terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

DEUS




“Que se vós somente entendeis o que é muito perfeito no género dos corpos, isso não é nada o verdadeiro Deus.”



(Respostas às Segundas Objecções.)


 

É preciso primeiramente considerar aqui com um olho cartesiano, e sem nenhuma nuança de religião, esta imensa existência que nos possui em todas as partes, que é de tal modo mais poderosa do que nós, mas que é, no entanto, apenas mecânica. Mecânica, quer dizer exterior a si. Esta ideia será mais longe, eu espero, tirada completamente para fora da imagem, e saber-se-á o que é matéria. Por isso não há nada nos Princípios, onde, de turbilhões em turbilhões, este universo está como que exposto, a menor marca de temor ou somente de espanto. Antes bem, Descartes exprimiu com força a imperfeição radical que está ligada a este género de grandeza, e que consiste nisto que nada aí é por si, e que  esta espécie de ser por defeito nos remete sempre, seja para o que está à sua volta, sem o que não seria como é, seja para as suas partes, pelas quais é composto. Esta dupla relação, que é sempre de composto a componente, define aquilo que Hegel chamava de falsa infinidade; esta ideia é profundamente cartesiana. Por isso não é por aí que devemos procurar essa perfeição que existe por direito, e da qual o menos perfeito é uma consequência e uma dependência. Mais uma vez, só se trata aqui de não tomar a imagem pela ideia, nem o medido pelo que mede. Nada adverte melhor talvez a este respeito do que a preocupação que mostra o nosso filósofo, nas suas Respostas, em não ser tomado por um
S. Tomás  renovado apenas. Ora, S. Tomás argumentava assim. Pelo nome de Deus, entende-se um ser tal que nada de maior possa ser concebido; mas é maior ser de facto e no entendimento do que ser somente no entendimento; Deus é, portanto, pela sua definição, efectivamente e no entendimento. Este argumento agrada. Mas quem não vê que o exterior aí é tomado como grandeza verdadeira e perfeição verdadeira? Quem não vê que a imaginação aí quer expor as suas grandezas de aparência, na verdade insuficientes por essência? Este argumento encontra-se sob diversas formas no curso da história, e atribuía-se já a Aristóteles, mas falsamente ao que creio, o argumento célebre da primeira causa, ou do começo absoluto; as causas, dizia-se, remetem-nos para outras causas, e nada é suficiente; é preciso pois parar. Basta dizer aqui que a filosofia de Aristóteles, embora profundamente oposta à de Descartes, como a doutrina do animal máquina é suficiente para o mostrar, não se contenta no entanto em perseguir a relação exterior segundo as armadilhas da imaginação, e que, pela relação da potência ao acto, ela toca a grande ideia que nós devemos formar agora. Não é menos verdade que aos olhos de Aristóteles é o universo que encerra o grande segredo,  universo, de que Descartes, nisso moderno e mais do qualquer de nós, pelo contrário se afasta, e por uma visão de entendimento, como talvez se perceba no fim. Mas como não se pode dizer tudo duma vez, basta presentemente não querer procurar a perfeição nessa poeira cósmica, de mil maneiras agitada e sacudida, e enfim saber que é na direcção do sujeito pensante que é preciso buscar perfeição. Sem esta observação, que em Descartes em toda a parte retorna, e que nos remete sempre para o “Eu penso, logo existo”, as célebres provas, sobretudo reunidas como o estão no Discurso, seriam impenetráveis.

Este comentário pretende ser útil ao leitor. Não dispensa em nada a leitura. O melhor é pois que eu reencontre a ideia capital seguindo os caminhos que me parecem os mais naturais e fáceis; depois disso,  teremos ocasião de reconhecer que as célebres provas de Descartes só têm um sentido e só podem ter um sentido. Descartes ganhou, pois, esta espantosa vitória de se igualar, pela dúvida,  ao príncipe das trevas ou génio maligno, suposto tão poderoso quanto se queira. Donde me vem, pois, pergunta ele, este poder que desafia todo o poder? Não decerto de que eu formo tal ideia de geómetra e depois tal outra. Seguramente, estas ideias por completo me satisfazem. Mas, além de que a dúvida hiperbólica as atinge ainda desde que as componha e conduza um pouco longe, pois que então será preciso que eu me fie na minha memória, é bastante claro para mim que eu não sei tudo, e que há, mesmo na arte de combinar, imensos domínios que são tão inacessíveis para mim como outros céus atrás dos céus. Sei que me engano muitas vezes, mas ainda é mais evidente que eu ignoro muito e sempre ignorarei muito. Como entendimento, eu sou, pois, limitado; conheço aqui a minha imperfeição, o que supõe já que eu tenha alguma ideia da perfeição. Mas nem tudo está dito ainda. Esta ideia da perfeição, que me levaria a procurar como que à volta das minhas ideias alguma totalidade de ideias, é ainda negativa. Dizer que eu não sei tudo é a mesma coisa que dizer que eu não estou em todo o lado; assim a infinidade dum entendimento assemelha-se à falsa infinidade das coisas, as quais sempre remetem para outras. E, no fundo, se eu fosse só entendimento,  ignoraria, não saberia que ignorava. Mas porquê procurar por aí, quando eu tenho parte na perfeição, na positiva perfeição, através deste poder de duvidar que me torna mais forte do que todo o poder de enganar? Deus é por aí, e  não contra mim e inimigo, mas por mim e amigo. Eu tenho  socorro contra o génio maligno, e este socorro é de Deus sem dúvida nenhuma. Ora, este poder de duvidar, é o livre arbítrio mesmo. E Descartes  retira-nos aqui  toda a ocasião de hesitar sobre aquilo que nos quer fazer entender, notando que não se pode ter mais ou menos livre arbítrio, mas que se o tem infinito, ou então não se o tem de todo. Todavia, agarrando esta ideia de mais perto, eu quero por uma vez julgar, como deste ponto elevado da dúvida, donde vejo longe, essa falsa infinidade e toda exposta. Não somente eu a julgo, segundo essa relação exterior que supõe, do outro lado do limite, sempre qualquer outra coisa; mas bem mais, descobrindo esta lei de ultrapassar, que me leva para longe, e mesmo mais longe do que o mais longínquo, eu apercebo-me que o poder de julgar o limite implica de antemão que todo o limite será ultrapassado. E a relação próxima de mim, como de um a dois, implica de antemão toda a sequência dos números, e toda a sequência de sequências. Bem longe de poder prever que esta adição de objecto a objecto acabará por ultrapassar o meu poder de acrescentar, pelo contrário, eu percebo claramente que isso nunca acontecerá. Assim, aparece, de antemão implicando a infinidade das partes, assim aparece a outra infinidade, que é sem partes. Enfim se mostra o poder de julgar, logo superando, mesmo no conceber, toda a acumulação possível do conceber.

Deus não é, pois, entendimento perfeito; e, do mesmo modo que não se trata de passar do pequeno ao grande, e do que só ocupa um lugar ao que ocuparia todo o lugar, da mesma maneira, e pelas mesmas razões, não se trata de passar do que sabe uma coisa e depois doutra ao que saberia tudo. A relação exterior  mostra-se ainda aqui, por isto que a variedade das ideias só tem sentido como um reflexo da variedade das coisas, quer dizer desta existência mecânica que nos remete sempre para outro objecto. Esta extensão de ideias e este deserto de ideias não nos aproxima em nada da perfeição, mas faz-nos sentir pelo contrário uma imperfeição radical. Isso aparecerá ainda melhor quando estivermos na teoria do erro. Mas, desde agora, é preciso afastar esta interpretação, comum,  pode-se dizer, a todos os Cartesianos pequenos e grandes, e que Spinoza pôs em forma para o temor de todos, quero dizer essa imensidade  de entendimento onde tudo está compreendido e contado, “estendido e abstracto” , como diz Lagneau; enfim esse Deus objecto, para não dizer esse Deus coisa.

Deus é espírito. Sobre isso todos estão de acordo.  Mas o que é o espírito? Eis o ponto. Não é sem razão que eu há pouco pedia um tempo de paragem, e uma suficiente meditação sobre esse poder de duvidar em rigor de tudo, que é a alma de todos os nossos pensamentos. Agora tentemos reencontrar pelos nossos pequenos meios essa poderosa ideia, que Descartes não explica, mas que em contrapartida coloca em todas as suas avenidas, sem nunca a atenuar. Não é de bom senso que saber uma coisa depois de outra não é saber melhor, mas que é sempre a mesma operação, bem ou mal recomeçada? Nós todos honramos, sob o nome de juízo, um saber limitado, mas perfeito nos seus limites. E nenhum sábio jamais substituiu o problema de saber bem pelo problema de saber muito. Não haveria verdade para ninguém se o saber aumentasse à maneira das coisas e dependesse da extensão. O mesmo é dizer que as provas não chegam até nós como meteoros, que forçassem os felizes testemunhos. Pelo contrário, todas as provas são voluntárias e feitas, e nunca são sofridas, e a reflexão não cessa jamais de experimentar as ideias e de as dissolver pela recusa; tal é a alma das provas. “Nesse sentido, diz Jules Lagneau, o cepticismo é o verdadeiro.” Esta forte ideia não é fácil de desenvolver. O majestoso edifício dos conhecimentos adquiridos a isso se opõe sempre. Descartes pelo menos iluminou a estrada e até a ofuscar, pela doutrina da liberdade em Deus. Embora seja surpreendente sustentar que as verdades são tais em Deus porque ele as quer, não é mais, no entanto, do que uma forte maneira de dizer o que se mostrou aqui acima bem mais perto de nós, a saber, que a perfeição está acima do entendimento.

Voltemos ao humano mais próximo; não temos que voltar de muito longe. Eu creio que a doutrina que acaba de ser sumariamente exposta é o texto das nossas meditações por vir, digo práticas e urgentes. O livre pensamento, tanto e tão inutilmente caluniado, tem sem dúvida nenhuma um valor de religião. Mas haverá sempre duas religiões, das quais uma medita e a outra administra. A oposição do jansenista e do jesuíta não é dum momento; porque o espírito humano não vive dele mesmo; ele precisa de verdades e de provas, e dum acordo de assembleia. Todavia, cada um sente bem também que não haveria provas se Deus não estivesse acima das provas. Haveria portanto uma recusa a este mundo de coisas, e também a este mundo de provas acabadas e finitas, uma recusa que seria a alma da religião. Aqui está o germe da irreligião, e os teólogos, que conduziram uma guerra tão dura contra Descartes, sentiam-no bem. Esse mundo tomista, esse mundo de provas administradas fará sempre intimação e ameaça ao solitário que toma por centro de religião a função ascética de duvidar algumas vezes de tudo. Mas sempre, em contrapartida,  o Atlas que carrega estas coisas fará pelo menos o gesto de as depor, ousando dizer, e por Deus, que não há coisas julgadas no domínio do espírito. Em resumo, a heresia não cessará jamais de salvar a Igreja. Porque há duas maneiras de temer a Deus. O espírito forte  teme o Deus exterior; o espírito fraco teme o Deus interior, fardo pesado com efeito. O invisível e o visível desenvolverão sempre assim a sua oposição, que é correlação.

Em Descartes, o acordo é feito, por uma visão superior às nossas vistas. Descartes teve, como se sabe, visões proféticas na sequência do que ele fez voto de ir a Loreto, e ali foi de facto. Jogos de imaginação, estes sonhos e estas peregrinações, a respeito do pensador que escreveu as Meditações. Mas de que Deus é primeiramente o Deus dos nossos pensamentos, o que vale dizer que Deus é verídico, não se segue somente que nós apenas somos  enganados  pelas nossas paixões; segue-se ainda que não há nada que seja falso nas aparências, e que finalmente a estrutura do corpo humano disso deve dar conta. Por exemplo, essa superstição que ele nos conta que tinha, de preferir os rostos em que os olhos fossem um pouco estrábicos, só é falsa pelas razões de fantasia que se lhe queiram dar; mas é verdadeira tanto quanto exprime uma experiência ou impressão outrora recebida e que juntou essa espécie de rosto à alegria de amar. Da mesma maneira essa aparência do sol a duzentos passos no nevoeiro, tão oposta, à primeira vista, à ideia do sol que forma o astrónomo, deve no entanto ser explicada, e é-o com efeito, pela estrutura dos olhos e pelo nevoeiro. E é mesmo dessa aparência, medida com o retículo, medida que é aparência ainda, que, por recusar e conservar em conjunto, o astrónomo se aproxima de avaliar a imensa distância e, pela distância,  a imensa grandeza, a massa, os movimentos. É do mesmo modo que o ângulo é medido segundo o comprimento da sombra, e que também o pau quebrado, aparência interrogada por séculos de homens, nos dá a conhecer a superfície da água e o próprio movimento da luz. E se o pensar não pode sempre confirmar o crer, porque seria preciso então saber tudo, pelo menos em todas as nossa percepções é distinguido o que vem do corpo humano e que para aí deve ser remetido, de maneira a que não haja mais ídolos; e é por observações como esta, no seu amplo desenvolvimento, que se termina essa grande ideia de que Deus não nos pode enganar. Assim aquele que melhor distinguiu estas duas forças, de entender e de imaginar, é também aquele que melhor se acomoda a juntá-las. Por certo ele vai a Loreto como vai a todos os lugares de espectáculo e de sociedade, com vista a conhecer e experienciar  a união da alma e do corpo; mas em dúvida ele experimentava ainda aí qualquer coisa de melhor, o acordo destas duas forças, e do mesmo modo que  nesse sonho profético, em que, sem dúvida, as imagens foram símbolos perfeitos. Mas é preciso ter meditado  durante muito tempo sobre o Tratado das Paixões se se quer poder desenvolver esta medicina superior, à qual ele deveu, a nele crer, prolongar a sua vida até à cinquentena, contra a predição dos médicos.

Alain
(Tradução de José Ames)

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