terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

AS PAIXÕES DA ALMA






“… Em lugar do que, se mexerdes a pena dum outro modo quase parecido, a única diferença que estará nesse pequeno movimento pode dar-lhes pensamentos totalmente contrários, de paz, de repouso, de doçura…”



(Princípios IV, 197)





O animal faz ver muitas vezes os sinais da alegria, da cólera, ou do medo; algumas vezes mesmo, quando se trata dum animal familiar como um cão, nós cremos que ele exprime pelos seus movimentos seja o reconhecimento, seja a vergonha, seja o arrependimento. Todavia há mais de uma razão para julgar que nós lhe emprestemos aqui pensamentos que ele não tem; e a ideia oposta, que é a de que o animal produz só pelo mecanismo todos estes sinais eloquentes, esclarece muito, pelo contrário, as paixões do homem, se chegarmos a compreender que mesmo sem pensar em tal de todo, nós não produziríamos menos para fora a maior parte dos sinais da piedade, da indignação, da repulsa,  sem nada disso experimentar. Donde se concebem duas coisas; a primeira, que foi aqui acima exposta, é que tudo o que existe de irrazoável nas paixões tem por causa a mecânica do nosso corpo; a segunda, é que só há paixões na alma, quer dizer tanto quanto esses movimentos cegos do corpo mudam as nossas opiniões e as nossas resoluções. Nós sentimos as paixões não como movimentos no nosso corpo, mas como uma perturbação involuntária, e mesmo insuperável, nos nossos pensamentos. Por exemplo, os movimentos corporais que causa o medo fazem-nos julgar que certo objecto é muito temível, fazem-nos duvidar do sucesso, e desviam-nos ao mesmo tempo de querer e de ousar. Não é que o tremor dos nossos membros e as batidas precipitadas do nosso coração não se conheçam então, porque a alma pode perceber também essas coisas; mas elas nunca são percebidas distintamente nem completamente; e este conhecimento não é o principal nas paixões, que se manifestam sobretudo pelos juízos falsos ou incertos, dos quais, no entanto, estamos muito seguros. Descartes escreve à princesa Elisabeth: “Todas as nossas paixões nos representam os bens à procura dos quais nos incitam muito maiores do que eles são na verdade… o que nós devemos cuidadosamente notar  a fim de que, quando estivermos emocionados por qualquer paixão, suspendamos o nosso juízo até que ela tenha sossegado.”

Esta ideia das paixões  e este remédio para as paixões aparecem amplamente no Tratado, de que não farei aqui extractos. Retenho somente que as nossas paixões se levantam, em nós e para nós, como uma aparência nas nossas percepções, nas nossas opiniões, e nos nossos projectos, ou então como um turbilhão de vãos pensamentos, os quais não dominamos, e que não nos podemos impedir de crer verdadeiros, donde acabamos por estimar, desprezar, odiar, recear, sem discernimento nem medida, e sempre  hesitando, como  desfazendo e  refazendo as nossas resoluções, pela sucessão de opiniões opostas das quais somos, à vez, persuadidos. Pois que assim figura nas nossas paixões toda a espécie de objectos, presentes, passados, por vir, e opiniões respeitando ao bem e ao mal que daí podem resultar, nós podemos descrever nas nossas paixões muitas diferenças de que cada um tem a experiência, e assim as enumerar, comparar e classificar, sem considerar logo a que movimentos do corpo elas devem ser relacionadas. Essa descrição, que se pode chamar psicológica, ocupa a maior parte do Tratado, sobretudo na segunda e na terceira parte. Estas definições tão bem nuançadas, e numa tão bela linguagem, teriam ainda todo o valor mesmo quando se quisesse ignorar os movimentos escondidos do corpo que elas traduzem na linguagem comum.

Sobre a ordem das paixões principais, e  sobre a filiação das paixões particulares, eu não me apercebo de nada que não confirme o uso comum das palavras, e que, ao mesmo tempo,  não o esclareça. Só a admiração, a primeira de todas as paixões segundo Descartes, e que, pensa ele, não interessa o coração, poderia ser mal apreendida. E como não se trata nada, para o leitor em que penso, de refutar Descartes, mas antes de voltar à escola sob o mestre mais clarividente que já se viu, eu quero propor aqui uma ou duas observações que me foram muito úteis. Primeiramente, é preciso compreender que a palavra admiração é tomada no sentido antigo, que a aproxima do espanto; mas trata-se aqui do espanto intelectual e não do choque  da surpresa. Descartes conhece os efeitos desse choque, que são vivos, e que tornam primeiro quase invencíveis as menores paixões; assim ele não diria que uma tal surpresa não interessa o coração. A admiração só interessa no corpo  o cérebro; ela é paixão no sentido em que os movimentos dos espíritos que a acompanham são estranhos aos vincos do hábito, e podia-se mesmo dizer que é por esta razão que não correm imediatamente nos membros, e que assim o corpo fica imóvel nesta paixão. E sem dúvida seria preciso um Descartes para perceber o que há de paixão no primeiro toque da inteligência, e antes mesmo que se suponha que o objecto novo nos pode prejudicar ou servir.  É um traço de génio ter separado do medo e até da esperança a primeira curiosidade, sem a cortar no entanto do corpo. E esta outra observação,  que é mais bela ainda, de ter percebido que a admiração é a primeira de todas as paixões, e se encontra na origem de todas. Há uma espécie de ávida contemplação, sem mescla de qualquer sentimento, e também sem espírito ou quase, que é a marca própria do animal pensante: é  que ele abandona então as partes virgens do seu cérebro a movimentos novos, que se fazem com uma vivacidade incomparável, mas aliás sem qualquer prazer real e sem a ideia de qualquer fim e de qualquer uso. Tal é, segundo Descartes, o que sentem primeiro os viajantes, e que pode ser sem nenhuma consequência, a não ser que, pelo costume, os efeitos da admiração deixam cedo de se produzirem, e que é necessário procurar algum outro objecto. No que se percebe bem que a admiração é uma paixão da alma; e Descartes distingue-a muito escrupulosamente dessa acção do juízo, que pode segui-la, mas que está bem longe  de a seguir sempre.  E parece-me que a doutrina comum da atenção é corrigida aqui de duas maneiras; porque não devemos confundir a atenção com essa surpresa animal que nos mantém arquejantes, nem, tampouco, com essa curiosidade vulgar  que sorve todo o objecto como uma bebida, e não faz dele jamais nem ideia nem acção. Eis um traço espantoso do homem, e que explica talvez todo o aborrecimento. Notou-se que os selvagens ficam com os olhos muito abertos diante das nossas máquinas, e depressa deixam de pensar nelas; isso, se se reflectisse nisso, daria grandes vistas sobre a dificuldade de instruir, e sobre os verdadeiros meios. O leitor, se se detiver aqui o bastante, aprenderá a ler Descartes como se deve, e ficará precavido para sempre de refutar temerariamente.

Uma outra advertência me parece não menos útil, no que respeita à união das paixões ao corpo. Porque o leitor vai encontrar-se na presença de descrições muito simples e muito precisas dos movimentos do sangue, do pulmão, do baço, em cada uma das paixões. E a observação do rubor, da palidez, das lágrimas e do riso não parecerá suficiente para suportar essas ousadas suposições. A ideia capital, embora o autor a exprima fortemente mais de uma vez, poderia  bem permanecer escondida do leitor, como esteve de mim durante muito tempo. O Tratado das Paixões só supõe bom senso e um sumário conhecimento do corpo humano; não é menos difícil de ler, por este tufado e esta mistura de noções do que nenhuma outra obra que eu saiba oferece exemplo.

Essa ideia está talvez melhor separada, mais apreensível em certas cartas,  das quais quero dar aqui alguns extractos. “Há uma tal ligação, escreve Descartes à princesa Elisabeth, entre a nossa alma e o nosso corpo, que os pensamentos que acompanharam  alguns movimentos do corpo, desde o começo da nossa vida, os acompanham ainda no presente, de modo que se os mesmos movimentos são excitados de novo no corpo por alguma causa exterior, eles excitam também na alma os mesmos pensamentos, e reciprocamente se temos os mesmos pensamentos, eles produzem os mesmo movimentos.” E eis como Descartes pensa este princípio nos factos, respondendo a uma objecção da princesa a este ponto de doutrina que a tristeza dá apetite, no que Descartes tinha suposto primeiro em todos aquilo que ele tinha sentido em si mesmo. “Eu creio bem que a tristeza tira o apetite a vários; mas porque eu sempre senti em mim que ela o aumenta, me regulei por isso. E estimo que a diferença que acontece aí vem de que o primeiro motivo de tristeza, que alguns tiveram no começo da sua vida, foi que não recebiam alimento bastante, e que o dos outros foi que a que recebiam os prejudicava; e nestes o movimento dos espíritos que tira o apetite ficou sempre junto com a paixão da tristeza.”  Quem esperaria, nestes pormenores, na aparência tão impenetráveis, um raciocínio tão preciso e tão forte? O mesmo vigor de doutrina se encontra numa carta a Chanut.

Eu provo, escreve o filósofo, que o ódio tem menos vigor do que o amor, pela origem de um e de outro; porque se é verdade que os nossos primeiros sentimentos de amor vieram de que o nosso coração recebia abundância de alimento que lhe era conveniente, e, pelo contrário,  que os nossos primeiros sentimentos de ódio foram causados por um alimento prejudicial que chegava ao coração, e que agora os mesmos movimentos acompanham ainda as mesmas paixões… é evidente que, quando amamos, todo o mais puro sangue das nossas veias corre abundantemente para o coração… em lugar do que se temos ódio, o amargor do fel e a acrimónia da bílis, misturando-se com o nosso sangue é causa… que se fique mais fraco, mais frio, e mais tímido.” Não é como se a sombra de Descartes respondesse a alguma dificuldade de aparência razoável, que vós levantareis talvez, dizendo que  tais descrições ultrapassam o que nós sabemos, e, por mais forte razão, aquilo que ele sabia? E tudo me parece aqui esclarecido. Porque nós não sabemos  completamente o que se passa quando o nosso corpo recebe um alimento favorável,  e, ao invés, quando é como que invadido por substâncias que o prejudicam; mas podemos estudar tanto quanto quisermos, e conheceremos facilmente o principal; essa alegria puramente orgânica, ou essa tristeza, podem então ser descritas segundo um método positivo, como nós dizemos. Por outro lado, a ideia de que todo o amor e todo o ódio, de que toda a tristeza  e toda a alegria, quaisquer que sejam os pensamentos que os acompanham, permanecem sempre ligados aos primeiros movimentos pelos quais  nos fortalecemos de bom alimento, ou repelimos o mau, ou  gozamos de suficiência, ou sofremos de insuficiente alimento, esta ideia é invencível, e abre ainda hoje um grande caminho, que certamente não se seguiu o bastante. Donde Descartes tirou audaciosamente que o amor e a alegria são bons para a saúde, e o ódio e a tristeza maus, embora em graus diferentes. Spinoza laborou em todos os sentidos esta rica herança; ele daí fez florir o mais espantoso sistema. Mas aqui nós encontramos melhor; encontramos a ideia no estado nascente, pronta para outras combinações ainda; de são e imediato uso para todos. Tal é esta moral penetrante, que vai às raízes.



Alain
(Tradução de José Ames)

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