“… Em lugar do que, se mexerdes a pena dum outro modo quase parecido, a única diferença que estará nesse pequeno movimento pode dar-lhes pensamentos totalmente contrários, de paz, de repouso, de doçura…”
(Princípios IV, 197)
O
animal faz ver muitas vezes os sinais da alegria, da cólera, ou do medo;
algumas vezes mesmo, quando se trata dum animal familiar como um cão, nós
cremos que ele exprime pelos seus movimentos seja o reconhecimento, seja a
vergonha, seja o arrependimento. Todavia há mais de uma razão para julgar que
nós lhe emprestemos aqui pensamentos que ele não tem; e a ideia oposta, que é a
de que o animal produz só pelo mecanismo todos estes sinais eloquentes,
esclarece muito, pelo contrário, as paixões do homem, se chegarmos a compreender
que mesmo sem pensar em tal de todo, nós não produziríamos menos para fora a
maior parte dos sinais da piedade, da indignação, da repulsa, sem nada disso experimentar. Donde se concebem
duas coisas; a primeira, que foi aqui acima exposta, é que tudo o que existe de
irrazoável nas paixões tem por causa a mecânica do nosso corpo; a segunda, é
que só há paixões na alma, quer dizer tanto quanto esses movimentos cegos do
corpo mudam as nossas opiniões e as nossas resoluções. Nós sentimos as paixões
não como movimentos no nosso corpo, mas como uma perturbação involuntária, e mesmo
insuperável, nos nossos pensamentos. Por exemplo, os movimentos corporais que
causa o medo fazem-nos julgar que certo objecto é muito temível, fazem-nos
duvidar do sucesso, e desviam-nos ao mesmo tempo de querer e de ousar. Não é
que o tremor dos nossos membros e as batidas precipitadas do nosso coração não
se conheçam então, porque a alma pode perceber também essas coisas; mas elas
nunca são percebidas distintamente nem completamente; e este conhecimento não é
o principal nas paixões, que se manifestam sobretudo pelos juízos falsos ou
incertos, dos quais, no entanto, estamos muito seguros. Descartes escreve à
princesa Elisabeth: “Todas as nossas paixões nos representam os bens à procura
dos quais nos incitam muito maiores do que eles são na verdade… o que nós
devemos cuidadosamente notar a fim de que, quando estivermos emocionados por
qualquer paixão, suspendamos o nosso juízo até que ela tenha sossegado.”
Esta
ideia das paixões e este remédio para as
paixões aparecem amplamente no Tratado, de que não farei aqui extractos.
Retenho somente que as nossas paixões se levantam, em nós e para nós, como uma
aparência nas nossas percepções, nas nossas opiniões, e nos nossos projectos,
ou então como um turbilhão de vãos pensamentos, os quais não dominamos, e que
não nos podemos impedir de crer verdadeiros, donde acabamos por estimar,
desprezar, odiar, recear, sem discernimento nem medida, e sempre hesitando, como desfazendo e
refazendo as nossas resoluções, pela sucessão de opiniões opostas das
quais somos, à vez, persuadidos. Pois que assim figura nas nossas paixões toda
a espécie de objectos, presentes, passados, por vir, e opiniões respeitando ao
bem e ao mal que daí podem resultar, nós podemos descrever nas nossas paixões
muitas diferenças de que cada um tem a experiência, e assim as enumerar, comparar
e classificar, sem considerar logo a que movimentos do corpo elas devem ser
relacionadas. Essa descrição, que se pode chamar psicológica, ocupa a maior
parte do Tratado, sobretudo na segunda e na terceira parte. Estas
definições tão bem nuançadas, e numa tão bela linguagem, teriam ainda todo o valor
mesmo quando se quisesse ignorar os movimentos escondidos do corpo que elas
traduzem na linguagem comum.
Sobre
a ordem das paixões principais, e sobre
a filiação das paixões particulares, eu não me apercebo de nada que não
confirme o uso comum das palavras, e que, ao mesmo tempo, não o esclareça. Só a admiração, a primeira
de todas as paixões segundo Descartes, e que, pensa ele, não interessa o
coração, poderia ser mal apreendida. E como não se trata nada, para o leitor em
que penso, de refutar Descartes, mas antes de voltar à escola sob o mestre mais
clarividente que já se viu, eu quero propor aqui uma ou duas observações que me
foram muito úteis. Primeiramente, é preciso compreender que a palavra admiração
é tomada no sentido antigo, que a aproxima do espanto; mas trata-se aqui do
espanto intelectual e não do choque da
surpresa. Descartes conhece os efeitos desse choque, que são vivos, e que
tornam primeiro quase invencíveis as menores paixões; assim ele não diria que
uma tal surpresa não interessa o coração. A admiração só interessa no
corpo o cérebro; ela é paixão no sentido
em que os movimentos dos espíritos que a acompanham são estranhos aos vincos do
hábito, e podia-se mesmo dizer que é por esta razão que não correm
imediatamente nos membros, e que assim o corpo fica imóvel nesta paixão. E sem
dúvida seria preciso um Descartes para perceber o que há de paixão no primeiro
toque da inteligência, e antes mesmo que se suponha que o objecto novo nos pode
prejudicar ou servir. É um traço de génio
ter separado do medo e até da esperança a primeira curiosidade, sem a cortar no
entanto do corpo. E esta outra observação,
que é mais bela ainda, de ter percebido que a admiração é a primeira de
todas as paixões, e se encontra na origem de todas. Há uma espécie de ávida
contemplação, sem mescla de qualquer sentimento, e também sem espírito ou
quase, que é a marca própria do animal pensante: é que ele abandona então as partes virgens do
seu cérebro a movimentos novos, que se fazem com uma vivacidade incomparável,
mas aliás sem qualquer prazer real e sem a ideia de qualquer fim e de qualquer
uso. Tal é, segundo Descartes, o que sentem primeiro os viajantes, e que pode
ser sem nenhuma consequência, a não ser que, pelo costume, os efeitos da
admiração deixam cedo de se produzirem, e que é necessário procurar algum outro
objecto. No que se percebe bem que a admiração é uma paixão da alma; e
Descartes distingue-a muito escrupulosamente dessa acção do juízo, que pode
segui-la, mas que está bem longe de a
seguir sempre. E parece-me que a
doutrina comum da atenção é corrigida aqui de duas maneiras; porque não devemos
confundir a atenção com essa surpresa animal que nos mantém arquejantes, nem,
tampouco, com essa curiosidade vulgar
que sorve todo o objecto como uma bebida, e não faz dele jamais nem ideia
nem acção. Eis um traço espantoso do homem, e que explica talvez todo o
aborrecimento. Notou-se que os selvagens ficam com os olhos muito abertos
diante das nossas máquinas, e depressa deixam de pensar nelas; isso, se se
reflectisse nisso, daria grandes vistas sobre a dificuldade de instruir, e
sobre os verdadeiros meios. O leitor, se se detiver aqui o bastante, aprenderá
a ler Descartes como se deve, e ficará precavido para sempre de refutar
temerariamente.
Uma
outra advertência me parece não menos útil, no que respeita à união das paixões
ao corpo. Porque o leitor vai encontrar-se na presença de descrições muito
simples e muito precisas dos movimentos do sangue, do pulmão, do baço, em cada
uma das paixões. E a observação do rubor, da palidez, das lágrimas e do riso
não parecerá suficiente para suportar essas ousadas suposições. A ideia
capital, embora o autor a exprima fortemente mais de uma vez, poderia bem permanecer escondida do leitor, como esteve
de mim durante muito tempo. O Tratado das Paixões só supõe bom senso e
um sumário conhecimento do corpo humano; não é menos difícil de ler, por este
tufado e esta mistura de noções do que nenhuma outra obra que eu saiba oferece
exemplo.
Essa
ideia está talvez melhor separada, mais apreensível em certas cartas, das quais quero dar aqui alguns extractos.
“Há uma tal ligação, escreve Descartes à princesa Elisabeth, entre a nossa alma
e o nosso corpo, que os pensamentos que acompanharam alguns movimentos do corpo, desde o começo da
nossa vida, os acompanham ainda no presente, de modo que se os mesmos
movimentos são excitados de novo no corpo por alguma causa exterior, eles
excitam também na alma os mesmos pensamentos, e reciprocamente se temos os
mesmos pensamentos, eles produzem os mesmo movimentos.” E eis como Descartes
pensa este princípio nos factos, respondendo a uma objecção da princesa a este
ponto de doutrina que a tristeza dá apetite, no que Descartes tinha suposto
primeiro em todos aquilo que ele tinha sentido em si mesmo. “Eu creio bem que a
tristeza tira o apetite a vários; mas porque eu sempre senti em mim que ela o
aumenta, me regulei por isso. E estimo que a diferença que acontece aí vem de
que o primeiro motivo de tristeza, que alguns tiveram no começo da sua vida,
foi que não recebiam alimento bastante, e que o dos outros foi que a que
recebiam os prejudicava; e nestes o movimento dos espíritos que tira o apetite
ficou sempre junto com a paixão da tristeza.” Quem esperaria, nestes pormenores, na
aparência tão impenetráveis, um raciocínio tão preciso e tão forte? O mesmo
vigor de doutrina se encontra numa carta a Chanut.
“Eu
provo, escreve o filósofo, que o ódio tem menos vigor do que o amor, pela
origem de um e de outro; porque se é verdade que os nossos primeiros
sentimentos de amor vieram de que o nosso coração recebia abundância de
alimento que lhe era conveniente, e, pelo contrário, que os nossos primeiros sentimentos de ódio
foram causados por um alimento prejudicial que chegava ao coração, e que agora
os mesmos movimentos acompanham ainda as mesmas paixões… é evidente que, quando
amamos, todo o mais puro sangue das nossas veias corre abundantemente para o
coração… em lugar do que se temos ódio, o amargor do fel e a acrimónia da
bílis, misturando-se com o nosso sangue é causa… que se fique mais fraco, mais
frio, e mais tímido.” Não é como se a sombra de Descartes respondesse a alguma
dificuldade de aparência razoável, que vós levantareis talvez, dizendo que tais descrições ultrapassam o que nós
sabemos, e, por mais forte razão, aquilo que ele sabia? E tudo me parece aqui
esclarecido. Porque nós não sabemos completamente
o que se passa quando o nosso corpo recebe um alimento favorável, e, ao invés, quando é como que invadido por
substâncias que o prejudicam; mas podemos estudar tanto quanto quisermos, e
conheceremos facilmente o principal; essa alegria puramente orgânica, ou essa
tristeza, podem então ser descritas segundo um método positivo, como nós dizemos.
Por outro lado, a ideia de que todo o amor e todo o ódio, de que toda a
tristeza e toda a alegria, quaisquer que
sejam os pensamentos que os acompanham, permanecem sempre ligados aos primeiros
movimentos pelos quais nos fortalecemos
de bom alimento, ou repelimos o mau, ou
gozamos de suficiência, ou sofremos de insuficiente alimento, esta ideia
é invencível, e abre ainda hoje um grande caminho, que certamente não se seguiu
o bastante. Donde Descartes tirou audaciosamente que o amor e a alegria são
bons para a saúde, e o ódio e a tristeza maus, embora em graus diferentes.
Spinoza laborou em todos os sentidos esta rica herança; ele daí fez florir o
mais espantoso sistema. Mas aqui nós encontramos melhor; encontramos a ideia no
estado nascente, pronta para outras combinações ainda; de são e imediato uso
para todos. Tal é esta moral penetrante, que vai às raízes.
Alain
(Tradução de José Ames)
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