“… mas se se pensa tão-só em alargar a pupila, bem podemos ter a vontade, que nem por isso a alargamos.”
(Paixões 44)
Não
se trata agora de filosofar, quer dizer de acordar em conjunto as partes dum
grande sistema, coisa que não tem pressa, mas antes compreender um pouco a
natureza das paixões, e o que podem, para as moderar, sejam as nossa acções,
sejam os nossos pensamentos. Este problema pressiona-nos a todos; não espera.
Eis que uma fraca decepção, e que eu deveria desprezar, agita ao mesmo tempo o
meu coração e os meus pensamentos, instituindo em mim um estado de inquietude
em que me parece que a agitação corporal é a sequência de certos pensamentos,
e, não menos evidentemente, que a sequência e a cor dos meus pensamentos
dependem da agitação do meu corpo. Que devo
pensar destes pensamentos, que não parecem meus, e que são tão meus?
Mais à frente, que devo fazer quanto a
isso, e que posso fazer? Este tom de tristeza, que recobre por vezes até as minhas alegrias, como dissolvê-lo?
Como lavar-me pela razão dessa melancolia, quando a minha razão ela mesma
parece trair-me e argumentar contra mim, quando as mais fracas razões para
estar triste me parecem pesadas e principais, só por que me sinto triste? E
essa inquietude do corpo, feita de mil pequenos movimentos sobre os quais não
tenho acção, como curá-la sem recorrer ao médico? Mas o próprio médico, que
poderá fazer, senão dar-lhe importância, ou então endossar-me o cuidado de
melhor regular os meus pensamentos? Estas questões colocam-se a cada um, perto
de si e diante de si. Cada um procura aqui os conselhos dum sábio e bom
amigo. Eis por que vos quero fazer
entrar sem sobressaltos na conversação dum grande espírito, que muitas vezes
foi melancólico como vós sois, que sentiu tão vivamente como vós como a
tristeza se parece com a doença, e que cedo tomou o partido de ser para si o
seu próprio médico; em cima disso, que fez a guerra, viajou, conheceu toda a
espécie de homens, e se encontrou mesmo algumas vezes em familiaridade com as
grandezas deste mundo.
Para
isto, vou recorrer largamente às cartas que Descartes escreveu à princesa
Elisabeth, onde se encontram todas as ideias que o Tratado das Paixões reúne
e põe em ordem, sem outro desígnio primeiro além de ajudar um pouco uma
natureza arrebatada e ainda com a experiência de grandes e públicas desgraças,
em que a violência das paixões parece ter tido grande parte. De resto, a outra
aluna de Descartes, a rainha Cristina da Suécia, não tinha menos necessidade
das lições de sabedoria. E quem não precisa delas? O que é próprio de
Descartes, e que faz com que ainda hoje
possa atrair a si como um íman todos os seres em dificuldade consigo mesmos, é,
com uma resignação toda cristã a respeito dos acontecimentos inevitáveis, uma
ousadia admirável contra a sorte, e uma vontade de conduzir a sua vida pelo
melhor, sem que a ideia de fatalidade alguma vez o tenha tocado ou mesmo
aflorado. Eis o que se lê numa das primeiras cartas de Descartes à princesa
Elisabeth: “Frequentemente, a indisposição que está no corpo impede que a
vontade seja livre, como acontece também quando dormimos; por que o mais
filósofo do mundo não poderia impedir-se
de ter maus sonhos, quando o seu temperamento o dispõe a isso. Todavia, a
experiência faz ver que se se teve muitas vezes algum pensamento enquanto o espírito esteve em liberdade, ele regressa
depois ainda, por alguma indisposição que o corpo tenha. Assim, posso me gabar
de que os meus sonhos não me representam nunca nada de desagradável, e que sem dúvida há grande vantagem em estar-se
de longa data acostumado a não ter pensamentos tristes.” Encontrais aqui a fé
ao trabalho, e Deus invocado como é preciso. Mas eis melhor. Um pouco mais
tarde, escrevendo à mesma, Descartes confia-se mais, e fala como médico da
alma. Não posso resumir nem encurtar essas páginas incomparáveis, que pertencem
de direito ao Breviário dos homens novos.
“Eu
não pude ler a carta que Vossa Alteza
concedeu a honra de me escrever, sem ter extremos ressentimentos, por
ver que uma virtude tão rara e tão completa
não esteja acompanhada da saúde nem das prosperidades que ela merece, e
concebo facilmente a multidão de desprazeres que continuamente a ela se
apresentam, e que são tanto mais difíceis de ultrapassar, quanto muitas vezes
são de tal natureza, que a verdadeira razão não ordena que se lhe oponhamos
directamente, e que cuidemos de os expulsar; são inimigos domésticos com os
quais estando constrangidos a conversar, se é obrigado a estar continuamente em
guarda, a fim de impedir que eles nos prejudiquem; e eu não encontro para isso
senão um remédio, que é de daí desviar a
sua imaginação e os seus sentidos o mais possível, e de só empregar o entendimento a considerá-los,
quando a isso obrigados pela prudência. Pode-se, me parece, facilmente notar
aqui a diferença que existe entre o entendimento e a imaginação ou o sentido;
porque ela é tal, que creio que uma pessoa que tivesse de resto todos os
motivos para estar contente, mas que visse continuamente representarem-se
diante de si tragédias, cujos actos fossem todos funestos, e que se ocupasse só a considerar objectos de
tristeza e de piedade, que soubesse serem fingidos e fabulosos, de modo a que
só puxassem lágrimas dos seus olhos e comovessem a sua imaginação, sem tocar o
seu entendimento; creio, digo eu, que isso
só bastaria para acostumar o seu coração a apertar-se, e a lançar suspiros; na
sequência do que a circulação do sangue sendo retardada e mais lenta, as mais
grosseiras partes desse sangue, prendendo-se umas às outras, poderiam
facilmente opilar-lhe o baço, embaraçando-se e detendo-se nos seus poros; e as
mais subtis, retendo a sua agitação, poderiam alterar-lhe o pulmão, e
causar-lhe uma tosse que com o tempo seria muito de temer. E pelo contrário,
uma pessoa que tivesse uma infinidade de verdadeiros motivos de desprazer, mas
que se aplicasse com todo o cuidado a desviar deles a imaginação, de modo a que
não pensasse neles a não ser quando a necessidade dos assuntos o exigisse, e
que empregasse todo o resto do seu tempo a considerar somente objectos que lhe
pudessem trazer contentamento e alegria, além disso lhe ser grandemente útil,
para julgar mais sãmente as coisas que lhe importassem, pois que as olharia sem
paixão, eu não duvido que isso só não fosse capaz de o repor em saúde, apesar
do seu baço e dos seus pulmões estarem já muito mal dispostos pelo mau
temperamento do sangue que causam a tristeza, principalmente se ela se servisse
também dos remédios da medicina, para dissolver essa parte do sangue que causa
obstruções: para o que julgo que as águas de Spa são muito apropriadas;
sobretudo se Vossa Alteza observar tomando-as o que os médicos têm o costume de
recomendar, que é preciso inteiramente
libertar o espírito de toda a espécie de meditações sérias tocando as ciências,
e só se ocupar na imitação daqueles que, olhando a verdura dum bosque, as cores
duma flor, o voo dum pássaro, e tais coisas que não requerem nenhuma atenção,
se persuadem que não pensam em nada; o que não é perder o tempo, mas empregá-lo
bem; porque podemos, no entanto,
satisfazer-nos com a esperança de que por este meio se recuperará uma perfeita saúde, a qual é o fundamento de
todos os outros bens que se podem ter nesta vida. Sei bem que não escrevo nada
aqui que Vossa Alteza não saiba melhor do que eu, e que não é tanto a teoria
como a prática que é difícil nisto; mas o favor extremo que ela me faz
testemunhando que não lhe é desagradável ouvir os meus sentimentos faz-me tomar
a liberdade de os escrever tais quais eles são, e me dá ainda a de acrescentar aqui que experimentei em mim
mesmo que um mal quase parecido, e mesmo mais perigoso, se curou pelo remédio
que acabo de dizer; porque tendo nascido duma mãe que morreu poucos dias depois
do meu nascimento dum mal de pulmão, causado por qualquer desgosto, eu tinha
herdado dela uma tosse seca, e uma cor pálida, que conservei até à idade de
mais de vinte anos, e que faziam que todos os médicos que me viram nesse tempo
me condenassem a morrer jovem; mas creio que a inclinação que sempre tive de
olhar as coisas que se apresentavam pelo lado que me pudesse ser mais
agradável, e a fazer que o meu principal contentamento só dependesse de mim,
foi causa que essa indisposição, que me era como que natural, pouco a pouco
passou inteiramente.” O leitor tem agora uma visão sumária, mas exacta e
impressionante, do que é amplamente explicado no Tratado das Paixões.
Todavia, não creio ter feito o bastante para suavizar os acessos desta obra um
pouco abrupta. “Tanto mais, escreve Descartes a alguém que o instiga a publicar
este tratado, que eu só o tinha composto para ser lido por uma princesa cujo
espírito é de tal modo acima do comum que ela concebe sem qualquer esforço o
que parece ser o mais difícil para os nossos doutores, eu só me tinha aí preocupado
em explicar aquilo que pensava ser
novo.” É verdade que Descartes se tinha prometido corrigi-lo. “Confesso,
escreve ele ao mesmo, que estive mais tempo a rever este pequeno tratado do que
estive antes a compô-lo, e que apesar disso poucas coisas acrescentei , e não
mudei nada ao discurso, o qual é tão simples e tão breve, que fará conhecer que
a minha intenção não foi de explicar as paixões como um orador, nem mesmo como
um filósofo moral, mas somente como físico. Assim prevejo que este tratado não
terá melhor sorte que os meus outros escritos; e se bem que o seu título
convide talvez mais pessoas a lê-lo, só aquelas que se derem ao trabalho de o
examinar com cuidado poderão ficar satisfeitas.”
A
dificuldade que eu prevejo para o leitor é a mesma que eu próprio encontrei
outrora, a saber que o detalhe sendo em toda a parte claro e atraente, o
conjunto não se deixa logo apreender. Tentarei, portanto, fazer três grupos
destes curtos artigos, ligando-os a três ideias. A primeira consiste nisto que
as verdadeiras causas das nossas paixões nunca estão nas nossas opiniões, mas
antes nos movimentos involuntários que agitam e sacodem o corpo humano segundo
a sua estrutura e os fluidos que nele circulam; e é uma visão do homem-máquina
a partir do célebre paradoxo do animal-máquina. A segunda ideia é que as paixões
estão na alma, quer dizer são pensamentos, que dependem, é verdade, das
afecções do corpo, mas que não oferecem menos uma variedade que é preciso ainda
descrever. Estas duas ideias estão expostas juntas em quase em todo o lado, nas
três partes da obra. Quanto à terceira ideia, que só se mostra episodicamente
na terceira parte do Tratado, é no entanto aquela que suporta a segunda;
porque as paixões só são tais na alma, e só podem receber este nome tão
expressivo de paixões, por oposição a um pensamento livre no seu fundo, duma
ordem muito diferente e dum muito diferente valor em relação aos acontecimentos
físicos do corpo, e mesmo aos pensamentos servos pelos quais traduzimos a nós
mesmos estes acontecimentos. É aqui que, pela minha parte, aprendi e compreendi que sem o sentimento do
sublime, não assim chamado por Descartes, mas exactamente descrito por ele sob
o nome de generosidade, nós não podemos fazer aparecer como eles são os
sentimentos mais comuns, nem as paixões, nem mesmo as emoções, no entanto mais
próximas do corpo, e quase sem pensamento. O que é o medo na alma, se esse medo
não estiver todo ultrapassado? Mas é preciso voltar mais perto de Descartes, e segundo as três
ideias que acabo de dizer.
Alain
(Tradução de José Ames)
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