quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

GEÓMETRA E FÍSICO




“Supondo mesmo ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.”


(O Discurso do Método)



 
A fim de não me perder em resumos que não explicariam nada, considerarei somente dois exemplos, que não oferecem quaisquer dificuldades superiores, e que são próprios a fazer ver o que é o espírito cartesiano diante da natureza. Primeiramente, na sua Dióptrica, Descartes quer compreender como se pode representar o desvio da luz, seja por reflexão, seja por refracção. Ele supõe uma bola lançada; todavia não é para esta hipótese que quero chamar a atenção, mas antes para a análise mesma deste movimento, supondo que a bola encontra, seja um obstáculo duro que a reenvia, seja  um obstáculo fraco que apenas lhe modera a marcha. Eis a análise, para a qual não é preciso figura. Na primeira suposição, a bola encontra um obstáculo duro, quer dizer tal que possa mudar a direcção, mas não a velocidade, do movimento. Este obstáculo é plano; segundo o entendimento, não pode ser outro; e, bem melhor, o plano só pode fazer obstáculo a um movimento que o encontre normalmente; um tal encontro é a perfeição do encontro ou, se se quiser, um tal obstáculo é a perfeição do obstáculo. Observai como o geómetra esclarece a mecânica para ela transpondo o seu método constante, que determina sempre o facto pela ideia. O encontro estando assim definido, o obstáculo sendo perfeitamente duro, e o movimento  só podendo ser reenviado, é claro que ele o será conforme a própria normal, pois que, sendo tudo igual quanto à normal, não há razão para que a bola, ela mesma perfeitamente redonda, seja desviada dum lado mais do que do outro. Este género de raciocínio surpreende sempre aqueles que não sabem pensar a ideia na imagem.  Mas eis uma outra invenção de geómetra, e de imenso alcance. Consideremos o caso em que a bola encontra obliquamente o plano. O que quer dizer obliquamente? Isso não pode ser definido pelo plano, porque, em relação ao plano, apenas vejo duas direcções que não sejam ambíguas; o movimento normal ao plano encontra-o absolutamente; o movimento paralelo ao plano não o encontra absolutamente. É para estes dois movimentos que é preciso remeter o movimento oblíquo, e basta para isso supor, em lugar do movimento oblíquo, dois movimentos em conjunto, um normal ao plano, o outro paralelo. Trata-se o primeiro  como se disse mais acima; e, quanto ao outro movimento, uma vez que não encontra nunca o plano, deve apenas continuar o mesmo, em direcção e em velocidade. A recomposição dos dois, depois do encontro, dá facilmente o traçado do movimento reflectido, e a lei de igualdade entre o ângulo de incidência e o ângulo de reflexão. Insisto no procedimento de decomposição, empregue agora tantas vezes que já nem se pensa nisso. O que encontro de ousado, e muito próprio a distinguir o entendimento da imaginação, é que num sentido a bola encontra o plano, noutro sentido não; e é o que não se compreenderá se não se souber o que é um plano.

O exemplo da refracção faz ainda melhor aparecer, talvez, esta força de espírito.  Supõe-se agora que a bola atravessa um plano, como seria uma tela estendida, perdendo somente alguma coisa da sua velocidade;  e encontra-se aqui mais uma vez, pela própria análise do movimento oblíquo, esse movimento paralelo que não encontra de nenhum modo a tela. Aqui a imaginação não pode de todo substituir-se ao entendimento, porque uma parte do movimento parece ficar dum lado da tela; por isso eu vi que espíritos, que eu cria geómetras, resistiam aqui, dizendo que esta análise é falsa, e só tem êxito por acaso. De qualquer modo, seguindo as  definições, chega-se muito simplesmente, pela recomposição dos dois movimentos, um que perdeu a sua velocidade, e outro que continuou  o mesmo, a determinar os ângulos de incidência e de refracção segundo a relação das velocidades nos dois meios. Deixando de lado o problema de óptica que levaria muito longe, quero somente que o leitor admire aqui esta ousadia do geómetra que decide que o obstáculo plano atravessado, qualquer que seja a sua natureza, não pode diminuir a velocidade do projéctil senão segundo a normal ao plano; não é mais no entanto do que recusar os efeitos que não resultam da definição do plano. Nenhum exemplo é mais próprio a fazer compreender o que é uma ideia e o que é um acontecimento. A respeito das acções  e reacções entre um fluido e um plano resistente, problema que o moinho de vento já propunha, disse-se já o suficiente que ninguém sabe exactamente o que se passa  no choque oblíquo do ar contra a tela estendida; é também porque uma tela estendida não é um plano; é que o ar se prende de mil maneiras às desigualdades da superfície, e que aí ressalta; é que a própria pressão deforma a superfície. Tenta-se pois milhares de vezes, e o sucesso vale conhecimento. Ora, esse género de conhecimento é aquele que Descartes recusa sempre, e até na matemática, onde os achados felizes dos práticos antecipam algumas vezes a marcha segura do verdadeiro geómetra. O método, que prescreve ir do simples ao complexo, impõe pelo contrário reconstruir, segundo as definições, um acontecimento teórico que somente por elas se explicará. E a questão é apenas de saber o que acontecerá segundo a ideia. O desvio entre a ideia e o acontecimento revelará outras condições, que será preciso definir de modo a que  possam entrar no problema. Este andamento seguro, que o geómetra nos ensina, é demasiadas vezes esquecido quando é preciso escolher entre poder e saber. Ora, não faltam práticos infiéis, e mesmo na matemática. É assim que, por falta de se ter reflectido o bastante,  e como geómetra, neste simples exemplo,  se admitirá, como é necessário,  mas se admitirá sem saber porquê, que toda a pressão contra um plano é normal ao plano. É próprio dos espíritos fracos apresentarem como uma hipótese arbitrária, mas que  resulta, uma ideia que eles não sabem formar. O arrogante pragmatismo resulta na realidade de que a imaginação substitui por simples procedimentos as ideias do entendimento. Escolhi estes dois exemplos porque a ideia que lhes é comum, de substituir uma oblíqua pelas suas projecções sobre dois eixos bem determinados, além de que cobre toda a nossa mecânica e toda a nossa física, é a ideia mãe da geometria analítica, imortal invenção de Descartes.

A teoria do íman, que se encontra nos Princípios, fará aparecer em conjunto o geómetra e o homem dos turbilhões. Descartes teve presente primeiro todas as experiências conhecidas sobre a relação dos ímanes aos ímanes e dos ímanes à terra. Levemos apenas a nossa atenção sobre isto que um íman livre, na vizinhança dum íman fixo, se volta até que os pólos de nome contrário fiquem um face ao outro e o mais próximos possível um do outro. Onde o nosso filósofo se guarda de reconhecer qualquer atracção ou repulsa à distância, mas percebe que os efeitos dum fluxo invisível de partículas, primeiro saindo de um dos ímanes e não podendo entrar no outro, mas com ele chocando e o desviando, depois, quando os pólos de nome contrário estão à face, passando facilmente de um ao outro, o que os mantém nessa posição e até os aproximaria. Eu passo os detalhes, mas retenho a invenção própria do geómetra; são essas partes  caneladas, quer dizer torneadas em parafuso, das quais há duas espécies, de que umas aparafusam à direita e as outras à esquerda, o que permite, umas não podendo nunca passar nos canais que convêm às outras, conceber um duplo fluxo circulando em dois sentidos no interior da terra, cada um saindo por um dos pólos, contornando a terra antes de reentrar no outro, e atravessando os ímanes neste percurso. Notar-se-á que a diferença destas duas espécies de partículas é geométrica e que ela corresponde para o entendimento a essa dualidade dos pólos que é o principal facto do íman. É verdade também que esta condição não basta, e que é preciso ainda supor nos condutos dos metais, pequenos obstáculos dobráveis, mais flexíveis no ferro, mais rígidos no aço e na pedra de íman, e que, uma vez deitados num sentido por uma primeira passagem, dificultam ou até impedem completamente a passagem no sentido inverso. Tudo isso suposto, que acabam por ser choques e encontros, é preciso reconhecer que os paradoxos do íman estão todos explicados, as partes caneladas circulando bem mais facilmente no íman, no aço e no ferro do que no ar, onde, pelo contrário, elas são em parte repelidas, em parte deformadas e gastas, em parte reenviadas, o que explica o duplo fluxo no interior do íman e em volta; donde os nossos físicos devem reconhecer o principal dos seus pensamentos sobre o assunto, e talvez todos, se quiserem, ainda desta vez, tirar a ideia para fora da imagem.

Quero dar um olhar também, mas sumariamente, à teoria do arco íris, que Descartes conduziu imediatamente à perfeição, por uma visão puramente geométrica. O arco íris devia ser, para o físico, o fenómeno de escolha para esses círculos que traça na aparência, e que advertiam energicamente e deviam despertar o espírito geómetra. É suficiente descobrir que o ângulo de refracção depende das cores para explicar esses círculos coloridos cuja perfeição é primeiro miraculosa. E este exemplo era apropriado a fazer apreender a diferença entre o que parece e o que é. Pois que dois homens nunca vêem ao mesmo tempo o mesmo arco íris. Eu quis dar a entrever, nestes resumos, que, entre tantas observações escrupulosas, Descartes, é talvez o único que, diante das maravilhas do mundo, permaneceu estritamente fiel ao espírito.


Alain
(Tradução de José Ames)

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