“A minha segunda máxima era de ser o mais firme e o mais resoluto nas minhas acções tanto quanto pudesse.”
(Discurso do Método)
O
homem é de uma bela época, que não aprendeu ainda a obediência. A ordem não
está feita. Em toda a Europa, é como uma
imensa guerra civil onde cada um se bate por sua conta; e mesmo a matemática se
assemelha a uma guerra de partidários,
em que os mais hábeis tentam alguma estocada secreta. Todo o homem é de
espada e de cometimento, e escolhe o seu
senhor. Ninguém encontra então diante de si esses deveres preto no branco
escritos, que fazem das nossas paixões sabedoria. É preciso tomar partido.
Descartes participa nesse movimento, que não o surpreende. Este viajante, este
militar, este homem de mão não nos é de todo conhecido; mas o que sabemos da
sua vida, embora puramente exterior, e sem nenhuma vista sobre os movimentos
secretos, não nos permite esquecê-lo. Sabemos que serviu como voluntário sob
Maurício de Nassau, em breve príncipe de Orange; que depois de dois anos passou ao exército do duque da Baviera; dois
anos mais tarde, reencontramo-lo sob as ordens
do conde de Bucquoy que verosimilmente seguiu até à Hungria. Enfim,
depois de seis ou sete anos de viagens livres, encontra-se como espectador no
cerco de La Rochelle, e aí retoma o serviço no exército do rei até à vitória.
Eis pelo menos a lenda, tal como a encontramos em Baillet. Há muita incerteza
nestes detalhes, e os historiadores rejeitam
mesmo o último episódio, provando que Descartes acabava de chegar à Holanda no
momento em que La Rochelle foi tomada. Todavia, é preciso dizer que este
episódio não teria sido inventado nem crido se não estivesse de acordo com o
personagem; e, desde que se queira conhecer o carácter, os hábitos e os
movimentos dum homem, a lenda não é de desprezar.
Não
se trata aqui, portanto, dum mole letrado, mas dum homem vivo e duro,
impaciente por deliberar, que decide, que corta, que se arrisca. Por muito lentas
que tenham sido as guerras nesse tempo, e por muito tempo que deixassem à
curiosidade, e tempo à reflexão, eram em momentos bastante brutais. Nós não
sabemos nada de Descartes combatente, a não ser que a tradição dele nos reporta dois movimentos assaz
militares. Sabe-se que Descartes, passando na Frísia Ocidental num barco, com
um único doméstico, adivinhou um complot dos barqueiros, tirou a espada
subitamente, e manteve-os em respeito. Tinha então cerca de vinte e cinco anos.
Um pouco mais tarde, e próximo dos seus trinta anos, conta-se que se bateu contra um rival, na presença de
damas, a uma das quais fazia a corte, e que, tendo-o desarmado, lhe fez graça.
Era o tempo dos duelos, e Descartes, por falta duma parada, poderia ter muito
bem ter morrido numa espécie de querela, como morreu Sévigné. Gostamos de
saber que um sábio se distingue dos
outros homens, não por menos loucura, mas por mais razão. De resto, o leitor encontrará no Discurso do Método,
sob o título: Algumas regras da moral tiradas deste método, uma
doutrina da acção à qual nada falta. Descartes, perdido numa floresta, e não
percebendo nenhuma razão para seguir um
caminho em vez de outro, Descartes, no entanto, escolheu, firmou-se na sua
escolha como se o que escolhera fosse o mais razoável, e, por essa firmeza e
essa consequência, por essa fidelidade a si mesmo na execução, salvou a escolha de acaso, e fê-la boa. Esta célebre imagem,
se a considerarmos o suficiente, far-nos-á reencontrar a atitude e até o gesto do homem
que melhor soube duvidar quando era preciso, crer quando era preciso, e sempre estar
seguro de si. É bom dizer aqui que este homem decidido dormia muito, e ficava
de boa vontade deitado mesmo sem dormir. Estes contrastes, estes ócios sem
medida, esta espécie de preguiça que cada um emprega como quer, são próprios da
vida militar, e fazem escândalo, pelo contrário, nos trabalhos da paz.
Descartes, desde o colégio, escapava por favor à regra comum. Que se tenha lançado de seguida, e por
escolha, na existência militar, isso espantaria se esta existência fosse a mais
regulada que há; mas não é nada disso; a vida militar regula-se na realidade
pelas necessidades exteriores. Pode-se pensar que Descartes sempre suportou sem
custo os constrangimentos do acontecimento puro, mas que suportava muito mal os
outros. Eis-nos a tentar compreender este solitário, e esta existência
voluntariamente exilada. Nos seus jovens anos, ele foi alguma vezes homem de
sociedade; em duas ocasiões viveu em Paris como se vivia, apreciando muito a
conversação, a música e todos os
divertimentos honestos. Mas não era nisso
muito regular, escondendo-se de repente em algum bairro; os seus amigos
encontravam-no por acaso e
reconduziam-no, parece que, sem dificuldade. Estes traços não são dum
misantropo. Nas suas viagens, que, ao sair das suas campanhas militares, o
conduziram a todas as partes da Alemanha, às Frísias, à Holanda, a Inglaterra,
a Itália, vemo-lo caminhar em pequenas jornadas, parar onde lhe agradava,
procurar todos os espectáculos da natureza, e também o espectáculo humano,
coroação em Francoforte, jubileu em Roma. E mesmo, nos vinte anos que passou a
seguir na Holanda, mudava frequentemente
de lugar, sempre bem alojado e bem servido, tendo jardim e cavalos para o
passeio, enfim liberdade e lazer, os maiores bens aos seus olhos. Até o mais
humano nele foi fora da ordem, como essa Francine, a sua própria filha, que
educou até à idade de cinco anos como o
teria feito uma mãe, que perdeu e que chorou. Que homem não admirará, não sem
um pouco de medo talvez, esta existência apoiada somente nela mesma, repelindo
e atraindo, segundo as suas leis próprias, todos os espíritos em trabalho? Este
rei do espírito, que tratava como um igual a princesa Elisabeth, e que a frota
sueca esperou em Zuyderzee, até que lhe apeteceu partir para o frio país onde
iria morrer, recebeu na sua solidão, pelos seus quarenta e nove anos, um
cordoeiro de nome Rembrantsz, bom matemático, que se fez conhecer mais tarde
como astrónomo, e com o qual conversou mais de uma vez.
Os
que de facto quiserem ler o Discurso do Método como leriam Montaigne,
sentirão que Descartes está bem afastado de revolta e da Fronda; mas sentirão
também que a ordem política nele é encarada tal como é, e sem nenhuma nuança de
religião. Há um pouco de desprezo nesta espécie de obediência. Adivinha-se isso
por essa existência militar, que escolhe os seus deveres como exercícios de
paciência, e também por essa fuga, que, sob a aparência de procurar um clima
conveniente, se detém no país mais livre e menos atravancado de majestade que
então havia na Europa. É justo também notar que os teólogos desse país só o
deixaram em paz, depois de ardentes querelas,
com a intervenção de altos personagens, entre os quais o embaixador da
França; e isso preserva-nos de ordenar as forças conforme as ideias. Um dos
pontos da doutrina cartesiana é que o espírito se salva e mesmo governa pela desordem das forças cósmicas que não
pensam. Compreendei aqui esse negro olhar. Todavia é preciso colocar à parte,
como ele fazia, a autoridade da sua religião própria, à qual se submetia de
livre movimento, e sem nenhuma hipocrisia, tal como tentarei explicar. Resta
uma desconfiança, também sem qualquer hipocrisia, a respeito dos círculos, das
conversações, e enfim da ordem humana tanto quanto ela tem a pretensão de
pensar. Isso pode chocar. Importa mesmo muito que o leitor culto deste tempo
sinta o choque, e se encontre como que deslocado um momento duma época em que
não se sabe obedecer sem crer, e em que se tem o hábito, em contrapartida, de
se pôr em vários para pensar. Esta advertência leva mais longe do que se crê, e
encontrar-se-á a sequência na doutrina, por este traço essencial, embora
dificilmente apreensível, de que as próprias ideias aí são, duma certa maneira,
remetidas para todos os géneros de mecanismos finitos, o que condena de antemão
as épocas de vida colectiva, que sempre voltarão, onde o bom senso é contado
como um fruto da associação. As ideias são então como máquinas. Ora, é bom
notar, como uma visão primeiro fácil e de grande consequência, que as máquinas estão em todo o lado em
Descartes, mas em todo o lado definidas, em todo o lado remetidas para o
objecto, em todo o lado limpas de espírito, como de facto elas são. E, a este
respeito, é bom que o leitor mantenha no seu pensamento, e em lugar central, o
paradoxo assaz conhecido do animal máquina; este severo juízo, que quer
corrigir o homem, é profundamente estranho em todo o regime intelectual em que
as doutrinas fazem objecto; é preciso então que a controvérsia, e finalmente, a
tentativa, métodos que ousamos dizer
animais, sejam os meios normais de reflexão. Segundo este sentimento, que pouco
a pouco se esclarecerá, se julgarão também essas discussões surpreendentes, que
estão na sequência das Meditações, em que se deixam ver em conjunto uma
cortesia voluntária, com um começo de desprezo, logo marcado. Considerai agora
esse belo retrato que nos resta, e não vos enganeis quanto à severidade que é o
seu carácter. As crianças enganam-se muitas vezes com os pais, porque elas não
têm suficientemente a ideia dos
trabalhos aos quais é devida essa vida fácil da infância. Madame de Sevigné
escreve à sua filha: “Vosso pai, Descartes.” Esta palavra soa bem aqui, e em
todos os seus sentidos. Traduz um movimento de reflexão que é a recordação, e
pelo qual a ordem estabelecida presta homenagem ao criador. É da mesma maneira
que a ideia pereceria toda sem a memória, pelo menos, do juízo que a fez. É
remontar à fonte das ideias. Nós devemos aprender este piedoso retorno, que é
pensar, e saber dizer também: “Nosso pai, Descartes.”
Alain
(Tradução de José Ames)
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