O
pensamento não é um pequeno acidente em qualquer pessoa. Quase todos os nossos bens e os
nossos males vêm de pensamentos. Conhecemos suficientemente bem uma sequência
de pensamentos que faz a história da Filosofia; quanto abstracta e aérea ao
lado dos pensamentos reais de Esopo, de César, de Napoleão, dum banqueiro, dum
comerciante, dum juiz, dum polícia, dum pedreiro! Todavia, aqui aparece
claramente que não é um bom método
começar por estes últimos pensamentos, decerto os mais eficazes, mas os mais
impenetráveis que podem ser. Pelo contrário, a sequência dos sistemas
filosóficos oferece-nos um espectáculo abstracto e transparente. Que são as
doutrinas? Teses não diferentes mas opostas, e das quais se diria que cada uma
delas define a outra. O ser dos Eleatas e o não-ser de Heráclito são o exemplo
mais flagrante; cada um diz não ao outro, e ambos têm uma espécie de razão. O
árbitro gostaria, segundo a palavra de Platão, de fazer como as crianças e
escolher os dois. É da mesma maneira, mas menos abstractamente, que o átomo se
opõe à mónada; segundo o átomo, cada ser exclui todos os outros, e encontra-se
face a todos os outros numa relação
puramente exterior; segundo a mónada, cada ser contém todos os outros e
pensa-os todos juntos segundo uma unidade sem partes. Há verdade nos dois; mas
é preciso no entanto escolher, e não se pode escolher. O espectador de boa fé
começa por se dizer que se encontra metido numa imensa aventura. Só existe a
matéria; bom; mas escavada até às forças e até ao atomismo, a matéria é um
pensamento, e mesmo muito abstracto. O mundo está fora de mim; mas o mundo está
em mim. Tudo é objectivo, eu o quero, e detenho-me nos seres particulares: mas,
por isso mesmo, tudo é subjectivo.
Estes
pensamentos são livrescos; mas a moral pressiona-nos. Toda a virtude é de
intenção, certamente isso prova-se; mas toda a virtude é também de
sociedade. Só podereis saltar dum extremo
ao outro. E cada um dos dois termos esclarece o outro. A ideia de moralidade
não é uma ideia no ar, correctamente desenhada na ponta da pena; é sempre, pelo
contrário, uma revolta do espírito inteiro contra a ordem do direito. Mas
prestemos atenção a estes movimentos de todo o espírito em relação a si
próprio. A ideia de moralidade não é a ideia dum litigante descontente; é um
drama no interior do espírito. Donde cada um chega a uma moral Kantiana, de si
para si, porque não há outra porta. Mas não se pode ficar aí; o apoio falta.
Volta-se inevitavelmente à ordem exterior, que tem esta vantagem de existir.
Volta-se aí, mas não o mesmo; já não se fia nela imediatamente; ela é julgada e como que
trespassada por razões opostas. Tal é a história íntima de muitos homens
razoáveis, que, depois de terem afirmado, e a seguir negado, a moral pura, a
reencontram na obediência; e é o que Hegel chama de momentos superados e
conservados. Eis como o espírito real se faz uma filosofia real. As paixões
seriam um outro exemplo; porque é preciso de facto ultrapassá-las; mas quem não
vê que o melhor dos nossos pensamentos
está em paixões salvas?
Estas ideias chegam por agora. Foi suficientemente
lembrado ao leitor que a contradição não é um pequeno acidente nos nossos pensamentos,
mas que, pelo contrário, nós só pensamos por contradições ultrapassadas. E, por
esta outra observação, de que as teses opostas são sempre abstractas em relação
à solução, que é mais concreta, estamos já quase de pés assentes nas
abstracções da lógica Hegeliana, porque
os mesmos movimentos nela se encontram. O átomo é apenas um momento, e uma
espécie de remédio para as contradições que se encontram na ideia ingénua do
ser exterior e que se basta a si mesmo. E não se pode ficar no átomo; é preciso
que se interprete como uma definição e como uma relação; donde somos lançados
no vazio da essência, tecido de teoremas sem qualquer suporte. Será preciso
depois disso que o pensamento volte a si mesmo, total e indivisível como é,
porque as relações não se pensam elas próprias, e os seus termos são ao mesmo
tempo distintos e unidos. Unidade mãe de todos estes pensamentos, donde estes
pensamentos devem sair como dum germe,
tal é a Noção, e logo a Ideia, que nos lançará finalmente na natureza. A lógica
nega-se então pelo seu próprio movimento. A partir destas sumárias explicações,
encontrar-se-á já um grande sentido nesta construção em marcha que nos quer
arrastar do ser à essência e para além da essência, ou, como nós diríamos, da
física ingénua à física matemática, e enfim ao espírito vivo que soube
atravessar este deserto.
A
lógica da ordem, que é a lógica, exige que comecemos pelo princípio, quer dizer
pelo que é o mais abstracto e o mais simples. Os Eleatas especularam sobre o
ser, prevenindo-se de nada pensarem sobre isso para além de que ele é, o que
faz um sistema fechado e um sistema vazio. O sofista, em face deles,
divertia-se em provar que é o não-ser que é. Aproximemo-nos mais. O ser
absoluto é exactamente o ser ao qual não convém qualquer atributo, nem o
repouso, nem o movimento, nem a grandeza, nem a forma. Este ser não pode ser
nada; ele é o não-ser. Pode-se andar à volta deste círculo de discurso; mas é
claro que é preciso sair dele, e que pensar é sair dele. Que ideia nos
permitirá pensar o conjunto destes
contrários? Não caminhar, como fazia Diógenes; porque essa solução, que
é certamente uma solução, está muito longe do problema. Nós procuramos a ideia
mais próxima, ainda abstracta, mas composta
pelas duas outras, ou antes reunindo-as num tecido já mais real, e
salvando-as por aí. Esta ideia encontra-se na história como um produto; é o
devir de Heráclito. Mas não o entendais como um simples possível, como se
dissésseis: “Não há somente o ser, há também o devir.” Teríeis perdido o vosso
primeiro dia de aprendiz. Não, não. Em vez de pensar o ser em face do não-ser,
e de vos deixardes lançar de um para o outro, agora formais uma ideia positiva,
e mais concreta dum grau, que implica que o ser não cessa de passar ao não-ser,
e que o não-ser não cessa de passar ao ser. Somente não se trata já de um jogo
sofístico; trata-se duma ideia comum; de uma ideia que toda a gente tem. E,
pela impossibilidade de que o contrário deixe de passar imediatamente ao seu
contrário, vós pensais fortemente o devir. No devir conservais ser e não-ser, e
idênticos, mas justamente como eles o podem ser; quer dizer que o que é cessa
logo de ser. O devir não espera; e o que não é começa logo a ser. O devir não
espera; o devir não pára nunca; tal é a solução real, e eis que partimos.
Se
compreendestes, nesta passagem tão simples, que uma porta se acaba de fechar
atrás de vós, sois já um pouco Hegeliano. Decerto haveria esperança para a
preguiça se pudésseis pensar que o devir algumas vezes pára. Mas não o podeis
de modo nenhum, se pensardes atentamente que o ser passa ao não-ser. Assim, não
há mais terra firme atrás de vós; não haverá jamais, e vós sabei-lo. Neste
ponto da atenção experimentastes esse movimento basculante primeiro no lugar, e
depois essa partida irresistível, essa passagem dirigida e irrevogável que nos
precipita para sempre no oceano Heraclitiano. Antecipo; não estamos ainda na
natureza; encontrar-se-á na lógica mais de um compromisso, mais de uma
tentativa para estabilizar os nossos pensamentos. Todavia este primeiro momento
encerra já o espírito deste imenso sistema; e creio ser útil reflectir por
muito tempo nisso.
Lançar-se
na existência movente do alto dos cimos áridos da abstracção, é o movimento de
todos. Tudo contribui para isso, o universo, a família, o ofício, a função. O
homem é um funcionário que disse adeus a pensamentos. Mas esse movimento de
espírito, assim considerado como psicológico, fisiológico, social, histórico, é
o enigma, é o ilegível. A lógica da ordem quer uma queda simplificada e uma trajectória
calculável. Nós lançamo-nos duma ideia a uma ideia; e este movimento define a
Lógica, que é a primeira parte do sistema. E decerto não é de pouca importância
descobrir que a metafísica, quer dizer a especulação sobre as ideias eternas, é
uma metafísica do devir. A razão da mudança encontra-se pois no próprio
pensamento, o que leva a supor, em contrapartida, que a própria mudança do mundo poderia muito
bem ser o efeito duma dialéctica escondida. Percebe-se então, como dum lugar
elevado, que o pensamento é homogéneo à experiência, quer dizer que a experiência
é manejável pelo pensamento. Ou doutra maneira, o pensamento com as suas formas
invariáveis, como em Kant, só é capaz de se representar o real; não entra nele;
não está aí em sua casa. De modo que o que se mostra aqui são as primeiras
articulações duma doutrina da acção. Isso dito, não esqueçamos que nos é
preciso percorrer a lógica, ou seja a sequência dos movimentos e oscilações
interiores próprios do pensamento separado, a fim de ir demonstrando a
insuficiência da lógica, isto é a necessidade duma filosofia da natureza.
Como
não posso expor em detalhe todas essas passagens, o que me levaria a escrever
muito mais páginas do que o próprio Hegel, volto um pouco ainda a esse
movimento dialéctico inicial, a respeito do qual existem tantos equívocos.
Porque é verdade que Hegel edificou um Panlogismo (para falar calão); mas isso
quer dizer simplesmente isto, é que o mesmo movimento que esclareceu a
insuficiência da lógica é o mesmo que nos conduzirá à contemplação da natureza
na sua variedade, depois à acção, por um regresso do espírito vivo. Não há no
mundo, tal é o postulado Hegeliano, senão reviravoltas do espírito sobre si
mesmo, pela impossibilidade de jamais
permanecer num pensamento. Agora, concluir que essas reviravoltas ou
movimentos de todo o espírito se parecem com aquilo que nós chamamos
raciocínios lógicos, quer dizer, tautológicos, é um mal-entendido grosseiro. A
lógica de Hegel é a verdadeira lógica, isto é, o pensamento formal, ou separado,
mas não pode permanecer tal e que vai até à sua própria negação, descobrindo,
por esse mesmo movimento, o segredo da natureza e o segredo da acção. É a
lógica real, a que deporta imediatamente o
verdadeiro pensador, o pensador que não se contenta em andar em círculo.
Assim, podemos bem prever que a mola real desta lógica será completamente
diferente da mola fraca às voltas na sua gaiola, como se vê no Parménides de
Platão. Ora, a força da lógica, é que
não se pode ir e vir assim; e é certamente o que Platão nos quer fazer
compreender. Pensar o um imóvel, o ser imóvel, o ser um, e sempre voltar aí,
ou, ao contrário, pensar a multidão, a mudança inapreensível, o ser que não é,
e voltando sempre, é como uma recusa de pensar. Lembrai-vos de que a natureza
nos espera, e a sociedade, e a moral, e a religião. Há uma desproporção
evidente aqui entre as nossas ferramentas intelectuais e o trabalho que temos
de fazer. É assim que somos expulsos
desse pensamento; mas não se trata de fugir. Parménides dizia como um desafio:
“O ser é e o não-ser não é, tu não podes sair desse pensamento.” O próprio do
espírito vivo é sair. Mas como? Encontrando o pensamento que vem a seguir; aqui
é o devir. Falando do Parménides de Platão, eu misturava ainda há pouco
ao ser e ao não-ser o um e o múltiplo; e é bem assim que se pensa quando
somente nos queremos evadir; mas é uma falta contra a lógica; é preciso começar
pelo puro começo, o qual nos faz passar ao devir, um pouco menos abstracto,
ainda muito abstracto. O um e o múltiplo terão o seu lugar também. O leitor
poderá, desde este começo, comparar Hegel com o nosso Hamelin, e compreender já
que este trabalho, conduza-se ele segundo uma ordem ou outra, é sempre o mesmo
trabalho; trata-se de ultrapassar os jogos da abstracção, e o meio é
esgotá-los, o que é deixá-los atrás de si para sempre, como uma infância. E não
direi que existe apenas uma ordem; é que eu não sei nada sobre isso; como a
ordem da linha recta ao ângulo, ao triângulo, ao círculo, aos polígonos, nada
diz que seja absolutamente a melhor até ao pormenor; porque há juízo e não
somente raciocínio nesta sequência; e é aqui sem dúvida que era preciso dizer
que se o espírito fosse conduzido em tais séries por uma espécie de necessidade
mecânica, o espírito já não seria espírito. Este pensamento, que é de Lagneau,
projecta vivos clarões; aqui, neste ponto de dificuldade, eu esclareço-me como
posso. Lucien Herr, que era um Hegeliano nato, disse-me um dia que a passagem,
em Hegel, era sempre de sentimento. Aí está o que é difícil de compreender; mas
pelo menos o presente exemplo é claro entre todos. Não, a primeira oposição do
ser e do não-ser não contém o devir; se o contivesse, nós apenas
desenvolveríamos uma lógica tautológica. Pensar o devir falando da primeira
oposição, é descobrir o termo seguinte segundo a lógica da ordem. E a
dialéctica de Hegel é assim uma contínua invenção, cuja regra é que ela dá
conta, pela complicação progressiva, da Ciência, da Natureza, e da Humanidade
como elas são, tais como elas são vistas, e cuja regra estrita, em cada passagem, é formar, a partir duma
impossibilidade aparente, as ideias tais quais cada um as tem. Deduzir é
portanto aqui, como em toda a parte, uma palavra ambígua e perigosa; como se vê
nas ciências demonstrativas, em que a dedução não se faz por silogismos, mas
por uma construção toda inventada do termo mais próximo a seguir àquele que se
compreendeu. A aventura, porque é uma, é a obra do juízo e releva do juízo.
Depois
desta advertência permito-me procurar uma passagem abreviada que me conduza à
essência através do ser; porque tal é a marcha de todo o espírito em trabalho
qualquer que seja o seu objecto; e é bom, para a própria clareza, que eu dê
aqui grandes passos. Pelo devir, nós estamos na experiência, mas a mais ingénua
que se possa conceber. O mundo de Heráclito, o alguma coisa, considerado como
suficiente, é a qualidade. Uma coisa é branca, pesada, húmida; é tomada assim
que ela devém. E tais exemplos mostram
imediatamente que a qualidade tomada em si se nega a si mesma. “Uma coisa é o
que ela é no seu limite e pelo seu limite” (Omnis determinatio est negatio).
O aprendiz pode esclarecer-se facilmente nesta marcha abstracta, redizendo-se a
si mesmo que o azul não é tal senão em relação a outras cores; o que não é logo
evidente, mas sê-lo-á se se pensar noutras qualidades como pesado, quente,
electrizado, que realmente não têm sentido a não ser pelas diferenças; porque
um corpo não pode ser dito electrizado senão pela relação a um outro. E quem
seguir esta ideia, de exemplo em exemplo, verá aparecer o deserto da essência,
e um mundo tecido de relações: porque pode-se repetir que a qualidade é sentida
imediatamente, e sem nenhuma comparação, por exemplo tal azul, não se pode
pensar esse azul fora do grau e da medida; assim é a qualidade mesma que nos
conduz à quantidade. Que se me perdoe franquear aqui vários escalões dum único
movimento. A minha intenção é fazer compreender que este caminho é aquele que
todo o espírito percorre, porém, sem saber o suficiente de quais são as abstracções
que deixa atrás de si.
É
assim que a passagem da qualidade à quantidade se encontrará feita sem que nos
demos conta. É por isso que é preciso voltar. No domínio da qualidade, o um não
é o outro, o um recusa o outro; mas também o um
tem necessidade do outro. Desta dupla relação, atractiva e repulsiva,
entre o um e o outro um, cada um suficiente e insuficiente, resulta o número, e
o próprio do número é ultrapassar-se a
si mesmo. “Grandeza, diz Hegel, ser variável, mas que apesar da sua variabilidade,
permanece sempre o mesmo.” Notar-se-á como se é prontamente conduzido a este
invariável devir, de que a sequência dos números oferece o exemplo mais
simples. A matemática seria então a representação perfeita do devir; todo o
espírito deve passar por aí. Tal é a pura essência; mas muitos gostariam de
pensar a unidade e a multiplicidade como coisas. O atomismo encontra-se
colocado entre qualidade e quantidade como num foco de contradições. Deve-se
chegar a ele, mas é preciso superá-lo. O átomo marca uma hesitação entre a
coisa que não pode ser uma coisa, e a ideia que não se quer reconhecer nessa
coisa. A verdade do átomo é a quantidade, e a quantidade desenvolve-se através
do número, do grau e da medida, Encontrareis, no próprio autor, amplos e
lúcidos desenvolvimentos sobre estas difíceis questões. Mas não devo perder de
vista o conjunto.
Quantidade,
é a qualidade suprimida. Notareis em Hamelin o caminho inverso. Da relação, que
está no começo de tudo, nasce a quantidade; e, pela insuficiência da quantidade,
que é exterior a si mesma, abstracta,
sem conteúdo, nasce a qualidade, unidade mais concreta. Não se trata de
escolher; isto não são dogmas. Vê-se bem que Hamelin vai, como o seu mestre
Renouvier, até um monadismo, por ter
tomado a qualidade como um refúgio depois da abstracta quantidade. Passar da
quantidade à qualidade, é voltar a si e afastar-se do mundo: é tomar a
consciência como supremo concreto; tal é o movimento Hameliniano, que é o
idealismo. O movimento Hegeliano dirige-se pelo contrário ao objecto, ou melhor
faz-se todo no objecto, como o primeiro termo o exige. O ser não é mais o ser
do eu do que o ser das coisas, e a qualidade ingenuamente pensada, é a
qualidade dos objectos; do mesmo modo, o átomo é primeiro tomado como objecto;
e é tomada como objecto que a essência será insuficiente e oca; o que exigirá
uma natureza. O eu, nestes trâmites, não aparece a si mesmo; a consciência de
si supõe outras condições, fisiológicas e políticas. É a partir do conjunto que
é preciso julgar, e Hegel parece-me mais perto do que Hamelin de representar a
marcha comum do espírito; porque, de facto, o atomismo e a matemática universal
não são primeiros pensamentos. Eles supõem antes deles o que se pode chamar a
sofística do ser, e a qualidade superada. Este movimento é de toda a ciência. E
prevê-se que Hegel vá primeiro ao objecto e à verdade do objecto por uma via
tantas vezes seguida. O eu perde-se primeiro neste materialismo da quantidade,
abstracção que se ignora, e só se reencontrará numa outra relação à natureza,
que fará nascer o eu concreto e universal ao mesmo tempo. Por isso, e por
oposição, compreende-se que não haverá
Filosofia da Natureza em Hamelin; e isso merece grande atenção. O superior
sustentado pelo inferior e salvando-se daí por real civilização, é toda a Filosofia
do Espírito de Hegel. Limito-me agora a esta observação, que o leitor não
deixará de continuar.
Pela
quantidade, passamos à essência; e eis o progresso em resumo: “ No ser tudo é
imediato; na essência tudo é relativo.” A essência, é o que nós chamamos
ciência, ou representação do Universo por números, distâncias, movimento,
força, energia. Que uma tal ciência deixe escapar o ser real, que não explique
o vivo, e ainda menos o pensante, já se o mostrou mil vezes. Mas é refutar em vão.
A essência é um momento do pensamento, um momento abstracto pelo qual é preciso
passar, sem o que não se pode superá-lo. O arco íris não é mais do que uma lei
ou uma composição de leis; a chuva, na mesma. Estas abstracções não são no
entanto nem arco-íris, nem chuva. Tal é o deserto da essência. É o real sem
nada de real.
Mas
onde está o progresso a partir do ser? Nisto que, pela elaboração da
quantidade, a identidade pura e a negação estão agora juntas. O mais e o menos
substituíram o sim e o não. Sim e não, ao mesmo tempo que se supõem,
excluem-se; mais e menos supõem-se, e são sempre pensados em conjunto. A
oposição é realizada. “A via para o leste é ao mesmo tempo a via para o oeste.”
O positivo é negativo do negativo, como o negativo é negativo do positivo. As
ideias enlaçam-se. O que era apenas
abstracto e idealidade pura na quantidade quer
ser agora o estofo do mundo. Mas,
porque é a relação que existe, e de alguma maneira a relatividade em si,
compreende-se esta contradição que está na essência e que leva a dizer que ela
só aparece, e que é só fenómeno. A existência assim representada é apenas uma
casca, e o termo correlativo é a coisa em si, incognoscível pela sua natureza.
Tal é a posição de Kant. E porque, a partir desta mesma posição, a coisa em si
não explica de modo nenhum o fenómeno, do mesmo modo que o conhecimento do
fenómeno por mais avançado que se queira não nos aproxima da coisa em si, eis
que a ciência do ser se nega a ela mesma, e que, como diz Hegel, o fundamento
ou razão de ser se reduz ao próprio fenómeno. Porque a atracção, por exemplo,
acaba por dizer como é o sistema solar. “ O que sai da razão de ser, é ela
própria, e é nisso que reside o formalismo da razão de ser.”
Todo
o homem que se instrui passa do ser à essência, e ao extremo da essência, que é
o fenómeno. Eu quero explicá-lo por um único exemplo, centro ilustre de
disputas, é o movimento. O movimento não é; o movimento passa continuamente do
estar aqui ao já não estar aqui; reconhece-se a lógica do ser, e a impotência
do sim e do não. Mas continuemos. O movimento não é uma qualidade que pertença
a um ser; não é inerente. Determina-se em quantidade; uma distância aumentou, a
outra diminuiu. O movimento não existe em si; pelo contrário, determina-se pelo
exterior, e é todo exterior. O movimento é relativo. Bom. Mas então é só uma
ideia, ou uma representação; é apenas essência, quer dizer representação
calculada e construída, e, como se diz, teoria duma coisa. Só os ingénuos
acreditam que o nosso mecanismo universal é realmente o mundo. Da realidade
somos então remetidos para a idealidade; mas o que é a idealidade sozinha?
Lagneau dizia: “Se só há ideias, já não há ideias.” Assim a essência é
necessariamente pensada como representando uma existência, que no entanto ela
não pode alcançar. O que exprime Hegel dizendo que a essência é por si mesmo
aparência. Não aparência imediata, como seria um fantasma, mas aparência que
exige e contém o seu contrário, a coisa em si. Tal é o fenómeno. Poder-se-ia
fazer as mesmas observações sobre o espaço, que, como o movimento, está fora de
si mesmo e é pura relação. Admirar-nos-emos mais de encontrar numa qualidade
como o calor a mesma dialéctica; no entanto, se disserdes que um corpo está
quente, deveis pensar também que ele está frio, como Platão já o sabia dizer. O
grau fixa-nos; mas passamos então à quantidade. É preciso que eu deixe o leitor
prosseguir estas análises que são sem fim. Talvez se veja o bastante o que é a
passagem à essência, não para Hegel somente, mas em todo o espírito. O que quer
que pretendam dizer os nossos preguiçosos historiadores, não se trata aqui de
julgar Hegel, mas de julgar os nossos próprios pensamentos. A essência é o
domínio próprio em que os homens de entendimento se elevam prontamente pela
matemática, e sobre o qual pretendem ficar. Estas ideias sobre o mundo são
falsas? São verdadeiras? Elas são falsas
se ficarmos por elas; são verdadeiras como passagem, verdadeiras a título de
momentos suprimidos e conservados. No juízo dos antigos atomistas, é a essência
que existe; mas como eles não reflectem sobre isso, e ignoram o seu próprio
pensamento, debatem-se com as contradições, as relações, as correlações, como o
movimento, o vazio, o cheio; debatem-se com elas como se fossem coisas; até
que, pela reflexão de que a coisa em si mesma nos permanece perfeitamente
desconhecida, eles compreendem que a essência é apenas fenómeno. Por este
movimento de reflexão, o vazio da essência desenvolve-se, se se pode assim
dizer, e torna-se explícito, e isso aproxima-nos do conhecimento do espírito.
Hegel diz bem: “O fenómeno vence o simples ser.”
A
dialéctica da essência é muito bela de seguir, através de Possibilidade,
Realidade, Necessidade, depois pelos três termos, que os Kantianos conhecem
bem, que são Substância, Causalidade, Acção Recíproca. É bem a lógica
transcendental, mas em movimento, o que vai projectá-la para fora dela mesma,
como a lógica do sim e do não se achou lançada para fora de si mesma. Por
exemplo, nós pensamos por substância, como químicos, ou por causas, como
físicos, ou por acção recíproca, como fazem os astrónomos. Só que, enquanto que Kant justapõe, Hegel
supera. Pela substância, tudo seria imutável; assim, somos remetidos para
pensar a mudança pela causa; e a causa passando ao efeito, sem o que não seria
causa, reencontramos a fuga de todas as coisas. Mas este desenvolvimento linear
não representa a realidade. É preciso manter a causa pelas condições e ligar
todo o devir a si mesmo, o que num sentido reconduz à substância, quer dizer ao
todo como condição das partes. O terceiro princípio é assim a verdade dos dois
outros. Kant tinha visto que o terceiro termo reúne os dois primeiros, mas aos
olhos de Hegel esta descrição imóvel é sem verdade. A verdade está na passagem.
O facto é que todo o homem, diante dum
envenenamento ou duma inundação, pensa primeiro a substância, arsénico ou água,
depois a ligação de causa a efeito, decomposição ou demolição; mas é preciso
que ele consiga pensar as correlações, quer dizer a acção recíproca de todas as
coisas, porque o arsénico tanto é veneno, como remédio, e a chuva não é
absolutamente causa da inundação, mas também os ventos, as marés, e até os
trabalhos dos homens. Por estes exemplos quero dar ao leitor o desejo de seguir
toda esta dialéctica, que me parece sem falta. Resta preparar a passagem
próxima, que é importante e difícil, e ao mesmo tempo dar alguma ideia da
obscuridade Hegeliana, e também do juízo Hegeliano, que não tem equivalente.
A
relação é o estofo do fenómeno. Quando se diz que o fenómeno aparece,
exprime-se esse desenvolvimento para o
outro, para a condição, para o exterior, que se destina sempre a salvar
a unidade e a totalidade do mundo fenomenal. Mas aqui oferece-se o jogo sem fim
das oposições entre forma e conteúdo, entre exterior e interior. Porque
invencivelmente tudo é forma no conhecimento fenomenal, e tudo nele é exterior.
Mas não se pode impedir de se procurar nele um conteúdo. Eis a contradição; a
energia é apenas quantidade constante, a matéria é só peso ou massa; tudo se
resolve em relações; e, ao nível em que estamos, estas oposições não têm fim.
E, segundo Hegel, esta exigência dum conteúdo exprime-se pela força, a força
dos físicos, que quer ser substância e não o pode ser. A força é qualquer coisa
de mais interior do que o movimento; ela é como que o interior do movimento;
pelo menos quereria sê-lo; todavia, olhando mais de perto, ela dissolve-se em
relações. A força de gravitação não está nem no corpo que cai, nem na terra,
está entre os dois, depende dos dois. Assim flutuamos entre duas concepções: a
força é diferente das suas manifestações; a força não é mais do que a sua
manifestação. É claro que o pensamento, ou antes a acção pensada, seria aqui
requerida para reunir matéria e forma; e é de facto por aí que Hegel nos conduz,
o que redunda em pensar a identidade da forma e do conteúdo, ou então do
interior e do exterior. Mas sobre isso Hegel só tem profundezas. E eis aqui
alguns dos termos que ele antecipa: “ O que só é um lado interior é só também um lado exterior, e inversamente.” E
citando a frase de Goethe: “É preciso quebrar a membrana exterior”, Hegel
conclui enigmaticamente: “Na realidade quando ele considera a essência da natureza como uma existência
puramente interior, é então que ele só conhece a membrana exterior.” Decerto
posso compreender por uma espécie de prática, que não é retirando-me do mundo
exterior que eu penetrarei no interior do espírito. Creio compreender também
que não se ganha muito em meter o corpo no espírito, em vez de alojar o
espírito no corpo. É notável também que a matemática universal seja
precisamente o materialismo universal. Porém, esta unidade da forma e do
conteúdo, no grau em que estamos, faz-se
de algum modo apesar de nós. Estas separações e reuniões não devem ficar no
estado abstracto; é claro que vamos à conquista do mundo moral e político, não
dum salto, mas ultrapassando segundo a
ordem as representações insuficientes cujo amontoar barra o caminho a muitos.
Hegel antecipa nesta passagem, como um pensador que sabe para onde vai: “Quando
o homem, diz, só é moral interiormente, e o seu exterior não se acorda com o
seu interior, um dos dois lados é tão falso
e tão vazio quanto o outro.” A mesma coisa, e mais evidentemente, se
deve dizer da moralidade puramente exterior. A sociedade num sentido é exterior
e estranha à moralidade; mas também a sociedade assim pensada não tem qualquer
verdade. A verdadeira sociedade está intimamente ligada à moralidade; ela como
que lhe é substancial. Mas isso não será suficientemente compreendido sem uma longa
sequência de meditações; e é por essas mesmas meditações, e não de outra
maneira, que a união se fará.
“Quanto
ao que diz respeito à natureza, é preciso dizer que ela não é apenas exterior
para o espírito, mas que é ela própria a exterioridade em geral, e isso neste
sentido de que a ideia que faz o conteúdo comum da natureza e do espírito só
existe exteriormente na natureza, e, por isso mesmo, só nela existe
interiormente.” É preciso vencer esta obscuridade cheia de sentido. É preciso
compreender que na criança, “a razão é puramente interior primeiro, e por isso
mesmo puramente exterior.” “A razão torna-se exterior pela educação, e
reciprocamente a doutrina exterior devém própria e interior.” É da mesma
maneira que os políticos concebem, muito superficialmente, a pena como somente
útil por exemplo. A verdadeira pena é apenas a consequência da vontade do
culpado. Por isso não se deve ler a história como uma sequência de
circunstâncias que determinaram pelo exterior a conduta dos grandes homens. Na
acção real, a vontade e as
circunstâncias nunca se separam. “Os grandes homens quiseram o que fizeram e
fizeram o que queriam.” É claro pelo menos que os nossos fracos pensamentos são
aqui energicamente sacudidos. Como separar o pensamento do escultor e o golpe
do martelo? Toda a acção é feita de detalhes; imagina-se um pensamento que não
descesse até aí? Nós sonhamos a acção; o grande homem pensa e faz a sua acção.
É o momento de desprezar o entendimento que sempre separa; porque estamos nessa
passagem em que a lógica perece no seu
contrário.
A
lógica Hegeliana desenvolve-se em três momentos, que são o ser, a essência e a
noção. Os dois primeiros momentos estão
agora atrás de nós. A essência, à medida que
se determina através de substância e causalidade até à acção recíproca,
apenas esclarece melhor o seu carácter puramente fenomenal; a essência é apenas
relação e inexistência; temos grande necessidade do ser. Mas chegaremos ao ser
puro e simples? Seria recomeçar, atravessar de novo a dialéctica do ser, e voltar
à essência. O fenomenismo, momento ultrapassado e conservado, conduz-nos a
outra coisa, à existência do sujeito que pensa as relações. Porque a essência aparece finalmente
indivisível, pela acção recíproca, e assim faz-nos apreender o verdadeiro carácter
do sujeito, que é a unidade absoluta, a totalidade absoluta, a interioridade
absoluta. O eu, diz Hegel, é um exemplo da noção, mas a planta, o animal, que se desenvolvem a partir do gérmen, são-no
também. Passar ao eu, desenvolver o eu, seria ir depressa de mais, seria querer
acabar demasiado cedo com a lógica; seria esquecer a filosofia da natureza. A
exposição da noção do eu pertence à filosofia do espírito, que supõe ela
própria a filosofia da natureza; e isso quer dizer que o eu se desenvolve num corpo
vivo e no universo, por uma libertação e uma vitória. Aqui, nesta ponta extrema
da lógica, em que nos encontramos, são pensamentos que saem de pensamentos. Nós
procuramos as condições dum pensamento verdadeiro; procuramo-las no juízo e no
raciocínio, examinando ainda, e remetendo para o nível do ser ou da essência os
juízos sem verdade. Neste exame consiste a doutrina da noção, que tem por
objecto fazer-nos compreender que os
juízos verdadeiros e os raciocínios verdadeiros supõem um ser de natureza que,
fazendo-os, se desenvolve. E esta concepção do silogismo real está de tal modo longe dos nossos hábitos que eu
creio útil insistir principalmente nisso. Esta doutrina do juízo, e do
silogismo ou raciocínio que desenvolve o juízo, é muito amplamente exposta em
Hegel. Não percamos o fio condutor. Há juízos segundo o ser e raciocínios
segundo o ser; tal é o conteúdo principal da célebre lógica de Aristóteles. A
este nível um juízo como este: Sócrates
é corajoso, não se distingue deste outro; o homem é mortal, nem deste outro: o
ouro é um metal; e estes juízos entram
em silogismos por outros juízos que aproximamos daqueles; um homem corajoso não
teme a morte, Alexandre é homem, um metal é fundível. O laço de raciocínio é
simplesmente formal, quer dizer de gramática. Os juízos segundo a essência são
juízos de ciência propriamente falando, como: este corpo é pesado, quente,
electrizado; há entre o grau, as relações, e uma necessidade das relações,
necessidade que o raciocínio segundo a essência desenvolverá. Por isso, achamos
agora silogismos que apreendem a natureza de mais perto. A indução, a analogia,
o silogismo hipotético e disjuntivo, marcam os graus do raciocínio segundo a
essência. Notar-se-á que a palavra Silogismo é tomada aqui no sentido mais extenso. E, o que me
parece principalmente de notar, é o silogismo hipotético, pelo qual se
demonstra por exemplo que se um triângulo é suposto, a soma dos seus ângulos é
necessariamente igual a dois rectos. Aqui se mostra o vazio da essência; porque a necessidade declara-se, mas o sujeito
falta, a existência falta; um tal raciocínio só apreende a forma duma
existência possível. Do mesmo modo, se se quer demonstrar que todo o metal é
fusível, ou que o ouro é um metal, será preciso pressupor uma definição do metal
por relações recíprocas entre uma propriedade e uma outra. Um género, como metal, corajoso, homem, é
sempre hipotético; esta condição, que só é implícita no raciocínio segundo o
ser, é explicitamente colocada na essência, de modo que a questão de saber se
Sócrates é corajoso, ou não, se Sócrates teme a morte ou não, é substituída, ao
nível da essência, por esta outra: quais são as relações necessárias entre
coragem e temor, quer dizer entre atributos; o sujeito perdeu-se. Segundo a
essência, tudo consiste em relações entre atributos, velocidade, massa, peso,
coragem, temperança, e não há mais sujeitos.
A
noção é o sujeito verdadeiro. O juízo segundo a noção é aquele que liga o
atributo ao sujeito, mas no próprio sujeito; o raciocínio segundo na noção é o
que desenvolve a natureza do sujeito. “A planta, desenvolvendo-se do seu
gérmen, faz o seu juízo”; ela faz o seu juízo e o seu raciocínio, compreendei
que ela se torna cada vez mais o que é. Este exemplo, que primeiro surpreende,
exprime de facto que o juízo segundo a noção não junta ao sujeito um atributo
que lhe seria estranho, mas antes desenvolve o sujeito mesmo. Leibniz,
aristotélico ele também, tirou grandes paradoxos desta simples proposição que
em todo o juízo verdadeiro o atributo é inerente ao sujeito. A fim de seguir o
pensamento de Hegel e de o acordar mais facilmente com o nosso, lembremo-nos de
que os exemplos que ele dá do juízo segundo a noção são aqueles que têm por
predicados o verdadeiro, o belo, o justo. Quando digo que um homem é justo, é à
sua própria noção que o comparo. Um atleta que é belo, é um homem desenvolvido.
Uma bela casa é por excelência uma casa. “O predicado, diz Hegel, é a alma do sujeito, pelo qual este, enquanto
corpo desta alma, é completamente determinado.” O exemplo de Sócrates corajoso
é aquele que melhor esclarecerá estas
fórmulas temidas em que se nota tão bem a obscuridade Hegeliana.
Um
juízo desenvolve-se por provas, quer dizer por mediações. Sócrates é corajoso,
porque aquele que despreza a morte é corajoso, e Sócrates despreza a morte;
porque aquele que julga sãmente do que é de temer é corajoso, e Sócrates julga
assim; porque aquele que é senhor de si mesmo nos perigos, etc., aquele que põe
a liberdade acima dos outros bens, etc. Eis muitos silogismos possíveis, mas
segundo o ser, ou, melhor, segundo a essência, conforme os atributos forem mais
fortemente ligados. Tais determinações são exteriores. Não é assim que Sócrates
é corajoso. Sócrates fez-se corajoso pelos seus próprios pensamentos através de
diversas situações, e os seus pensamentos consistem de facto em mediações do
género daquelas que eu propunha; Sócrates julgou que a morte não era de temer,
que o tirano era infeliz, que uma vida escrava não era digna dum homem, e assim
do resto; somente aqui estes pensamentos são verdadeiros; e o próprio Sócrates
é um homem verdadeiro, um homem segundo a noção, mas digamos antes Sócrates ele
próprio, Sócrates segundo a sua própria noção. Percebe-se que o que é
necessidade no juízo exterior é aqui liberdade no sentido mais pleno. Assim a
noção é um ser diferente do ser abstracto; é um ser que se desenvolve do seu
próprio fundo, um ser que é em potência tudo aquilo que será. Recordemos as
fórmulas aristotélicas, segundo as quais o possível abstracto não é realmente possível,
e o real possível é o possível para alguém. Só existem no mundo sujeitos
verdadeiros, que produzem eles mesmos os seus atributos. Se todo o
desenvolvimento é interior absolutamente, se a verdade das ideias é realizada como Sócrates por Sócrates, e se não há
nenhum juízo verdadeiro fora dum tal desenvolvimento, é preciso dizer que todo
o ser pensa e que todo o pensante é natureza. “Deus é o vivo eterno e
perfeito”, esta fórmula de Aristóteles pela qual Hegel encerra a sua Enciclopédia
dá-nos o termo desta construção gigantesca. E estamos à altura de compreender
como se faz a passagem da lógica à natureza. Porque nós procurávamos o objecto
e primeiro perdiámo-lo; encontramo-lo sob a forma de sujeito real; nada de
diferente pode ser; nada de diferente pode levar atributos. A noção era
primeiro pensada como subjectiva, mas uma vez que toma o valor de objecto, e
que é o mais vivo na natureza que é mais noção e objecto, a noção recebe
finalmente o grande nome de Ideia, e a Ideia é a Natureza.
Discerne-se
facilmente o que é aristotélico nesta doutrina. Em Hegel como em Aristóteles o
pensamento é objecto e natureza, e esta filosofia deveria ser dita naturalista.
Isso significa que é do vivo, do dormente, do animal que é preciso tirar
pensamento. Nenhum pensamento pode vir a nenhum ser do exterior; é preciso que
ele desperte por si, é preciso que seja desenvolvimento interno. A sabedoria
não se exporta. Mesmo a constituição dum povo é alguma coisa de interno e de
individual, porque é preciso sempre que a forma e o conteúdo sejam idênticos; e
isso vai directamente contra todas as ideologias do género platónico. O que é
imitação e importação é sem verdade, como a virtude emprestada do vizinho. A
passagem do sono à vigília é o tipo do pensamento verdadeiro. A civilização
verdadeira é feita destes pensamentos verdadeiros, menos perfeitos num sentido
do que os pensamentos lógicos, mas pensamentos reais e não já somente formais.
Do mesmo modo, o verdadeiro artista cria segundo a ideia interior e o falso
artista segundo a ideia emprestada. “O ofício, dizia Aristóteles, é princípio
num outro; a natureza é princípio nela mesma.”
Tudo
isto é aristotélico. O que é próprio de Hegel? É o desenvolvimento sem
fim. Aristóteles, partindo dos vivos
perecíveis, chega a conceber um vivo eterno, um acto puro. Tudo é perfeito e
acabado, e a própria mudança traz a marca do perfeito por esses retornos
eternos que estão explicitamente em Aristóteles. Neste sentido, há na filosofia naturalista de
Aristóteles alguma coisa do que Platão
tinha predito, talvez; porque toda esta mudança é então só ilusão? Fica
qualquer coisa desta absoluta vaidade em Hegel, pois que o devir é como que um
jogo divino que não tem objectivo, que morreria no seu objectivo. Mas talvez
que nós não saibamos sustentar esse pensamento; talvez essa filosofia do devir
seja mais poderosa do que aquele que a formou. O devir absoluto é qualquer
coisa de mais que o acto puro de Aristóteles. Os Alemães dizem algumas vezes
que esta sabedoria lhes é própria; de qualquer modo, eles foram por ela
profundamente influenciados. Os Marxistas, que são Hegelianos, desenvolvem esta
ideia pela acção; e com isso, o quer que seja que pensem, estão na doutrina. Porque é conforme a
doutrina pensar que pela doutrina morre o pensador, deportando-o
irresistivelmente para qualquer coisa de novo, sempre. É que existe qualquer
coisa de positivo, ou melhor de activo, nesta recusa sem fim. A dialéctica
recomeça sempre no menor dos nossos pensamentos, e é por aí, como se
compreenderá melhor no seguimento, que os nossos pensamentos são acções. E é
isso pensar, é isso que é verdadeiro. A perfeição, não importa em que género,
está sempre por fazer, e exactamente no fazer. Neste saber, que seria o grande
segredo, há graus, e como que uma filosofia da filosofia, que seria a
filosofia. Por exemplo pode sustentar-se, ainda abstractamente, que um estado
social nunca é verdadeiro nem justo, que chama a sua própria negação, e que o
destino do homem é destruir criando. Mas pelo interior julgar-se-á melhor decidindo
que o que faz o mal duma instituição, por muito perfeita que se suponha, é o
retorno ao ser abstracto e mecânico, é o bem sem alma, e a preguiça do
pensamento. Tudo cairia por si no sistema morto. Assim julgar, no sentido
interior, eis o devir, eis o que há de divino em nós. O que está em repouso não
pode ser bom. É o que representa a natureza pela morte e o nascimento sem fim;
mas a simples natureza não faz mais do que se recomeçar; disso o espírito, que
é a vida da vida, se liberta pela história; a história é o verdadeiro.
Desenvolvimento que o Aristotelismo falhou, Falhou em quê? Por não ter posto em
marcha a dialéctica como verdade. Tal é o sentido da Lógica Hegeliana. A ideia
verdadeira não é repouso; a ideia é activa; ela só tem valor superando-se.
Pensar não é contemplar, é opor-se a si, dividir-se contra si, e melhor se
unir, pela negação do carácter exclusivo do sujeito, e é ciência; pela negação
do carácter exclusivo do objecto, e é acção;
o que leva a realizar a identidade da forma e do conteúdo. E uma vez que
o desenvolvimento lógico conduz a pensar, sob o nome de real, esta identidade
encoberta, e que deve tirar tudo do seu próprio fundo, a Ideia, essa intuição
de si ainda não desenvolvida, só podia ser natureza, ou prisioneira. Não entendais com isso que a natureza saia da
lógica por uma dedução segundo a identidade; pelo contrário, a natureza é o que
falta à lógica; mas isso mesmo esclarece a natureza; ela é ainda enigma, já não
é completamente muda.
Alain
(Tradução de José Ames)