“Eu não estou apenas alojado no meu corpo assim como um piloto no seu navio.”
(Meditações VI)
O
leitor não terá dificuldade em representar-se a estrutura do corpo humano a
partir do esqueleto que forma a sua armadura, a partir dos músculos que estão
enganchados no esqueleto, e, conforme se enchem e distendem, fazem rodar os
ossos à volta das articulações. O curso do sangue é suficientemente conhecido
de todos para que não se insista sobre isso, da mesma maneira as relações entre
a respiração e a circulação. Enfim, toda gente sabe, pelo menos sumariamente,
que se encontra em todas as partes do corpo uma ramificação de nervos, nos
quais circula alguma coisa que não se conhece, que remonta dos sentidos, por
centros subordinados muito numerosos, até a um centro principal que é o
cérebro, e que volta desses centros até aos músculos e os excita por uma
corrente ou uma vibração ou como se quiser dizer, de modo que eles se contraem
e puxam as partes do esqueleto. Trata-se agora de considerar estas coisas como
um físico, e de notar que esta máquina complicada participa naturalmente,
segundo a sua forma, no movimento das coisas que a rodeiam. Por exemplo, se o
solo vier a faltar, este corpo cai segundo a sua forma e o seu peso; mas o
arranjo das partes explica nesse caso as contracções, as mudanças de forma,
enfim uma agitação desordenada, cuja causa é que as coisas chocam e ferem a
superfície do corpo, o que, pela repercussão na rede dos nervos, põe em
movimento todos os músculos, alguns mais, alguns menos; e estes movimentos
desordenados dum homem que cai são todos tão involuntários como a própria
queda.
Ora,
a experiência permite fazer, a respeito destes movimentos involuntários do
corpo vivo, três observações de importância. A primeira, que esclarece muito as
emoções, é que um movimento involuntário duma parte do corpo se estende sempre
mais ou menos a todas as outras. Por exemplo se, começando a deslizar, eu
reencontro o meu equilíbrio por um movimento involuntário das pernas, não pode
deixar de acontecer que o busto, os braços, a cabeça não façam também outros
movimentos, que estão muito longe de serem todos úteis; e por repercussão, todo
o interior do corpo se encontra de súbito profundamente perturbado, a
respiração cortada, o coração agitado, o curso do sangue modificado, o que faz
empalidecer ou enrubescer, e que pode também provocar um pequeno suor.
Descartes, como o leitor se poderá amplamente assegurar, deu grande atenção a todos
estes movimentos do sangue nas emoções; ele não ignorou que as lágrimas, sinal
comum a emoções de todo o género, são como um suor que resulta duma mudança no
curso do sangue. Em resumo, os nossos movimentos involuntários estão bem longe
de se limitarem ao que a situação exige; mas irradiam pelo contrário sempre
mais ou menos no corpo inteiro, pela circulação dos líquidos que nele estão, e
por uma circulação mais subtil que se faz nos nervos, e que Descartes explica
pelos espíritos animais, corpos mais pequenos e mais móveis do que aqueles que
andam no ar ou na chama.
Esta
suposição vale bem uma outra, e nós não sabemos ainda hoje o que se passa nos
nervos quando transmitem um choque, uma pressão, ou a subtil acção da luz.
Todavia, o leitor ficará, porventura, chocado, a esse respeito, por uma
simplificação que lhe parecerá pueril, é que Descartes segue os espíritos
animais desde o sangue que os extrai dos
alimentos, até ao cérebro e aos nervos onde
o sangue os transporta, e onde ele os faz entrar por uma espécie de
filtração. Aqui falta a nossa química. Os corpúsculos, quaisquer que sejam, que
passam dos alimentos para os nossos músculos e para os nossos nervos, são
certamente separados e recompostos, formando edifícios muito complexos, e
diferentes conforme os órgãos. E, por exemplo,
quando os músculos se contraem, não é porque os espíritos animais,
levados pelos nervos, entrem nos músculos e os inchem, como Descartes pensava;
mas são antes estes edifícios
moleculares de que os músculos são compostos que se alteram como por uma
explosão, sob o choque vindo dos nervos, e produzem movimento e calor por esta
decomposição. E talvez a circulação nos nervos resulte duma mudança do mesmo
género, embora diferente, que se faz cada vez mais perto da mesma maneira que
um rastilho de pólvora se inflama. Todavia estes conhecimentos, se Descartes os
tivesse tido, não teriam mudado muito a sua doutrina das paixões. O que
importa, é que se represente aqui a ligação de todos os movimentos na mecânica
do corpo; porque é isso mesmo, se se prestar atenção, que surpreende o
apaixonado, e logo o desespera. Não fazer muitas vezes o que quer, e fazer
sempre ao mesmo tempo outra coisa que
não quer nada fazer, é a grande humilhação do homem. E um conhecimento,
mesmo sumário, das causas, basta para consolar da humilhação e para a ela
fornecer um remédio.
Vem
a propósito, porque se trata agora dessa irradiação em todo o corpo, preparar
um pouco o leitor para esta hipótese de glândula pineal, suspensa no centro do
cérebro, reunindo nela todos os movimentos dos espíritos, e transmitindo-os à
alma, e, ao contrário, transformando em movimentos dos espíritos as vontades da
alma. Os nossos fisiologistas não deixarão de rir aqui, crendo ter descoberto,
pelo contrário, que tal parte do cérebro
está especialmente ligada, quanto aos movimentos que por aí passam, a tal combinação de pensamentos, a tal
recordação, a tal vontade. Todavia, é preciso dizer que, depois das temerárias
hipóteses de Gall sobre este assunto, depois de um século de ardentes
pesquisas, os fisiologistas não puderam conservar posições que o próprio Comte
acreditava sólidas, e renunciaram a procurar no cérebro qualquer centro que
seria como que o órgão da veneração, ou da recordação, ou do cálculo; mas chegaram
antes a esta conclusão que a menor função do espírito está ligada sempre à
actividade do cérebro inteiro e mesmo de todo o corpo. Isso vale dizer, por um
lado, que não há funções realmente separáveis no corpo. Ora, Descartes, tê-los
ia conduzido aí; primeiro, por essa ideia de que o pensamento, não tendo
quaisquer partes está indivisivelmente ligado a todo o corpo; e também por essa mesma hipótese das funções
da glândula pineal, que deve se tomada, depois desta advertência, como um
socorro de imaginação, tendo em vista representar-nos justamente que todos os movimentos
do corpo agem sempre em conjunto sobre a alma, e que a alma por sua vez
modifica sempre todos os movimentos do corpo em conjunto. Estas observações são
para desviar o leitor de pensar que a fisiologia cartesiana é demasiado sumária
e que a sua doutrina das paixões não vale mais do que isso. Na verdade não
creio que, sobre esta difícil questão da relação do nosso corpo aos nossos
pensamentos, se possa encontrar ainda hoje melhor mestre do que Descartes, e
mais próprio a reconduzir o espírito ao bom caminho.
Os
outros comentários não oferecem dificuldade. Cada um sabe que, embora todos os
movimentos do corpo estejam sempre ligados,
há apesar disso reacções da natureza, muito claramente orientadas, e que
sem dúvida correspondem a algum mecanismo montado e relativamente independente.
Assim uma viva luz faz com que eu feche involuntariamente os olhos; a menor
ameaça para os meus olhos produz também o mesmo efeito, como Descartes
observou. Estes movimentos produzem-se automaticamente. Porém, são acompanhados
muitas vezes por outros movimentos, que não são sempre voluntários, como de
erguer a mão diante dos olhos; e uma observação atenta fará ver que estes
movimentos são sempre pelo menos esboçados, e acompanhados de outros
movimentos, como os que produz toda a surpresa, paragem de marcha, recuo da
cabeça, respiração cortada, perturbação do coração.
Última
observação enfim, que ninguém ignora, é que os movimentos do corpo, voluntários
ou não, nele deixam marcas, ou traços, ou vincos, sobretudo quando são
repetidos de modo que, quando ficamos emocionados na sequência, fazemos mais
depressa esses movimentos do que outros, ou pelo menos os misturamos aos
movimentos que a situação nova exige. É
assim que um certo movimento se torna habitual; donde se segue que um movimento
encontrando-se ligado a um outro, uma ideia também se encontre ligada a uma
outra, pelo simples facto que nós as tivemos
frequentemente juntas, ou, para falar de outra maneira, que fizemos muitas vezes dois movimentos em
conjunto. A associação das ideias, que é o efeito duma associação de
movimentos, é amplamente descrita por Descartes neste Tratado. Eis sobre
este mesmo assunto uma passagem duma carta a Chanut, embaixador junto da rainha
da Suécia, que ficará inteiramente no seu lugar nesta espécie de prefácio ao Tratado
das Paixões.
“Os
objectos que tocam os nossos sentidos movem, por intermédio dos nervos, algumas
partes do nosso cérebro, e fazem nele como que certos vincos, que se desfazem
quando o objecto deixa de agir; mas a parte onde eles se fizeram permanece
depois disso disposta a ser vincada outra vez do mesmo modo por um outro
objecto que se pareça em alguma coisa com o precedente, ainda que se lhe não assemelhe
em tudo. Por exemplo, quando eu era criança gostava duma rapariga da minha
idade, que era um pouco vesga; por meio do que a impressão que pela vista se
fazia no meu cérebro, quando olhava os seus olhos perdidos, se uniu de tal
maneira àquela que se fazia também para mover em mim a paixão do amor, que
muito tempo depois, vendo pessoas vesgas, me sentia mais inclinado a amá-las do
que a amar outras, por isso só que elas tinham esse defeito; e eu não sabia,
contudo, que era por isso. Pelo contrário, desde que reflecti nisso, e que
reconheci que era um defeito, não me emocionei mais.”
Estas
observações bem mantidas juntas sob o
olhar, pode-se formar a ideia desse mecanismo sem nenhum pensamento, que nunca
cessa de alterar os nossos pensamentos. E o último exemplo é próprio a fazer
perceber o contraste entre o que é realmente e aquilo que nós cremos todos.
Porque o que é realmente, não é de modo nenhum uma opinião relacionada com as
pessoas vesgas, mas é somente um encontro de movimentos no nosso corpo que
facilmente faz em seguida, e por causas puramente mecânicas, que passemos
daqueles pelos quais percebemos que uma pessoa é vesga àqueles que acompanham
naturalmente o amor. Mas, por falta duma visão suficiente sobre a mecânica do
corpo, cremos todos que esta passagem se
faz por um pensamento, embora indistinto;
e este pensamento, de que não temos qualquer consciência, parece-nos
apesar disso pertencer à nossa alma, e ter sido formado pelo juízo com os
outros, mas sem que o soubéssemos. Desta interpretação, que é natural e comum,
saiu, por reflexão e sistematização, a doutrina do inconsciente, da qual se
compreende que o destino é ser sempre popular. É bom notar que Descartes, sem a
conhecer precisamente, a nega no entanto com força, separando, por razões de
doutrina, o que é apenas corpo e movimento do que é alma e pensamento, e
repelindo energicamente a ideia mesma duma parte inferior da alma, que se
quereria chamar de sensitiva. Esta doutrina está em todo o lado no Tratado
das Paixões. Desde que não formemos mais os nossos pensamentos, já não são
pensamentos, são movimentos, nos quais não devemos nunca supor motivos,
raciocínios, dúvidas, e coisas semelhantes, mas somente uma velocidade, uma
direcção, juntas a uma forma determinada e a uma certa resistência do corpo que
se move e dos corpos imediatamente vizinhos. Todo o pretenso sistema dos nossos
pensamentos surdos, como Leibniz os quererá chamar, vem de que nós interpretamos
os movimentos do nosso corpo, ao mesmo tempo que o nosso pensamento recebe deles
os efeitos, como oráculos que significariam muito mais do que choques,
fricções, desvios e coisas desse género. As razões de escolher entre duas
doutrinas tão fortemente opostas são amplas e difíceis; mas uma vez que no
fundo é preciso sempre escolher entre a
ordem e a desordem, eu quero notar aqui uma razão para não escolher a doutrina
do inconsciente, que é que a suposição dum pensamento como explicando um
simples movimento do corpo, mesmo se é falsa, torna-se verdadeira só por se
crer nisso, pois que se forma esse pensamento. Por exemplo, se eu tremo diante
de algum objecto sem encontrar logo uma razão, devo escolher explicar esse
tremor apenas pela disposição física das partes do meu corpo; porque se eu
formo algum pressentimento a respeito desse objecto, tentando esclarecer um
pensamento que creio ter, eu formo com efeito um tal pensamento, julgando que
esse objecto já me prejudicou ou prejudicará, a partir de razões verosímeis; e
é sobretudo por tais opiniões que as paixões nos são funestas. A doutrina de
Descartes, mesmo separada das suas verdadeiras provas, é ainda tal aqui que se
pode escolhê-la por provisão contra os erros mais comuns.
Alain
(Tradução de José Ames)
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