quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

SOBRE O TRATADO DAS PAIXÕES







“… mas se se pensa tão-só em alargar a pupila, bem podemos ter a vontade, que nem por isso a alargamos.”


(Paixões 44)

 

Não se trata agora de filosofar, quer dizer de acordar em conjunto as partes dum grande sistema, coisa que não tem pressa, mas antes compreender um pouco a natureza das paixões, e o que podem, para as moderar, sejam as nossa acções, sejam os nossos pensamentos. Este problema pressiona-nos a todos; não espera. Eis que uma fraca decepção, e que eu deveria desprezar, agita ao mesmo tempo o meu coração e os meus pensamentos, instituindo em mim um estado de inquietude em que me parece que a agitação corporal é a sequência de certos pensamentos, e, não menos evidentemente, que a sequência e a cor dos meus pensamentos dependem da agitação do meu corpo. Que devo  pensar destes pensamentos, que não parecem meus, e que são tão meus? Mais à frente,  que devo fazer quanto a isso, e que posso fazer? Este tom de tristeza, que recobre por vezes  até as minhas alegrias, como dissolvê-lo? Como lavar-me pela razão dessa melancolia, quando a minha razão ela mesma parece trair-me e argumentar contra mim, quando as mais fracas razões para estar triste me parecem pesadas e principais, só por que me sinto triste? E essa inquietude do corpo, feita de mil pequenos movimentos sobre os quais não tenho acção, como curá-la sem recorrer ao médico? Mas o próprio médico, que poderá fazer, senão dar-lhe importância, ou então endossar-me o cuidado de melhor regular os meus pensamentos? Estas questões colocam-se a cada um, perto de si e diante de si. Cada um procura aqui os conselhos dum sábio e bom amigo.  Eis por que vos quero fazer entrar sem sobressaltos na conversação dum grande espírito, que muitas vezes foi melancólico como vós sois, que sentiu tão vivamente como vós como a tristeza se parece com a doença, e que cedo tomou o partido de ser para si o seu próprio médico; em cima disso, que fez a guerra, viajou, conheceu toda a espécie de homens, e se encontrou mesmo algumas vezes em familiaridade com as grandezas deste mundo.

Para isto, vou recorrer largamente às cartas que Descartes escreveu à princesa Elisabeth, onde se encontram todas as ideias que o Tratado das Paixões reúne e põe em ordem, sem outro desígnio primeiro além de ajudar um pouco uma natureza arrebatada e ainda com a experiência de grandes e públicas desgraças, em que a violência das paixões parece ter tido grande parte. De resto, a outra aluna de Descartes, a rainha Cristina da Suécia, não tinha menos necessidade das lições de sabedoria. E quem não precisa delas? O que é próprio de Descartes, e que faz com que  ainda hoje possa atrair a si como um íman todos os seres em dificuldade consigo mesmos, é, com uma resignação toda cristã a respeito dos acontecimentos inevitáveis, uma ousadia admirável contra a sorte, e uma vontade de conduzir a sua vida pelo melhor, sem que a ideia de fatalidade alguma vez o tenha tocado ou mesmo aflorado. Eis o que se lê numa das primeiras cartas de Descartes à princesa Elisabeth: “Frequentemente, a indisposição que está no corpo impede que a vontade seja livre, como acontece também quando dormimos; por que o mais filósofo do mundo  não poderia impedir-se de ter maus sonhos, quando o seu temperamento o dispõe a isso. Todavia, a experiência faz ver que se se teve muitas vezes algum pensamento enquanto  o espírito esteve em liberdade, ele regressa depois ainda, por alguma indisposição que o corpo tenha. Assim, posso me gabar de que os meus sonhos não me representam nunca nada de desagradável, e  que sem dúvida há grande vantagem em estar-se de longa data acostumado a não ter pensamentos tristes.” Encontrais aqui a fé ao trabalho, e Deus invocado como é preciso. Mas eis melhor. Um pouco mais tarde, escrevendo à mesma, Descartes confia-se mais, e fala como médico da alma. Não posso resumir nem encurtar essas páginas incomparáveis, que pertencem de direito ao Breviário dos homens novos.

“Eu não pude ler a carta que Vossa Alteza  concedeu a honra de me escrever, sem ter extremos ressentimentos, por ver que uma virtude tão rara e tão completa  não esteja acompanhada da saúde nem das prosperidades que ela merece, e concebo facilmente a multidão de desprazeres que continuamente a ela se apresentam, e que são tanto mais difíceis de ultrapassar, quanto muitas vezes são de tal natureza, que a verdadeira razão não ordena que se lhe oponhamos directamente, e que cuidemos de os expulsar; são inimigos domésticos com os quais estando constrangidos a conversar, se é obrigado a estar continuamente em guarda, a fim de impedir que eles nos prejudiquem; e eu não encontro para isso senão um remédio, que é de  daí desviar a sua imaginação e os seus sentidos o mais possível, e de só  empregar o entendimento a considerá-los, quando a isso obrigados pela prudência. Pode-se, me parece, facilmente notar aqui a diferença que existe entre o entendimento e a imaginação ou o sentido; porque ela é tal, que creio que uma pessoa que tivesse de resto todos os motivos para estar contente, mas que visse continuamente representarem-se diante de si tragédias, cujos actos fossem todos funestos, e que  se ocupasse só a considerar objectos de tristeza e de piedade, que soubesse serem fingidos e fabulosos, de modo a que só puxassem lágrimas dos seus olhos e comovessem a sua imaginação, sem tocar o seu entendimento; creio, digo eu,  que isso só bastaria para acostumar o seu coração a apertar-se, e a lançar suspiros; na sequência do que a circulação do sangue sendo retardada e mais lenta, as mais grosseiras partes desse sangue, prendendo-se umas às outras, poderiam facilmente opilar-lhe o baço, embaraçando-se e detendo-se nos seus poros; e as mais subtis, retendo a sua agitação, poderiam alterar-lhe o pulmão, e causar-lhe uma tosse que com o tempo seria muito de temer. E pelo contrário, uma pessoa que tivesse uma infinidade de verdadeiros motivos de desprazer, mas que se aplicasse com todo o cuidado a desviar deles a imaginação, de modo a que não pensasse neles a não ser quando a necessidade dos assuntos o exigisse, e que empregasse todo o resto do seu tempo a considerar somente objectos que lhe pudessem trazer contentamento e alegria, além disso lhe ser grandemente útil, para julgar mais sãmente as coisas que lhe importassem, pois que as olharia sem paixão, eu não duvido que isso só não fosse capaz de o repor em saúde, apesar do seu baço e dos seus pulmões estarem já muito mal dispostos pelo mau temperamento do sangue que causam a tristeza, principalmente se ela se servisse também dos remédios da medicina, para dissolver essa parte do sangue que causa obstruções: para o que julgo que as águas de Spa são muito apropriadas; sobretudo se Vossa Alteza observar tomando-as o que os médicos têm o costume de recomendar, que é  preciso inteiramente libertar o espírito de toda a espécie de meditações sérias tocando as ciências, e só se ocupar na imitação daqueles que, olhando a verdura dum bosque, as cores duma flor, o voo dum pássaro, e tais coisas que não requerem nenhuma atenção, se persuadem que não pensam em nada; o que não é perder o tempo, mas empregá-lo bem; porque podemos, no entanto,  satisfazer-nos com a esperança de que por este meio se recuperará  uma perfeita saúde, a qual é o fundamento de todos os outros bens que se podem ter nesta vida. Sei bem que não escrevo nada aqui que Vossa Alteza não saiba melhor do que eu, e que não é tanto a teoria como a prática que é difícil nisto; mas o favor extremo que ela me faz testemunhando que não lhe é desagradável ouvir os meus sentimentos faz-me tomar a liberdade de os escrever tais quais eles são, e me dá ainda  a de acrescentar aqui que experimentei em mim mesmo que um mal quase parecido, e mesmo mais perigoso, se curou pelo remédio que acabo de dizer; porque tendo nascido duma mãe que morreu poucos dias depois do meu nascimento dum mal de pulmão, causado por qualquer desgosto, eu tinha herdado dela uma tosse seca, e uma cor pálida, que conservei até à idade de mais de vinte anos, e que faziam que todos os médicos que me viram nesse tempo me condenassem a morrer jovem; mas creio que a inclinação que sempre tive de olhar as coisas que se apresentavam pelo lado que me pudesse ser mais agradável, e a fazer que o meu principal contentamento só dependesse de mim, foi causa que essa indisposição, que me era como que natural, pouco a pouco passou inteiramente.” O leitor tem agora uma visão sumária, mas exacta e impressionante, do que é amplamente explicado no Tratado das Paixões. Todavia, não creio ter feito o bastante para suavizar os acessos desta obra um pouco abrupta. “Tanto mais, escreve Descartes a alguém que o instiga a publicar este tratado, que eu só o tinha composto para ser lido por uma princesa cujo espírito é de tal modo acima do comum que ela concebe sem qualquer esforço o que parece ser o mais difícil para os nossos doutores, eu só me tinha aí preocupado em explicar aquilo que  pensava ser novo.” É verdade que Descartes se tinha prometido corrigi-lo. “Confesso, escreve ele ao mesmo, que estive mais tempo a rever este pequeno tratado do que estive antes a compô-lo, e que apesar disso poucas coisas acrescentei , e não mudei nada ao discurso, o qual é tão simples e tão breve, que fará conhecer que a minha intenção não foi de explicar as paixões como um orador, nem mesmo como um filósofo moral, mas somente como físico. Assim prevejo que este tratado não terá melhor sorte que os meus outros escritos; e se bem que o seu título convide talvez mais pessoas a lê-lo, só aquelas que se derem ao trabalho de o examinar com cuidado poderão ficar satisfeitas.”

A dificuldade que eu prevejo para o leitor é a mesma que eu próprio encontrei outrora, a saber que o detalhe sendo em toda a parte claro e atraente, o conjunto não se deixa logo apreender. Tentarei, portanto, fazer três grupos destes curtos artigos, ligando-os a três ideias. A primeira consiste nisto que as verdadeiras causas das nossas paixões nunca estão nas nossas opiniões, mas antes nos movimentos involuntários que agitam e sacodem o corpo humano segundo a sua estrutura e os fluidos que nele circulam; e é uma visão do homem-máquina a partir do célebre paradoxo do animal-máquina. A segunda ideia é que as paixões estão na alma, quer dizer são pensamentos, que dependem, é verdade, das afecções do corpo, mas que não oferecem menos uma variedade que é preciso ainda descrever. Estas duas ideias estão expostas juntas em quase em todo o lado, nas três partes da obra. Quanto à terceira ideia, que só se mostra episodicamente na terceira parte do Tratado, é no entanto aquela que suporta a segunda; porque as paixões só são tais na alma, e só podem receber este nome tão expressivo de paixões, por oposição a um pensamento livre no seu fundo, duma ordem muito diferente e dum muito diferente valor em relação aos acontecimentos físicos do corpo, e mesmo aos pensamentos servos pelos quais traduzimos a nós mesmos estes acontecimentos. É aqui que, pela minha parte,   aprendi e compreendi que sem o sentimento do sublime, não assim chamado por Descartes, mas exactamente descrito por ele sob o nome de generosidade, nós não podemos fazer aparecer como eles são os sentimentos mais comuns, nem as paixões, nem mesmo as emoções, no entanto mais próximas do corpo, e quase sem pensamento. O que é o medo na alma, se esse medo não estiver todo ultrapassado? Mas é preciso voltar  mais perto de Descartes, e segundo as três ideias que acabo de dizer.


Alain
(Tradução de José Ames)



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