“Supondo mesmo ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.”
(O Discurso do Método)
A fim
de não me perder em resumos que não explicariam nada, considerarei somente dois
exemplos, que não oferecem quaisquer dificuldades superiores, e que são
próprios a fazer ver o que é o espírito cartesiano diante da natureza.
Primeiramente, na sua Dióptrica, Descartes quer compreender como se pode
representar o desvio da luz, seja por reflexão, seja por refracção. Ele supõe
uma bola lançada; todavia não é para esta hipótese que quero chamar a atenção,
mas antes para a análise mesma deste movimento, supondo que a bola encontra,
seja um obstáculo duro que a reenvia, seja
um obstáculo fraco que apenas lhe modera a marcha. Eis a análise, para a
qual não é preciso figura. Na primeira suposição, a bola encontra um obstáculo
duro, quer dizer tal que possa mudar a direcção, mas não a velocidade, do
movimento. Este obstáculo é plano; segundo o entendimento, não pode ser outro;
e, bem melhor, o plano só pode fazer obstáculo a um movimento que o encontre
normalmente; um tal encontro é a perfeição do encontro ou, se se quiser, um tal
obstáculo é a perfeição do obstáculo. Observai como o geómetra esclarece a
mecânica para ela transpondo o seu método constante, que determina sempre o
facto pela ideia. O encontro estando assim definido, o obstáculo sendo
perfeitamente duro, e o movimento só
podendo ser reenviado, é claro que ele o será conforme a própria normal, pois
que, sendo tudo igual quanto à normal, não há razão para que a bola, ela mesma
perfeitamente redonda, seja desviada dum lado mais do que do outro. Este género
de raciocínio surpreende sempre aqueles que não sabem pensar a ideia na
imagem. Mas eis uma outra invenção de
geómetra, e de imenso alcance. Consideremos o caso em que a bola encontra
obliquamente o plano. O que quer dizer obliquamente? Isso não pode ser definido
pelo plano, porque, em relação ao plano, apenas vejo duas direcções que não
sejam ambíguas; o movimento normal ao plano encontra-o absolutamente; o
movimento paralelo ao plano não o encontra absolutamente. É para estes dois
movimentos que é preciso remeter o movimento oblíquo, e basta para isso supor,
em lugar do movimento oblíquo, dois movimentos em conjunto, um normal ao plano,
o outro paralelo. Trata-se o primeiro
como se disse mais acima; e, quanto ao outro movimento, uma vez que não
encontra nunca o plano, deve apenas continuar o mesmo, em direcção e em
velocidade. A recomposição dos dois, depois do encontro, dá facilmente o
traçado do movimento reflectido, e a lei de igualdade entre o ângulo de
incidência e o ângulo de reflexão. Insisto no procedimento de decomposição,
empregue agora tantas vezes que já nem se pensa nisso. O que encontro de
ousado, e muito próprio a distinguir o entendimento da imaginação, é que num
sentido a bola encontra o plano, noutro sentido não; e é o que não se
compreenderá se não se souber o que é um plano.
O
exemplo da refracção faz ainda melhor aparecer, talvez, esta força de
espírito. Supõe-se agora que a bola
atravessa um plano, como seria uma tela estendida, perdendo somente alguma
coisa da sua velocidade; e encontra-se
aqui mais uma vez, pela própria análise do movimento oblíquo, esse movimento
paralelo que não encontra de nenhum modo a tela. Aqui a imaginação não pode de
todo substituir-se ao entendimento, porque uma parte do movimento parece ficar
dum lado da tela; por isso eu vi que espíritos, que eu cria geómetras,
resistiam aqui, dizendo que esta análise é falsa, e só tem êxito por acaso. De
qualquer modo, seguindo as definições,
chega-se muito simplesmente, pela recomposição dos dois movimentos, um que
perdeu a sua velocidade, e outro que continuou
o mesmo, a determinar os ângulos de incidência e de refracção segundo a
relação das velocidades nos dois meios. Deixando de lado o problema de óptica
que levaria muito longe, quero somente que o leitor admire aqui esta ousadia do
geómetra que decide que o obstáculo plano atravessado, qualquer que seja a sua
natureza, não pode diminuir a velocidade do projéctil senão segundo a normal ao
plano; não é mais no entanto do que recusar os efeitos que não resultam da
definição do plano. Nenhum exemplo é mais próprio a fazer compreender o que é
uma ideia e o que é um acontecimento. A respeito das acções e reacções entre um fluido e um plano
resistente, problema que o moinho de vento já propunha, disse-se já o
suficiente que ninguém sabe exactamente o que se passa no choque oblíquo do ar contra a tela
estendida; é também porque uma tela estendida não é um plano; é que o ar se
prende de mil maneiras às desigualdades da superfície, e que aí ressalta; é que
a própria pressão deforma a superfície. Tenta-se pois milhares de vezes, e o
sucesso vale conhecimento. Ora, esse género de conhecimento é aquele que
Descartes recusa sempre, e até na matemática, onde os achados felizes dos
práticos antecipam algumas vezes a marcha segura do verdadeiro geómetra. O
método, que prescreve ir do simples ao complexo, impõe pelo contrário
reconstruir, segundo as definições, um acontecimento teórico que somente por
elas se explicará. E a questão é apenas de saber o que acontecerá segundo a
ideia. O desvio entre a ideia e o acontecimento revelará outras condições, que
será preciso definir de modo a que
possam entrar no problema. Este andamento seguro, que o geómetra nos
ensina, é demasiadas vezes esquecido quando é preciso escolher entre poder e
saber. Ora, não faltam práticos infiéis, e mesmo na matemática. É assim que,
por falta de se ter reflectido o bastante,
e como geómetra, neste simples exemplo,
se admitirá, como é necessário,
mas se admitirá sem saber porquê, que toda a pressão contra um plano é
normal ao plano. É próprio dos espíritos fracos apresentarem como uma hipótese
arbitrária, mas que resulta, uma ideia
que eles não sabem formar. O arrogante pragmatismo resulta na realidade de que
a imaginação substitui por simples procedimentos as ideias do entendimento.
Escolhi estes dois exemplos porque a ideia que lhes é comum, de substituir uma
oblíqua pelas suas projecções sobre dois eixos bem determinados, além de que
cobre toda a nossa mecânica e toda a nossa física, é a ideia mãe da geometria
analítica, imortal invenção de Descartes.
A
teoria do íman, que se encontra nos Princípios, fará aparecer em
conjunto o geómetra e o homem dos turbilhões. Descartes teve presente primeiro
todas as experiências conhecidas sobre a relação dos ímanes aos ímanes e dos
ímanes à terra. Levemos apenas a nossa atenção sobre isto que um íman livre, na
vizinhança dum íman fixo, se volta até que os pólos de nome contrário fiquem um
face ao outro e o mais próximos possível um do outro. Onde o nosso filósofo se
guarda de reconhecer qualquer atracção ou repulsa à distância, mas percebe que
os efeitos dum fluxo invisível de partículas, primeiro saindo de um dos ímanes
e não podendo entrar no outro, mas com ele chocando e o desviando, depois,
quando os pólos de nome contrário estão à face, passando facilmente de um ao
outro, o que os mantém nessa posição e até os aproximaria. Eu passo os detalhes,
mas retenho a invenção própria do geómetra; são essas partes caneladas, quer dizer torneadas em parafuso,
das quais há duas espécies, de que umas aparafusam à direita e as outras à
esquerda, o que permite, umas não podendo nunca passar nos canais que convêm às
outras, conceber um duplo fluxo circulando em dois sentidos no interior da
terra, cada um saindo por um dos pólos, contornando a terra antes de reentrar
no outro, e atravessando os ímanes neste percurso. Notar-se-á que a diferença
destas duas espécies de partículas é geométrica e que ela corresponde para o
entendimento a essa dualidade dos pólos que é o principal facto do íman. É
verdade também que esta condição não basta, e que é preciso ainda supor nos
condutos dos metais, pequenos obstáculos dobráveis, mais flexíveis no ferro,
mais rígidos no aço e na pedra de íman, e que, uma vez deitados num sentido por
uma primeira passagem, dificultam ou até impedem completamente a passagem no
sentido inverso. Tudo isso suposto, que acabam por ser choques e encontros, é
preciso reconhecer que os paradoxos do íman estão todos explicados, as partes
caneladas circulando bem mais facilmente no íman, no aço e no ferro do que no
ar, onde, pelo contrário, elas são em parte repelidas, em parte deformadas e
gastas, em parte reenviadas, o que explica o duplo fluxo no interior do íman e
em volta; donde os nossos físicos devem reconhecer o principal dos seus
pensamentos sobre o assunto, e talvez todos, se quiserem, ainda desta vez,
tirar a ideia para fora da imagem.
Quero
dar um olhar também, mas sumariamente, à teoria do arco íris, que Descartes
conduziu imediatamente à perfeição, por uma visão puramente geométrica. O arco
íris devia ser, para o físico, o fenómeno de escolha para esses círculos que
traça na aparência, e que advertiam energicamente e deviam despertar o espírito
geómetra. É suficiente descobrir que o ângulo de refracção depende das cores
para explicar esses círculos coloridos cuja perfeição é primeiro miraculosa. E
este exemplo era apropriado a fazer apreender a diferença entre o que parece e
o que é. Pois que dois homens nunca vêem ao mesmo tempo o mesmo arco íris. Eu
quis dar a entrever, nestes resumos, que, entre tantas observações
escrupulosas, Descartes, é talvez o único que, diante das maravilhas do mundo,
permaneceu estritamente fiel ao espírito.
Alain
(Tradução de José Ames)
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