“Que se vós somente entendeis o que é muito perfeito no género dos corpos, isso não é nada o verdadeiro Deus.”
(Respostas às Segundas Objecções.)
É
preciso primeiramente considerar aqui com um olho cartesiano, e sem nenhuma
nuança de religião, esta imensa existência que nos possui em todas as partes,
que é de tal modo mais poderosa do que nós, mas que é, no entanto, apenas mecânica.
Mecânica, quer dizer exterior a si. Esta ideia será mais longe, eu espero,
tirada completamente para fora da imagem, e saber-se-á o que é matéria. Por
isso não há nada nos Princípios, onde, de turbilhões em turbilhões, este
universo está como que exposto, a menor marca de temor ou somente de espanto. Antes
bem, Descartes exprimiu com força a imperfeição radical que está ligada a este
género de grandeza, e que consiste nisto que nada aí é por si, e que esta espécie de ser por defeito nos remete
sempre, seja para o que está à sua volta, sem o que não seria como é, seja para
as suas partes, pelas quais é composto. Esta dupla relação, que é sempre de
composto a componente, define aquilo que Hegel chamava de falsa infinidade;
esta ideia é profundamente cartesiana. Por isso não é por aí que devemos
procurar essa perfeição que existe por direito, e da qual o menos perfeito é
uma consequência e uma dependência. Mais uma vez, só se trata aqui de não tomar
a imagem pela ideia, nem o medido pelo que mede. Nada adverte melhor talvez a
este respeito do que a preocupação que mostra o nosso filósofo, nas suas Respostas,
em não ser tomado por um
S.
Tomás renovado apenas. Ora, S. Tomás
argumentava assim. Pelo nome de Deus, entende-se um ser tal que nada de maior
possa ser concebido; mas é maior ser de facto e no entendimento do que ser
somente no entendimento; Deus é, portanto, pela sua definição, efectivamente e
no entendimento. Este argumento agrada. Mas quem não vê que o exterior aí é
tomado como grandeza verdadeira e perfeição verdadeira? Quem não vê que a
imaginação aí quer expor as suas grandezas de aparência, na verdade
insuficientes por essência? Este argumento encontra-se sob diversas formas no
curso da história, e atribuía-se já a Aristóteles, mas falsamente ao que creio,
o argumento célebre da primeira causa, ou do começo absoluto; as causas,
dizia-se, remetem-nos para outras causas, e nada é suficiente; é preciso pois
parar. Basta dizer aqui que a filosofia de Aristóteles, embora profundamente
oposta à de Descartes, como a doutrina do animal máquina é suficiente para o
mostrar, não se contenta no entanto em perseguir a relação exterior segundo as
armadilhas da imaginação, e que, pela relação da potência ao acto, ela toca a
grande ideia que nós devemos formar agora. Não é menos verdade que aos olhos de
Aristóteles é o universo que encerra o grande segredo, universo, de que Descartes, nisso moderno e
mais do qualquer de nós, pelo contrário se afasta, e por uma visão de
entendimento, como talvez se perceba no fim. Mas como não se pode dizer tudo
duma vez, basta presentemente não querer procurar a perfeição nessa poeira
cósmica, de mil maneiras agitada e sacudida, e enfim saber que é na direcção do
sujeito pensante que é preciso buscar perfeição. Sem esta observação, que em
Descartes em toda a parte retorna, e que nos remete sempre para o “Eu penso,
logo existo”, as célebres provas, sobretudo reunidas como o estão no
Discurso, seriam impenetráveis.
Este
comentário pretende ser útil ao leitor. Não dispensa em nada a leitura. O
melhor é pois que eu reencontre a ideia capital seguindo os caminhos que me
parecem os mais naturais e fáceis; depois disso, teremos ocasião de reconhecer que as célebres
provas de Descartes só têm um sentido e só podem ter um sentido. Descartes
ganhou, pois, esta espantosa vitória de se igualar, pela dúvida, ao príncipe das trevas ou génio maligno,
suposto tão poderoso quanto se queira. Donde me vem, pois, pergunta ele, este
poder que desafia todo o poder? Não decerto de que eu formo tal ideia de
geómetra e depois tal outra. Seguramente, estas ideias por completo me
satisfazem. Mas, além de que a dúvida hiperbólica as atinge ainda desde que as
componha e conduza um pouco longe, pois que então será preciso que eu me fie na
minha memória, é bastante claro para mim que eu não sei tudo, e que há, mesmo
na arte de combinar, imensos domínios que são tão inacessíveis para mim como
outros céus atrás dos céus. Sei que me engano muitas vezes, mas ainda é mais
evidente que eu ignoro muito e sempre ignorarei muito. Como entendimento, eu
sou, pois, limitado; conheço aqui a minha imperfeição, o que supõe já que eu
tenha alguma ideia da perfeição. Mas nem tudo está dito ainda. Esta ideia da
perfeição, que me levaria a procurar como que à volta das minhas ideias alguma
totalidade de ideias, é ainda negativa. Dizer que eu não sei tudo é a mesma
coisa que dizer que eu não estou em todo o lado; assim a infinidade dum
entendimento assemelha-se à falsa infinidade das coisas, as quais sempre
remetem para outras. E, no fundo, se eu fosse só entendimento, ignoraria, não saberia que ignorava. Mas
porquê procurar por aí, quando eu tenho parte na perfeição, na positiva
perfeição, através deste poder de duvidar que me torna mais forte do que todo o
poder de enganar? Deus é por aí, e não
contra mim e inimigo, mas por mim e amigo. Eu tenho socorro contra o génio maligno, e este
socorro é de Deus sem dúvida nenhuma. Ora, este poder de duvidar, é o livre
arbítrio mesmo. E Descartes retira-nos
aqui toda a ocasião de hesitar sobre
aquilo que nos quer fazer entender, notando que não se pode ter mais ou menos
livre arbítrio, mas que se o tem infinito, ou então não se o tem de todo.
Todavia, agarrando esta ideia de mais perto, eu quero por uma vez julgar, como
deste ponto elevado da dúvida, donde vejo longe, essa falsa infinidade e toda
exposta. Não somente eu a julgo, segundo essa relação exterior que supõe, do
outro lado do limite, sempre qualquer outra coisa; mas bem mais, descobrindo
esta lei de ultrapassar, que me leva para longe, e mesmo mais longe do que o
mais longínquo, eu apercebo-me que o poder de julgar o limite implica de
antemão que todo o limite será ultrapassado. E a relação próxima de mim, como
de um a dois, implica de antemão toda a sequência dos números, e toda a
sequência de sequências. Bem longe de poder prever que esta adição de objecto a
objecto acabará por ultrapassar o meu poder de acrescentar, pelo contrário, eu
percebo claramente que isso nunca acontecerá. Assim, aparece, de antemão
implicando a infinidade das partes, assim aparece a outra infinidade, que é sem
partes. Enfim se mostra o poder de julgar, logo superando, mesmo no conceber,
toda a acumulação possível do conceber.
Deus
não é, pois, entendimento perfeito; e, do mesmo modo que não se trata de passar
do pequeno ao grande, e do que só ocupa um lugar ao que ocuparia todo o lugar,
da mesma maneira, e pelas mesmas razões, não se trata de passar do que sabe uma
coisa e depois doutra ao que saberia tudo. A relação exterior mostra-se ainda aqui, por isto que a
variedade das ideias só tem sentido como um reflexo da variedade das coisas,
quer dizer desta existência mecânica que nos remete sempre para outro objecto.
Esta extensão de ideias e este deserto de ideias não nos aproxima em nada da
perfeição, mas faz-nos sentir pelo contrário uma imperfeição radical. Isso
aparecerá ainda melhor quando estivermos na teoria do erro. Mas, desde agora, é
preciso afastar esta interpretação, comum,
pode-se dizer, a todos os Cartesianos pequenos e grandes, e que Spinoza pôs
em forma para o temor de todos, quero dizer essa imensidade de entendimento onde tudo está compreendido e
contado, “estendido e abstracto” , como diz Lagneau; enfim esse Deus objecto,
para não dizer esse Deus coisa.
Deus
é espírito. Sobre isso todos estão de acordo.
Mas o que é o espírito? Eis o ponto. Não é sem razão que eu há pouco
pedia um tempo de paragem, e uma suficiente meditação sobre esse poder de
duvidar em rigor de tudo, que é a alma de todos os nossos pensamentos. Agora
tentemos reencontrar pelos nossos pequenos meios essa poderosa ideia, que
Descartes não explica, mas que em contrapartida coloca em todas as suas
avenidas, sem nunca a atenuar. Não é de bom senso que saber uma coisa depois de
outra não é saber melhor, mas que é sempre a mesma operação, bem ou mal
recomeçada? Nós todos honramos, sob o nome de juízo, um saber limitado, mas
perfeito nos seus limites. E nenhum sábio jamais substituiu o problema de saber
bem pelo problema de saber muito. Não haveria verdade para ninguém se o saber
aumentasse à maneira das coisas e dependesse da extensão. O mesmo é dizer que
as provas não chegam até nós como meteoros, que forçassem os felizes
testemunhos. Pelo contrário, todas as provas são voluntárias e feitas, e nunca
são sofridas, e a reflexão não cessa jamais de experimentar as ideias e de as
dissolver pela recusa; tal é a alma das provas. “Nesse sentido, diz Jules
Lagneau, o cepticismo é o verdadeiro.” Esta forte ideia não é fácil de
desenvolver. O majestoso edifício dos conhecimentos adquiridos a isso se opõe
sempre. Descartes pelo menos iluminou a estrada e até a ofuscar, pela doutrina
da liberdade em Deus. Embora seja surpreendente sustentar que as verdades são
tais em Deus porque ele as quer, não é mais, no entanto, do que uma forte maneira
de dizer o que se mostrou aqui acima bem mais perto de nós, a saber, que a
perfeição está acima do entendimento.
Voltemos
ao humano mais próximo; não temos que voltar de muito longe. Eu creio que a
doutrina que acaba de ser sumariamente exposta é o texto das nossas meditações
por vir, digo práticas e urgentes. O livre pensamento, tanto e tão inutilmente
caluniado, tem sem dúvida nenhuma um valor de religião. Mas haverá sempre duas
religiões, das quais uma medita e a outra administra. A oposição do jansenista
e do jesuíta não é dum momento; porque o espírito humano não vive dele mesmo;
ele precisa de verdades e de provas, e dum acordo de assembleia. Todavia, cada
um sente bem também que não haveria provas se Deus não estivesse acima das
provas. Haveria portanto uma recusa a este mundo de coisas, e também a este
mundo de provas acabadas e finitas, uma recusa que seria a alma da religião.
Aqui está o germe da irreligião, e os teólogos, que conduziram uma guerra tão
dura contra Descartes, sentiam-no bem. Esse mundo tomista, esse mundo de provas
administradas fará sempre intimação e ameaça ao solitário que toma por centro
de religião a função ascética de duvidar algumas vezes de tudo. Mas sempre, em
contrapartida, o Atlas que carrega estas
coisas fará pelo menos o gesto de as depor, ousando dizer, e por Deus, que não
há coisas julgadas no domínio do espírito. Em resumo, a heresia não cessará
jamais de salvar a Igreja. Porque há duas maneiras de temer a Deus. O espírito
forte teme o Deus exterior; o espírito
fraco teme o Deus interior, fardo pesado com efeito. O invisível e o visível
desenvolverão sempre assim a sua oposição, que é correlação.
Em
Descartes, o acordo é feito, por uma visão superior às nossas vistas. Descartes
teve, como se sabe, visões proféticas na sequência do que ele fez voto de ir a
Loreto, e ali foi de facto. Jogos de imaginação, estes sonhos e estas
peregrinações, a respeito do pensador que escreveu as Meditações. Mas de
que Deus é primeiramente o Deus dos nossos pensamentos, o que vale dizer que
Deus é verídico, não se segue somente que nós apenas somos enganados
pelas nossas paixões; segue-se ainda que não há nada que seja falso nas
aparências, e que finalmente a estrutura do corpo humano disso deve dar conta.
Por exemplo, essa superstição que ele nos conta que tinha, de preferir os
rostos em que os olhos fossem um pouco estrábicos, só é falsa pelas razões de
fantasia que se lhe queiram dar; mas é verdadeira tanto quanto exprime uma
experiência ou impressão outrora recebida e que juntou essa espécie de rosto à
alegria de amar. Da mesma maneira essa aparência do sol a duzentos passos no
nevoeiro, tão oposta, à primeira vista, à ideia do sol que forma o astrónomo,
deve no entanto ser explicada, e é-o com efeito, pela estrutura dos olhos e
pelo nevoeiro. E é mesmo dessa aparência, medida com o retículo, medida que é
aparência ainda, que, por recusar e conservar em conjunto, o astrónomo se
aproxima de avaliar a imensa distância e, pela distância, a imensa grandeza, a massa, os movimentos. É
do mesmo modo que o ângulo é medido segundo o comprimento da sombra, e que
também o pau quebrado, aparência interrogada por séculos de homens, nos dá a
conhecer a superfície da água e o próprio movimento da luz. E se o pensar não
pode sempre confirmar o crer, porque seria preciso então saber tudo, pelo menos
em todas as nossa percepções é distinguido o que vem do corpo humano e que para
aí deve ser remetido, de maneira a que não haja mais ídolos; e é por
observações como esta, no seu amplo desenvolvimento, que se termina essa grande
ideia de que Deus não nos pode enganar. Assim aquele que melhor distinguiu
estas duas forças, de entender e de imaginar, é também aquele que melhor se
acomoda a juntá-las. Por certo ele vai a Loreto como vai a todos os lugares de
espectáculo e de sociedade, com vista a conhecer e experienciar a união da alma e do corpo; mas em dúvida ele
experimentava ainda aí qualquer coisa de melhor, o acordo destas duas forças, e
do mesmo modo que nesse sonho profético,
em que, sem dúvida, as imagens foram símbolos perfeitos. Mas é preciso ter
meditado durante muito tempo sobre o Tratado
das Paixões se se quer poder desenvolver esta medicina superior, à qual ele
deveu, a nele crer, prolongar a sua vida até à cinquentena, contra a predição
dos médicos.
Alain
(Tradução de José Ames)
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