segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O HOMEM-MÁQUINA






“Eu não estou apenas alojado no meu corpo assim como um piloto no seu navio.”



(Meditações VI)



 
O leitor não terá dificuldade em representar-se a estrutura do corpo humano a partir do esqueleto que forma a sua armadura, a partir dos músculos que estão enganchados no esqueleto, e, conforme se enchem e distendem, fazem rodar os ossos à volta das articulações. O curso do sangue é suficientemente conhecido de todos para que não se insista sobre isso, da mesma maneira as relações entre a respiração e a circulação. Enfim, toda gente sabe, pelo menos sumariamente, que se encontra em todas as partes do corpo uma ramificação de nervos, nos quais circula alguma coisa que não se conhece, que remonta dos sentidos, por centros subordinados muito numerosos, até a um centro principal que é o cérebro, e que volta desses centros até aos músculos e os excita por uma corrente ou uma vibração ou como se quiser dizer, de modo que eles se contraem e puxam as partes do esqueleto. Trata-se agora de considerar estas coisas como um físico, e de notar que esta máquina complicada participa naturalmente, segundo a sua forma, no movimento das coisas que a rodeiam. Por exemplo, se o solo vier a faltar, este corpo cai segundo a sua forma e o seu peso; mas o arranjo das partes explica nesse caso as contracções, as mudanças de forma, enfim uma agitação desordenada, cuja causa é que as coisas chocam e ferem a superfície do corpo, o que, pela repercussão na rede dos nervos, põe em movimento todos os músculos, alguns mais, alguns menos; e estes movimentos desordenados dum homem que cai são todos tão involuntários como a própria queda.

Ora, a experiência permite fazer, a respeito destes movimentos involuntários do corpo vivo, três observações de importância. A primeira, que esclarece muito as emoções, é que um movimento involuntário duma parte do corpo se estende sempre mais ou menos a todas as outras. Por exemplo se, começando a deslizar, eu reencontro o meu equilíbrio por um movimento involuntário das pernas, não pode deixar de acontecer que o busto, os braços, a cabeça não façam também outros movimentos, que estão muito longe de serem todos úteis; e por repercussão, todo o interior do corpo se encontra de súbito profundamente perturbado, a respiração cortada, o coração agitado, o curso do sangue modificado, o que faz empalidecer ou enrubescer, e que pode também provocar um pequeno suor. Descartes, como o leitor se poderá amplamente assegurar, deu grande atenção a todos estes movimentos do sangue nas emoções; ele não ignorou que as lágrimas, sinal comum a emoções de todo o género, são como um suor que resulta duma mudança no curso do sangue. Em resumo, os nossos movimentos involuntários estão bem longe de se limitarem ao que a situação exige; mas irradiam pelo contrário sempre mais ou menos no corpo inteiro, pela circulação dos líquidos que nele estão, e por uma circulação mais subtil que se faz nos nervos, e que Descartes explica pelos espíritos animais, corpos mais pequenos e mais móveis do que aqueles que andam no ar ou na chama.

Esta suposição vale bem uma outra, e nós não sabemos ainda hoje o que se passa nos nervos quando transmitem um choque, uma pressão, ou a subtil acção da luz. Todavia, o leitor ficará, porventura, chocado, a esse respeito, por uma simplificação que lhe parecerá pueril, é que Descartes segue os espíritos animais  desde o sangue que os extrai dos alimentos, até ao cérebro e aos nervos onde  o sangue os transporta, e onde ele os faz entrar por uma espécie de filtração. Aqui falta a nossa química. Os corpúsculos, quaisquer que sejam, que passam dos alimentos para os nossos músculos e para os nossos nervos, são certamente separados e recompostos, formando edifícios muito complexos, e diferentes conforme os órgãos. E, por exemplo,  quando os músculos se contraem, não é porque os espíritos animais, levados pelos nervos, entrem nos músculos e os inchem, como Descartes pensava; mas são antes  estes edifícios moleculares de que os músculos são compostos que se alteram como por uma explosão, sob o choque vindo dos nervos, e produzem movimento e calor por esta decomposição. E talvez a circulação nos nervos resulte duma mudança do mesmo género, embora diferente, que se faz cada vez mais perto da mesma maneira que um rastilho de pólvora se inflama. Todavia estes conhecimentos, se Descartes os tivesse tido, não teriam mudado muito a sua doutrina das paixões. O que importa, é que se represente aqui a ligação de todos os movimentos na mecânica do corpo; porque é isso mesmo, se se prestar atenção, que surpreende o apaixonado, e logo o desespera. Não fazer muitas vezes o que quer, e fazer sempre ao mesmo tempo outra coisa que  não quer nada fazer, é a grande humilhação do homem. E um conhecimento, mesmo sumário, das causas, basta para consolar da humilhação e para a ela fornecer um remédio.

Vem a propósito, porque se trata agora dessa irradiação em todo o corpo, preparar um pouco o leitor para esta hipótese de glândula pineal, suspensa no centro do cérebro, reunindo nela todos os movimentos dos espíritos, e transmitindo-os à alma, e, ao contrário, transformando em movimentos dos espíritos as vontades da alma. Os nossos fisiologistas não deixarão de rir aqui, crendo ter descoberto, pelo contrário,  que tal parte do cérebro está especialmente ligada, quanto aos movimentos que por aí passam,  a tal combinação de pensamentos, a tal recordação, a tal vontade. Todavia, é preciso dizer que, depois das temerárias hipóteses de Gall sobre este assunto, depois de um século de ardentes pesquisas, os fisiologistas não puderam conservar posições que o próprio Comte acreditava sólidas, e renunciaram a procurar no cérebro qualquer centro que seria como que o órgão da veneração, ou da recordação, ou do cálculo; mas chegaram antes a esta conclusão que a menor função do espírito está ligada sempre à actividade do cérebro inteiro e mesmo de todo o corpo. Isso vale dizer, por um lado, que não há funções realmente separáveis no corpo. Ora, Descartes, tê-los ia conduzido aí; primeiro, por essa ideia de que o pensamento, não tendo quaisquer partes está indivisivelmente ligado a todo o corpo;  e também por essa mesma hipótese das funções da glândula pineal, que deve se tomada, depois desta advertência, como um socorro de imaginação, tendo em vista representar-nos justamente que todos os movimentos do corpo agem sempre em conjunto sobre a alma, e que a alma por sua vez modifica sempre todos os movimentos do corpo em conjunto. Estas observações são para desviar o leitor de pensar que a fisiologia cartesiana é demasiado sumária e que a sua doutrina das paixões não vale mais do que isso. Na verdade não creio que, sobre esta difícil questão da relação do nosso corpo aos nossos pensamentos, se possa encontrar ainda hoje melhor mestre do que Descartes, e mais próprio a reconduzir o espírito ao bom caminho.

Os outros comentários não oferecem dificuldade. Cada um sabe que, embora todos os movimentos do corpo estejam sempre ligados,  há apesar disso reacções da natureza, muito claramente orientadas, e que sem dúvida correspondem a algum mecanismo montado e relativamente independente. Assim uma viva luz faz com que eu feche involuntariamente os olhos; a menor ameaça para os meus olhos produz também o mesmo efeito, como Descartes observou. Estes movimentos produzem-se automaticamente. Porém, são acompanhados muitas vezes por outros movimentos, que não são sempre voluntários, como de erguer a mão diante dos olhos; e uma observação atenta fará ver que estes movimentos são sempre pelo menos esboçados, e acompanhados de outros movimentos, como os que produz toda a surpresa, paragem de marcha, recuo da cabeça, respiração cortada, perturbação do coração.

Última observação enfim, que ninguém ignora, é que os movimentos do corpo, voluntários ou não, nele deixam marcas, ou traços, ou vincos, sobretudo quando são repetidos de modo que, quando ficamos emocionados na sequência, fazemos mais depressa esses movimentos do que outros, ou pelo menos os misturamos aos movimentos que a situação nova exige.  É assim que um certo movimento se torna habitual; donde se segue que um movimento encontrando-se ligado a um outro, uma ideia também se encontre ligada a uma outra, pelo simples facto que nós as tivemos  frequentemente juntas, ou, para falar de outra maneira,  que fizemos muitas vezes dois movimentos em conjunto. A associação das ideias, que é o efeito duma associação de movimentos, é amplamente descrita por Descartes neste Tratado. Eis sobre este mesmo assunto uma passagem duma carta a Chanut, embaixador junto da rainha da Suécia, que ficará inteiramente no seu lugar nesta espécie de prefácio ao Tratado das Paixões.

Os objectos que tocam os nossos sentidos movem, por intermédio dos nervos, algumas partes do nosso cérebro, e fazem nele como que certos vincos, que se desfazem quando o objecto deixa de agir; mas a parte onde eles se fizeram permanece depois disso disposta a ser vincada outra vez do mesmo modo por um outro objecto que se pareça em alguma coisa com o precedente, ainda que se lhe não assemelhe em tudo. Por exemplo, quando eu era criança gostava duma rapariga da minha idade, que era um pouco vesga; por meio do que a impressão que pela vista se fazia no meu cérebro, quando olhava os seus olhos perdidos, se uniu de tal maneira àquela que se fazia também para mover em mim a paixão do amor, que muito tempo depois, vendo pessoas vesgas, me sentia mais inclinado a amá-las do que a amar outras, por isso só que elas tinham esse defeito; e eu não sabia, contudo, que era por isso. Pelo contrário, desde que reflecti nisso, e que reconheci que era um defeito, não me emocionei mais.”

Estas observações  bem mantidas juntas sob o olhar, pode-se formar a ideia desse mecanismo sem nenhum pensamento, que nunca cessa de alterar os nossos pensamentos. E o último exemplo é próprio a fazer perceber o contraste entre o que é realmente e aquilo que nós cremos todos. Porque o que é realmente, não é de modo nenhum uma opinião relacionada com as pessoas vesgas, mas é somente um encontro de movimentos no nosso corpo que facilmente faz em seguida, e por causas puramente mecânicas, que passemos daqueles pelos quais percebemos que uma pessoa é vesga àqueles que acompanham naturalmente o amor. Mas, por falta duma visão suficiente sobre a mecânica do corpo,  cremos todos que esta passagem se faz por um pensamento, embora indistinto;  e este pensamento, de que não temos qualquer consciência, parece-nos apesar disso pertencer à nossa alma, e ter sido formado pelo juízo com os outros, mas sem que o soubéssemos. Desta interpretação, que é natural e comum, saiu, por reflexão e sistematização, a doutrina do inconsciente, da qual se compreende que o destino é ser sempre popular. É bom notar que Descartes, sem a conhecer precisamente, a nega no entanto com força, separando, por razões de doutrina, o que é apenas corpo e movimento do que é alma e pensamento, e repelindo energicamente a ideia mesma duma parte inferior da alma, que se quereria chamar de sensitiva. Esta doutrina está em todo o lado no Tratado das Paixões. Desde que não formemos mais os nossos pensamentos, já não são pensamentos, são movimentos, nos quais não devemos nunca supor motivos, raciocínios, dúvidas, e coisas semelhantes, mas somente uma velocidade, uma direcção, juntas a uma forma determinada e a uma certa resistência do corpo que se move e dos corpos imediatamente vizinhos. Todo o pretenso sistema dos nossos pensamentos surdos, como Leibniz os quererá chamar, vem de que nós interpretamos os movimentos do nosso corpo, ao mesmo tempo que o nosso pensamento recebe deles os efeitos, como oráculos que significariam muito mais do que choques, fricções, desvios e coisas desse género. As razões de escolher entre duas doutrinas tão fortemente opostas são amplas e difíceis; mas uma vez que no fundo é preciso sempre escolher  entre a ordem e a desordem, eu quero notar aqui uma razão para não escolher a doutrina do inconsciente, que é que a suposição dum pensamento como explicando um simples movimento do corpo, mesmo se é falsa, torna-se verdadeira só por se crer nisso, pois que se forma esse pensamento. Por exemplo, se eu tremo diante de algum objecto sem encontrar logo uma razão, devo escolher explicar esse tremor apenas pela disposição física das partes do meu corpo; porque se eu formo algum pressentimento a respeito desse objecto, tentando esclarecer um pensamento que creio ter, eu formo com efeito um tal pensamento, julgando que esse objecto já me prejudicou ou prejudicará, a partir de razões verosímeis; e é sobretudo por tais opiniões que as paixões nos são funestas. A doutrina de Descartes, mesmo separada das suas verdadeiras provas, é ainda tal aqui que se pode escolhê-la por provisão contra os erros mais comuns.


Alain
(Tradução de José Ames)

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