fenómeno. Por este movimento de reflexão, o vazio da essência desenvolve-se, se se pode assim dizer, e torna-se explícito, e isso aproxima-nos do conhecimento do espírito. Hegel diz bem: “O fenómeno vence o simples ser.”

A dialéctica da essência é muito bela de seguir, através de Possibilidade, Realidade, Necessidade, depois pelos três termos, que os Kantianos conhecem bem, que são Substância, Causalidade, Acção Recíproca. É bem a lógica transcendental, mas em movimento, o que vai projectá-la para fora dela mesma, como a lógica do sim e do não se achou lançada para fora de si mesma. Por exemplo, nós pensamos por substância, como químicos, ou por causas, como físicos, ou por acção recíproca, como fazem os astrónomos.  Só que, enquanto que Kant justapõe, Hegel supera. Pela substância, tudo seria imutável; assim, somos remetidos para pensar a mudança pela causa; e a causa passando ao efeito, sem o que não seria causa, reencontramos a fuga de todas as coisas. Mas este desenvolvimento linear não representa a realidade. É preciso manter a causa pelas condições e ligar todo o devir a si mesmo, o que num sentido reconduz à substância, quer dizer ao todo como condição das partes. O terceiro princípio é assim a verdade dos dois outros. Kant tinha visto que o terceiro termo reúne os dois primeiros, mas aos olhos de Hegel esta descrição imóvel é sem verdade. A verdade está na passagem. O facto é que  todo o homem, diante dum envenenamento ou duma inundação, pensa primeiro a substância, arsénico ou água, depois a ligação de causa a efeito, decomposição ou demolição; mas é preciso que ele consiga pensar as correlações, quer dizer a acção recíproca de todas as coisas, porque o arsénico tanto é veneno, como remédio, e a chuva não é absolutamente causa da inundação, mas também os ventos, as marés, e até os trabalhos dos homens. Por estes exemplos quero dar ao leitor o desejo de seguir toda esta dialéctica, que me parece sem falta. Resta preparar a passagem próxima, que é importante e difícil, e ao mesmo tempo dar alguma ideia da obscuridade Hegeliana, e também do juízo Hegeliano, que não tem equivalente.

A relação é o estofo do fenómeno. Quando se diz que o fenómeno aparece, exprime-se esse desenvolvimento para o  outro, para a condição, para o exterior, que se destina sempre a salvar a unidade e a totalidade do mundo fenomenal. Mas aqui oferece-se o jogo sem fim das oposições entre forma e conteúdo, entre exterior e interior. Porque invencivelmente tudo é forma no conhecimento fenomenal, e tudo nele é exterior. Mas não se pode impedir de se procurar nele um conteúdo. Eis a contradição; a energia é apenas quantidade constante, a matéria é só peso ou massa; tudo se resolve em relações; e, ao nível em que estamos, estas oposições não têm fim. E, segundo Hegel, esta exigência dum conteúdo exprime-se pela força, a força dos físicos, que quer ser substância e não o pode ser. A força é qualquer coisa de mais interior do que o movimento; ela é como que o interior do movimento; pelo menos quereria sê-lo; todavia, olhando mais de perto, ela dissolve-se em relações. A força de gravitação não está nem no corpo que cai, nem na terra, está entre os dois, depende dos dois. Assim flutuamos entre duas concepções: a força é diferente das suas manifestações; a força não é mais do que a sua manifestação. É claro que o pensamento, ou antes a acção pensada, seria aqui requerida para reunir matéria e forma; e é de facto por aí que Hegel nos conduz, o que redunda em pensar a identidade da forma e do conteúdo, ou então do interior e do exterior. Mas sobre isso Hegel só tem profundezas. E eis aqui alguns dos termos que ele antecipa: “ O que só é um lado interior é só  também um lado exterior, e inversamente.” E citando a frase de Goethe: “É preciso quebrar a membrana exterior”, Hegel conclui enigmaticamente: “Na realidade quando ele considera  a essência da natureza como uma existência puramente interior, é então que ele só conhece a membrana exterior.” Decerto posso compreender por uma espécie de prática, que não é retirando-me do mundo exterior que eu penetrarei no interior do espírito. Creio compreender também que não se ganha muito em meter o corpo no espírito, em vez de alojar o espírito no corpo. É notável também que a matemática universal seja precisamente o materialismo universal. Porém, esta unidade da forma e do conteúdo, no grau em que estamos,  faz-se de algum modo apesar de nós. Estas separações e reuniões não devem ficar no estado abstracto; é claro que vamos à conquista do mundo moral e político, não dum salto,  mas ultrapassando segundo a ordem as representações insuficientes cujo amontoar barra o caminho a muitos. Hegel antecipa nesta passagem, como um pensador que sabe para onde vai: “Quando o homem, diz, só é moral interiormente, e o seu exterior não se acorda com o seu interior, um dos dois lados é tão falso  e tão vazio quanto o outro.” A mesma coisa, e mais evidentemente, se deve dizer da moralidade puramente exterior. A sociedade num sentido é exterior e estranha à moralidade; mas também a sociedade assim pensada não tem qualquer verdade. A verdadeira sociedade está intimamente ligada à moralidade; ela como que lhe é substancial. Mas isso não será suficientemente compreendido sem uma longa sequência de meditações; e é por essas mesmas meditações, e não de outra maneira, que a união se fará.

“Quanto ao que diz respeito à natureza, é preciso dizer que ela não é apenas exterior para o espírito, mas que é ela própria a exterioridade em geral, e isso neste sentido de que a ideia que faz o conteúdo comum da natureza e do espírito só existe exteriormente na natureza, e, por isso mesmo, só nela existe interiormente.” É preciso vencer esta obscuridade cheia de sentido. É preciso compreender que na criança, “a razão é puramente interior primeiro, e por isso mesmo puramente exterior.“A razão torna-se exterior pela educação, e reciprocamente a doutrina exterior devém própria e interior.” É da mesma maneira que os políticos concebem, muito superficialmente, a pena como somente útil por exemplo. A verdadeira pena é apenas a consequência da vontade do culpado. Por isso não se deve ler a história como uma sequência de circunstâncias que determinaram pelo exterior a conduta dos grandes homens. Na acção real,  a vontade e as circunstâncias nunca se separam. “Os grandes homens quiseram o que fizeram e fizeram o que queriam.” É claro pelo menos que os nossos fracos pensamentos são aqui energicamente sacudidos. Como separar o pensamento do escultor e o golpe do martelo? Toda a acção é feita de detalhes; imagina-se um pensamento que não descesse até aí? Nós sonhamos a acção; o grande homem pensa e faz a sua acção. É o momento de desprezar o entendimento que sempre separa; porque estamos nessa passagem em que a  lógica perece no seu contrário.

A lógica Hegeliana desenvolve-se em três momentos, que são o ser, a essência e a noção.  Os dois primeiros momentos estão agora atrás de nós. A essência, à medida que  se determina através de substância e causalidade até à acção recíproca, apenas esclarece melhor o seu carácter puramente fenomenal; a essência é apenas relação e inexistência; temos grande necessidade do ser. Mas chegaremos ao ser puro e simples? Seria recomeçar, atravessar de novo a dialéctica do ser, e voltar à essência. O fenomenismo, momento ultrapassado e conservado, conduz-nos a outra coisa, à existência do sujeito que pensa as relações.  Porque a essência aparece finalmente indivisível, pela acção recíproca, e assim faz-nos apreender o verdadeiro carácter do sujeito, que é a unidade absoluta, a totalidade absoluta, a interioridade absoluta. O eu, diz Hegel, é um exemplo da noção, mas a planta, o animal,  que se desenvolvem a partir do gérmen, são-no também. Passar ao eu, desenvolver o eu, seria ir depressa de mais, seria querer acabar demasiado cedo com a lógica; seria esquecer a filosofia da natureza. A exposição da noção do eu pertence à filosofia do espírito, que supõe ela própria a filosofia da natureza; e isso quer dizer que o eu se desenvolve num corpo vivo e no universo, por uma libertação e uma vitória. Aqui, nesta ponta extrema da lógica, em que nos encontramos, são pensamentos que saem de pensamentos. Nós procuramos as condições dum pensamento verdadeiro; procuramo-las no juízo e no raciocínio, examinando ainda, e remetendo para o nível do ser ou da essência os juízos sem verdade. Neste exame consiste a doutrina da noção, que tem por objecto  fazer-nos compreender que os juízos verdadeiros e os raciocínios verdadeiros supõem um ser de natureza que, fazendo-os, se desenvolve. E esta concepção do silogismo real está  de tal modo longe dos nossos hábitos que eu creio útil insistir principalmente nisso. Esta doutrina do juízo, e do silogismo ou raciocínio que desenvolve o juízo, é muito amplamente exposta em Hegel. Não percamos o fio condutor. Há juízos segundo o ser e raciocínios segundo o ser; tal é o conteúdo principal da célebre lógica de Aristóteles. A este nível um juízo como este:  Sócrates é corajoso, não se distingue deste outro; o homem é mortal, nem deste outro: o ouro é um  metal; e estes juízos entram em silogismos por outros juízos que aproximamos daqueles; um homem corajoso não teme a morte, Alexandre é homem, um metal é fundível. O laço de raciocínio é simplesmente formal, quer dizer de gramática. Os juízos segundo a essência são juízos de ciência propriamente falando, como: este corpo é pesado, quente, electrizado; há entre o grau, as relações, e uma necessidade das relações, necessidade que o raciocínio segundo a essência desenvolverá. Por isso, achamos agora silogismos que apreendem a natureza de mais perto. A indução, a analogia, o silogismo hipotético e disjuntivo, marcam os graus do raciocínio segundo a essência. Notar-se-á que a palavra Silogismo é tomada  aqui no sentido mais extenso. E, o que me parece principalmente de notar, é o silogismo hipotético, pelo qual se demonstra por exemplo que se um triângulo é suposto, a soma dos seus ângulos é necessariamente igual a dois rectos. Aqui se mostra o vazio da essência; porque  a necessidade declara-se, mas o sujeito falta, a existência falta; um tal raciocínio só apreende a forma duma existência possível. Do mesmo modo, se se quer demonstrar que todo o metal é fusível, ou que o ouro é um metal, será preciso pressupor uma definição do metal por relações recíprocas entre uma propriedade e uma outra.  Um género, como metal, corajoso, homem, é sempre hipotético; esta condição, que só é implícita no raciocínio segundo o ser, é explicitamente colocada na essência, de modo que a questão de saber se Sócrates é corajoso, ou não, se Sócrates teme a morte ou não, é substituída, ao nível da essência, por esta outra: quais são as relações necessárias entre coragem e temor, quer dizer entre atributos; o sujeito perdeu-se. Segundo a essência, tudo consiste em relações entre atributos, velocidade, massa, peso, coragem, temperança, e não há mais sujeitos.

A noção é o sujeito verdadeiro. O juízo segundo a noção é aquele que liga o atributo ao sujeito, mas no próprio sujeito; o raciocínio segundo na noção é o que desenvolve a natureza do sujeito. “A planta, desenvolvendo-se do seu gérmen, faz o seu juízo”; ela faz o seu juízo e o seu raciocínio, compreendei que ela se torna cada vez mais o que é. Este exemplo, que primeiro surpreende, exprime de facto que o juízo segundo a noção não junta ao sujeito um atributo que lhe seria estranho, mas antes desenvolve o sujeito mesmo. Leibniz, aristotélico ele também, tirou grandes paradoxos desta simples proposição que em todo o juízo verdadeiro o atributo é inerente ao sujeito. A fim de seguir o pensamento de Hegel e de o acordar mais facilmente com o nosso, lembremo-nos de que os exemplos que ele dá do juízo segundo a noção são aqueles que têm por predicados o verdadeiro, o belo, o justo. Quando digo que um homem é justo, é à sua própria noção que o comparo. Um atleta que é belo, é um homem desenvolvido. Uma bela casa é por excelência uma casa. “O predicado, diz Hegel,  é a alma do sujeito, pelo qual este, enquanto corpo desta alma, é completamente determinado.” O exemplo de Sócrates corajoso é aquele que melhor esclarecerá  estas fórmulas temidas em que se nota tão bem a obscuridade Hegeliana.

Um juízo desenvolve-se por provas, quer dizer por mediações. Sócrates é corajoso, porque aquele que despreza a morte é corajoso, e Sócrates despreza a morte; porque aquele que julga sãmente do que é de temer é corajoso, e Sócrates julga assim; porque aquele que é senhor de si mesmo nos perigos, etc., aquele que põe a liberdade acima dos outros bens, etc. Eis muitos silogismos possíveis, mas segundo o ser, ou, melhor, segundo a essência, conforme os atributos forem mais fortemente ligados. Tais determinações são exteriores. Não é assim que Sócrates é corajoso. Sócrates fez-se corajoso pelos seus próprios pensamentos através de diversas situações, e os seus pensamentos consistem de facto em mediações do género daquelas que eu propunha; Sócrates julgou que a morte não era de temer, que o tirano era infeliz, que uma vida escrava não era digna dum homem, e assim do resto; somente aqui estes pensamentos são verdadeiros; e o próprio Sócrates é um homem verdadeiro, um homem segundo a noção, mas digamos antes Sócrates ele próprio, Sócrates segundo a sua própria noção. Percebe-se que o que é necessidade no juízo exterior é aqui liberdade no sentido mais pleno. Assim a noção é um ser diferente do ser abstracto; é um ser que se desenvolve do seu próprio fundo, um ser que é em potência tudo aquilo que será. Recordemos as fórmulas aristotélicas, segundo as quais o possível abstracto não é realmente possível, e o real possível é o possível para alguém. Só existem no mundo sujeitos verdadeiros, que produzem eles mesmos os seus atributos. Se todo o desenvolvimento é interior absolutamente, se a verdade das ideias é realizada  como Sócrates por Sócrates, e se não há nenhum juízo verdadeiro fora dum tal desenvolvimento, é preciso dizer que todo o ser pensa e que todo o pensante é natureza. “Deus é o vivo eterno e perfeito”, esta fórmula de Aristóteles pela qual Hegel encerra a sua Enciclopédia dá-nos o termo desta construção gigantesca. E estamos à altura de compreender como se faz a passagem da lógica à natureza. Porque nós procurávamos o objecto e primeiro perdiámo-lo; encontramo-lo sob a forma de sujeito real; nada de diferente pode ser; nada de diferente pode levar atributos. A noção era primeiro pensada como subjectiva, mas uma vez que toma o valor de objecto, e que é o mais vivo na natureza que é mais noção e objecto, a noção recebe finalmente o grande nome de Ideia, e a Ideia é a Natureza.

Discerne-se facilmente o que é aristotélico nesta doutrina. Em Hegel como em Aristóteles o pensamento é objecto e natureza, e esta filosofia deveria ser dita naturalista. Isso significa que é do vivo, do dormente, do animal que é preciso tirar pensamento. Nenhum pensamento pode vir a nenhum ser do exterior; é preciso que ele desperte por si, é preciso que seja desenvolvimento interno. A sabedoria não se exporta. Mesmo a constituição dum povo é alguma coisa de interno e de individual, porque é preciso sempre que a forma e o conteúdo sejam idênticos; e isso vai directamente contra todas as ideologias do género platónico. O que é imitação e importação é sem verdade, como a virtude emprestada do vizinho. A passagem do sono à vigília é o tipo do pensamento verdadeiro. A civilização verdadeira é feita destes pensamentos verdadeiros, menos perfeitos num sentido do que os pensamentos lógicos, mas pensamentos reais e não já somente formais. Do mesmo modo, o verdadeiro artista cria segundo a ideia interior e o falso artista segundo a ideia emprestada. “O ofício, dizia Aristóteles, é princípio num outro; a natureza é princípio nela mesma.

Tudo isto é aristotélico. O que é próprio de Hegel? É o desenvolvimento sem fim.  Aristóteles, partindo dos vivos perecíveis, chega a conceber um vivo eterno, um acto puro. Tudo é perfeito e acabado, e a própria mudança traz a marca do perfeito por esses retornos eternos que estão explicitamente em Aristóteles.  Neste sentido, há na filosofia naturalista de Aristóteles alguma coisa  do que Platão tinha predito, talvez; porque toda esta mudança é então só ilusão? Fica qualquer coisa desta absoluta vaidade em Hegel, pois que o devir é como que um jogo divino que não tem objectivo, que morreria no seu objectivo. Mas talvez que nós não saibamos sustentar esse pensamento; talvez essa filosofia do devir seja mais poderosa do que aquele que a formou. O devir absoluto é qualquer coisa de mais que o acto puro de Aristóteles. Os Alemães dizem algumas vezes que esta sabedoria lhes é própria; de qualquer modo, eles foram por ela profundamente influenciados. Os Marxistas, que são Hegelianos, desenvolvem esta ideia pela acção; e com isso, o quer que seja que pensem,  estão na doutrina. Porque é conforme a doutrina pensar que pela doutrina morre o pensador, deportando-o irresistivelmente para qualquer coisa de novo, sempre. É que existe qualquer coisa de positivo, ou melhor de activo, nesta recusa sem fim. A dialéctica recomeça sempre no menor dos nossos pensamentos, e é por aí, como se compreenderá melhor no seguimento, que os nossos pensamentos são acções. E é isso pensar, é isso que é verdadeiro. A perfeição, não importa em que género, está sempre por fazer, e exactamente no fazer. Neste saber, que seria o grande segredo, há graus, e como que uma filosofia da filosofia, que seria a filosofia. Por exemplo pode sustentar-se, ainda abstractamente, que um estado social nunca é verdadeiro nem justo, que chama a sua própria negação, e que o destino do homem é destruir criando. Mas pelo interior julgar-se-á melhor decidindo que o que faz o mal duma instituição, por muito perfeita que se suponha, é o retorno ao ser abstracto e mecânico, é o bem sem alma, e a preguiça do pensamento. Tudo cairia por si no sistema morto. Assim julgar, no sentido interior, eis o devir, eis o que há de divino em nós. O que está em repouso não pode ser bom. É o que representa a natureza pela morte e o nascimento sem fim; mas a simples natureza não faz mais do que se recomeçar; disso o espírito, que é a vida da vida, se liberta pela história; a história é o verdadeiro. Desenvolvimento que o Aristotelismo falhou, Falhou em quê? Por não ter posto em marcha a dialéctica como verdade. Tal é o sentido da Lógica Hegeliana. A ideia verdadeira não é repouso; a ideia é activa; ela só tem valor superando-se. Pensar não é contemplar, é opor-se a si, dividir-se contra si, e melhor se unir, pela negação do carácter exclusivo do sujeito, e é ciência; pela negação do carácter exclusivo do objecto, e é acção;  o que leva a realizar a identidade da forma e do conteúdo. E uma vez que o desenvolvimento lógico conduz a pensar, sob o nome de real, esta identidade encoberta, e que deve tirar tudo do seu próprio fundo, a Ideia, essa intuição de si ainda não desenvolvida, só podia ser natureza, ou prisioneira.  Não entendais com isso que a natureza saia da lógica por uma dedução segundo a identidade; pelo contrário, a natureza é o que falta à lógica; mas isso mesmo esclarece a natureza; ela é ainda enigma, já não é completamente muda.


Alain
(Tradução de José Ames)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

HEGEL




A filosofia de Hegel é um aristotelismo. Em relação a Platão e a Descartes, trata-se agora da outra filosofia, que procura a consciência sob os seus exteriores, e que pensa o espírito do mundo. Tendo feito alimento da filosofia de Platão, eu utilizei esta outra como  remédio e achei-me bem. Platão convém àqueles que se encontram em dificuldade consigo mesmos. Arsitóteles, Hegel, e mesmo Leibniz, são antes naturalistas. Ficará à escolha. De facto, a filosofia Hegeliana foi aquela que movimentou os povos, pelo Marxismo, e isso é de considerar. Deixando o trabalho do historiador, que não é do meu ofício, quero somente trazer à luz um bom número de ideias profundas e subterrâneas, sem criticar os meios.  O platonismo é apenas crítica de si; os frutos estão escondidos. No presente estudo, é preciso que a crítica se cale. É advertir o bastante, porque nós temos de fazer uma longa viagem. A filosofia de Hegel é dividida em três partes, que são a Lógica, a Filosofia da Natureza, e a Filosofia do Espírito. Esta última parte, ela própria compreende o Espírito Subjectivo, o Espírito Objectivo, o Espírito Absoluto. O Espírito Objectivo, é  Família, Sociedade, Estado, História; O Espírito Absoluto desenvolve-se em três graus, a Arte, a Religião, a Filosofia. Não é inútil colocar-se primeiro no lugar de chegada; porque à partida a lógica fecha todas as avenidas; muitos ficam por aí, enquanto que o espírito da lógica Hegeliana está nisto, que não se pode ficar aí. É dizer que este pensador foi e é frequentemente mal compreendido, e sobretudo miseravelmente discutido. A caminho agora.


Alain
(Tradução de José Ames)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

REMÉDIOS PARA AS PAIXÕES






“Como fomos crianças antes de sermos homens.”

(Princípios I, 1)




 

Uma vez que se trata aqui da conduta da vida, que é o que interessa mais a um homem, e uma vez que toda a natureza humana se encontra agora reunida como num quadro, o leitor quererá saber que uso deve fazer das suas paixões, e que remédio para os seus excessos Descartes propõe. Encontrar-se-á mais do que um, se se ler atentamente o Tratado; e estas lições de sabedoria são tão fortes, tão naturalmente conduzidas, enfim tão bem no seu lugar, que hesito em trazê-las aqui aos pedaços, cortadas desse belo tecido em que ciência, juízo e grandeza de alma estão em toda a parte entrelaçados. Segundo a minha opinião, esta revista das paixões da alma, este movimento e este passo sobretudo que se imita de Descartes lendo-o, é o principal remédio para as paixões e o mais eficaz. Todavia, se é útil prometer e anunciar, eis aqui, seguindo a ordem das ideias que foram acima expostas, como se poderia resumir esta sabedoria cartesiana, demasiado pouco conhecida.

A força duma paixão, o começo, o paroxismo, o apaziguamento, o retorno dependem em primeiro lugar desses movimentos da vida, sobre os quais não temos qualquer acção directa. Mas não é  pouco se nessas tempestades corporais reconhecermos a natureza material como ela é, quer dizer, sem desígnio nem pensamento algum, sem nada de misterioso nem de fatal, uma parte empurrando a outra. É já afastar de si e ter como que longe da vista esse turbilhão tão próximo, esse turbilhão de sangue e de espíritos animais. É medi-lo, é julgá-lo, e de alguma maneira nos arranjarmos com ele como com o tempo que faz. Temos um longo hábito de viver num mundo que não tem respeito e que é bem mais forte do que nós, no qual, no entanto, encontramos passagem. Feliz aquele que encontra esta mesma natureza cega, indiferente, manuseável mais ou menos como todo o mecanismo, nas suas próprias cóleras, nos seus ódios, nas suas tristezas, e até nos seus desesperos. Tanto mais que, se nós não temos nenhum poder sobre o nosso coração, nem sobre o curso dos espíritos, temos uma acção directa sobre os movimentos dos nossos membros, seja para os regular, seja para os reter. O hábito e o exercício contribuem muito para desenvolver este poder; é claro que, por este meio, nós modificamos indirectamente e mesmo muito os movimentos involuntários da vida, pois que tudo está ligado nesta máquina de músculos e de nervos. Ninguém ignora que uma acção difícil, e que se sabe fazer, é o que há de mais eficaz contra o medo. E, como diz Descartes com força, e não sem o desprezo que convém, uma vez que se consegue realmente adestrar um cão de caça, contra os seus instintos naturais, a não fugir ao disparo e a não se lançar sobre a caça, quem nos impede de empregar a mesma indústria e as mesmas astúcias a adestrar-nos a nós mesmos? É por este método, que se pode dizer atlético, que o homem polido permanece senhor pelos menos dos seus gestos. Mas é preciso saber, e é o que o Tratado nos ensina, que por este meio puramente exterior, se chega também a mudar muito os movimentos interiores, quer dizer a própria paixão. Porém, é no que não se quer crer enquanto não se tiver compreendido bem que as paixões dependem dos movimentos corporais muito mais do que dos pensamentos.

São os nossos pensamentos, com efeito, que nos importunam; o homem apaixonado não diz que o seu coração bate demasiado rápido, mas desenrola diante de si  uma sequência de brilhantes e persuasivas razões. Nesse estado, ele não pode julgar. O menos que pode fazer, se sabe que a paixão o engana, é abster-se de julgar. Pode frequentemente mais, se recordar as máximas familiares, e nas quais muitas vezes reflectiu quando estava livre de paixão. Os estóicos ensinavam esta parte da sabedoria, que não é pouco, mas também que não é tudo. Descartes, homem vivo, homem de primeiro movimento, não conta muito com isso nas crises, e ensina-nos que já é muito não se acreditar em si mesmo, e pelo menos julgar que não se está em estado de julgar. No que  é humano e próximo de nós. Se me é permitido trazer à luz uma ideia que lhe está sempre presente e que há o risco de o estar menos para nós, acrescentarei que a fé em si próprio, e a certeza que se triunfará no fim, desde que se queira, é a mais forte contra essa aparência de fatalidade, que é, poder-se-ia dizer, a constante resposta das paixões à reflexão. Tais são as nossas armas contra os pensamentos brilhantes e loucos que o movimento dos espíritos entretém em nós.

Quero chamar a atenção do leitor para duas ideias ainda, mas que são, essas, muito difíceis, e que Descartes não explicou nada. Que haja paixões favoráveis à vida, como o amor e a alegria, e outras que nos estrangulam pelo contrário por dentro, como o ódio e a tristeza, é um dos pontos mais importantes do Tratado, mas não dos mais difíceis. Estamos advertidos. Mas estaremos armados? Dependerá de nós experimentar o amor ou o ódio? Um acontecimento, uma acção, mostram-se. Conforme  contrariem o nosso próprio ser, ou pelo contrário, o estendam e desenvolvam, nós teremos paixões felizes ou infelizes. Aqui brilha diante dos olhos, ao menos um curto momento, essa observação de Descartes que as mesmas acções, às quais nos conduz o ódio, podem também resultar do amor, pois que afastar de si um mal, é também na realidade atrair a si o bem que lhe é directamente contrário. Spinoza, que comenta aqui utilmente o seu mestre, ensina que vale mais alimentar-se por amor da vida do que por medo da morte, e punir, se se é juiz, pelo amor da ordem do que por ódio e cólera diante do crime. Da mesma maneira, direi eu, vale mais educar a criança pelo amor do que ela tem de bom em si mesma do que por uma tristeza ou uma cólera que se pode sentir ao vê-la má ou tola. O amor da liberdade é também  mais são do que o ódio que se acalenta tão facilmente pelo tirano. Estes exemplos, e tantos outros que se poderiam inventar, não abrem no entanto um caminho fácil. A só considerar os motivos, não vai longe do ódio ao amor; mas a considerar o regime do corpo, segundo a visão admirável de Descartes, vai muito longe do ódio ao amor. Sem dúvida Descartes, e Spinoza depois dele, quer dizer que não é pouco, se se mudam os motivos, e que por este meio o humor triste pelo menos não é apoiado pelos nossos pensamentos. Mas será o bilioso libertado por isso dessa maneira azeda de amar que muitas vezes é a sua? E não se poderia dizer, ao contrário dos nossos filósofos, que a mesma paixão, quer seja dita amor ou ódio por aquele que a experimenta, se traduz frequentemente, segundo os humores e a saúde, por afecções que não respondem em nada às opiniões? Este comentário não belisca a descrição spinozista, em que é pressuposto que todo o curso das paixões depende da necessidade universal. Em Descartes, uma vez que ele jurou governar-se, quereríamos compreender como é que um juízo orientado de outro modo, mas que não muda a acção, disporia de outra maneira o corpo. Sem dúvida é preciso distinguir a acção real, como bater, dessas acções imaginárias, mas já esboçadas no corpo, e que acompanham quase todos os nossos pensamentos. E essas acções são muito diferentes no justiceiro, conforme ele pense em destruir ou em fundar, em prejudicar ou em socorrer. Esta ideia é boa de seguir, todavia parece-me que Descartes nos deixa aqui sem socorro. Mas é talvez, como quis explicar mais acima, porque nós não pensamos a união da alma e do corpo como seria preciso.

Enfim, gostar-se-ia de ler no Tratado que todas as paixões são boas e até as mais violentas, desde que se saiba governá-las bem. Cada um sente de facto que sem as paixões, e mesmo conservadas, não haveria sábio. Descartes mostrou fortemente, e sem duvida foi o primeiro no mundo, que os movimentos do amor e do ódio são úteis à conservação do nosso corpo. Mas não é ainda dizer o bastante. Descartes, tal como o vejo, homem de primeiro movimento, decidido, grande viajante, curioso de todos os espectáculos e sempre em busca de percepções, Descartes devia saber e sentir melhor do que qualquer homem que o espírito não começa nada, e que a primeira partida das nossas virtudes, das nossas resoluções, e mesmo dos nossos pensamentos está nos abanões da natureza, não uma vez, mas sempre. O que se vê pelo menos neste belo estilo, em que a frase retoma, corrige e acaba sempre um movimento de infância. E é por esta arte de descobrir sempre de novo o que ele sabe, que se assegura tão bem de si mesmo. Bom companheiro nisso, e sobretudo no Tratado. Prontamente acima de nós no menor dos seus pensamentos; mas logo ele volta. Donde me parece que só em lê-lo se toma algum ar e algum movimento desta grande alma.


Alain
(Tradução de José Ames)