quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O MÉTODO






“Eu já protestei diversas vezes, ó carne, que não queria ter nada a ver com aqueles que só se querem servir da imaginação, e nada do entendimento.”



(Respostas às Quintas Objecções)



 
Abordo, por este caminho, o Método como eu queria. Porque não é difícil sentir a força de espírito mais rara, e mesmo esmagadora, nas célebres páginas do Discurso; mas é comum também que se perca justamente esse sentimento diante das quatro famosas regras, onde encontramos demasiado depressa a carta dos nossos fracos pensamentos. Não creio que tenha havido um único comentador que não se tenha enganado mais de uma vez aqui. Basta, e cada um tem disso a experiência, deixar-se descer, achando enfim um Descartes para seu próprio uso. Mas quando, pelo contrário, se despiu o homem de todo este mundo, e quando se chega a percebê-lo, num raio, com a força de Deus somente, o Método mostra-se como o poema da fé. “Supondo mesmo ordem entre os objectos que não se precedem naturalmente uns aos outros.” É preciso chegar a isto que este pensamento tão conhecido surpreende e até escandaliza. Porque não é nada submeter-se à experiência, nem ao mundo tal qual Deus o fez. Este método é portanto heróico.

Contra a fé, só existe a fé. Certamente, pode-se muito bem dizer que nos enganamos muitas vezes por crer demasiado; mas, num outro sentido, pode-se dizer, e é dizer melhor, que aquele que não ousa duvidar não sabe crer o bastante. Quando a dúvida já não é fraqueza, mas força, o espírito  regressa, seguro de pensar como é preciso, se apenas seguir a sua própria lei. Descartes sempre acreditou que este grande universo significa um espírito infinitamente mais clarividente e mais poderoso do que o nosso; tal é a fé das criancinhas; mas ele nunca acreditou que essas tocantes aparições pudessem dar a lei aos nossos pensamentos. Pondo à prova, pois, a sua força nas primeiras invenções, ele devia reencontrar Deus por aí, o mesmo Deus, o Deus das santas mulheres. Era conhecer o legislador da natureza, mas no espírito,  não na natureza; não só como entendimento, nem mesmo principalmente; o próprio de Descartes, é preciso pensar sempre nisso, é ter reconhecido a perfeição do espírito na vontade que decide. Que Deus não seja enganador, isso não quer dizer apenas que o que aparece neste universo seja igual ao verdadeiro; quer dizer também que somos nós que nos enganamos, por falta de exercer intrepidamente o nosso verdadeiro poder. A harmonia entre a natureza e o espírito não anuncia de modo nenhum que a existência será juiz da essência, e tal é o sentido novo dessa prova ontológica, tantas vezes interrogada e sacudida por espíritos demasiado comprometidos na imaginação, que o juízo nela se orienta sempre da perfeição para a existência em vez de voltar da existência para a perfeição. Quer dizer que é bem o verdadeiro que aparece, mas também que a aparência não é no entanto o verdadeiro. É o pensamento livre que é verdadeiro. Tal é o sentido da ordem.

Logo que se trate do método, é a ordem que se mostra; mas se se crê que a ideia é fácil, perdê-la-emos. Porque até um cão, ou uma galinha, reconhece uma ordem de coisas, e espera, ou mesmo  busca, o seguinte depois do precedente, que é só o companheiro ordinário, como diz Hume. E de que nós contemos assim, pelo hábito, produzir palavras numa certa ordem, não se deve dizer que esta imagem, escrita e como que gravada no nosso corpo, é a própria ideia. Bem melhor, a ordem contemplada pelos sentidos, e tão facilmente reconhecida, seja nas grandezas crescentes, seja nos sons, seja nas cores, dá apenas ainda uma imagem da ordem. Não se pode esgotar a ideia de ordem; talvez que ela defina toda a lógica real. Talvez nunca pensemos senão por séries, quer dizer ordenando os termos da nossa pesquisa, quaisquer que possam ser, de modo que a mesma relação se mostre sempre entre o precedente e o seguinte. A ordem das ciências tal como Comte a concebeu, Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia, é um exemplo irrepreensível de série, ao que parece. Somente é raro que se encontrem séries suficientes, pode-se dizer plenas, fora das pesquisas matemáticas. Mas basta aqui seguir Descartes e tentar explorar como ele faz este caminho novo. Descartes escreveu para si mesmo, nas Regras para a direcção do espírito, que a descoberta duma média proporcional, tão cómoda para o cálculo ordinário, não é no entanto satisfatória para o espírito, se não se construir a série plena de onde os números propostos são tomados. É que, numa série por produto,  cada termo é a média proporcional entre o precedente e o seguinte; e esta relação é a própria ideia da série. Este exemplo, se vos derdes a séries simples, dois, quatro, oito, dezasseis, etc., é talvez o melhor se se quiser compreender as quatro famosas regras. Porque surge primeiro que esta série não é a primeira na ordem das séries, e que a sequência dos números é a primeira e a mais simples de todas, de onde se tomam os termos da outra, o que é um exemplo da segunda regra. A terceira define a ordem, e a quarta remete o espírito para a importância duma ordem plena, quer dizer em que não falta nenhum termo. Quanto à primeira regra, ela é, ao que creio, a mais obscura de todas; porque é comum que se tome por evidente o que não é; assim a regra é formal, dir-se-ia quase verbal, enquanto não se pensar que as três outras regras lhe fornecem um objecto. É dizer que não basta esperar a evidência, nem mesmo procurá-la como se procura na natureza algum objecto raro e precioso, mas que é preciso fazê-la toda, não segundo a lei do objecto, mas segundo a lei do espírito. Regra que prescreve a dúvida e a recusa, não uma vez, mas sempre. Na verdade o que é analisar, senão escolher e adiar? E o que é a ordem cartesiana, senão uma recusa  a este mundo dado todo e indivisível, uma recusa a esta pesada prova de presença e de facto que nos persuade sempre de mais? Formar ideias, não é pintar o mundo em si mesmo, segundo o que primeiro toca e solicita; mas é, pelo contrário, fixar a sua atenção sobre o que não interessaria nada, o simples, a série, e a lei destas coisas que não existem. E a quarta regra, ou regra da enumeração, deve ser considerada atentamente sob este aspecto; porque esta revisão geral  é o que dá um sentido a dois ou três termos que se propõem particularmente, e pelo socorro da imaginação ou da percepção, o que é igual aqui. O entendimento apreende duma certa maneira toda a série, não somente pelo indefinido, que é de experiência, mas por uma reflexão sobre a infinidade do espírito que é em acto e define toda a potência. Não se pode, como eu dizia, esgotar esta ideia de ordem. De qualquer modo, ela significa principalmente duas coisas de importância. A primeira é que o inferior suporta o superior, o que é como uma lição de modéstia, que se estende a todas as ordens. A outra é uma lição de poder, pelo contrário, e faz sentir, pela reflexão, que o espírito encerra toda a grandeza, e que a natureza exterior pelo contrário, exterior no pleno sentido, só nos surpreende primeiro por uma irremediável insuficiência, irremediável, mas que o espírito, por oposição a si, julga essencial. A partir daí, a complicação já não surpreende, e, ao mesmo tempo que se adia, já se a domina. O que é enfim de notar, é que a ideia de ordem está em toda a parte em Descartes, cujo pensamento mais familiar é que antes de conhecer uma coisa é preciso conhecer primeiro várias outras; e é sempre recusar primeiro esta natureza, que nos lança tudo duma vez. Entre Bacon, curioso de tudo, de magia como de física, e a paciência invencível de Descartes, há o abismo das Meditações. Quem não percebe, no próprio acento do Discurso do Método, esta força de recusa que, tendo traçado a imensa série, Matemáticas, Física, Paixões da alma, esboça, e mais do que esboça a série célebre de Comte que eu citava, reserva todas as questões de política, o que é remetê-las para o seu lugar, e delas se libertar? Exemplo deste movimento de espírito que sempre supera; e é assim que o entendimento se limita. A prova pois das ideias claras, tantas vezes travestida, é que a liberdade nela se ensaia, seja para as fazer, seja para as desfazer. Este duplo trabalho é o que faz a ideia; ela só é por aí. Tomada como suficiente, seria imagem imediatamente. Por exemplo, o movimento, que é ou não é conforme a relação; ou então as hipóteses, que só se sustentam pelo juízo, e que ele poderia igualmente desfazer. Esta sabedoria, tão superior às nossas vistas mais audaciosas, explode nos Princípios; eu quis dar disso aqui alguma ideia pelos efeitos; mas é bom regressar às matemáticas, seguindo o exemplo de modéstia que nos dá Descartes nas suas Regras para a direcção do espírito, se se quiser primeiro compreender que a ideia não se assemelha ao objecto. Não existem rectas na natureza; se nos mantivermos firmes quanto a isso, sem nenhuma complacência, nasce uma viva luz nesse outro mundo. Evidência acordada e mesmo decidida; fé e dúvida juntas. Esta liberdade de espírito atordoa. Descartes certamente elevou-se a esta ideia, que nos ultrapassa de longe, que a escolha duma imagem e como que duma vestimenta dos nossos pensamentos, por exemplo uma recta traçada, não altera mais a ideia do que a escolha dum sistema de numeração  muda os números. Como se vê pela teoria do íman, onde é claro que as partes caneladas, ou qualquer outra suposição, servem somente para fazer entender, àqueles que prestam atenção, alguma lei absoluta que é a própria causa. A ideia da extensão, representada na imaginação por uma espécie de paisagem mais ou menos variegada, modelada, escavada, é ainda própria a fazer compreender que vai longe da imagem à ideia. Quando se diz que, segundo Descartes, todas as ideias claras são verdadeiras, não se deve esperar por isso ter a vida facilitada. Só há por norma um curto momento em que se  descobrem estas coisas, e é muito fácil esquecê-las. Quanto aos raros homens que as adivinham,  mais depressa  as deixam no espírito, sem o fazer ressoar contra o mundo antagonista; ainda mais depressa se subordinam as ideias a este mecanismo estranho, em lugar de aperceber subitamente nas aparências a confirmação da liberdade íntima, o que é descobrir o segredo de Deus. Nós sabemos pouca coisa dessa iluminação de Descartes na sua noite célebre de 1 de Novembro de 1619. É claro que as ideias estavam aí, e a ordem; que o espírito, mestre da ordem, apareceu aí no seu lugar, e que a deslumbrante imaginação confirmou os dois. Sonho e pensamento juntos, acordo de entendimento e de imaginação, significação, por uma beleza inexprimível, de que Deus não nos engana. Nós, que estamos sujeitos a tomar a imaginação pelo pensamento, não compreendemos facilmente como a verdadeira fé confirmava a ingénua  crença, e como a revelação, pela primeira vez porventura, se fez toda. Ainda menos podemos compreender que uma peregrinação a Loreto seja, entre os movimentos de sociedade, um daqueles que melhor se acordam com a liberdade de espírito. Não que ele se aproximasse desse sonho que é a recompensa do sábio; mas pelo menos podia comemorá-lo. Digamos somente, sobre esta religião, ao mesmo tempo secreta e pública, livre e submetida, jansenismo enfim florescente, que se se chama graça a um movimento espontâneo do corpo humano, que se acorda com o que exige o entendimento, não se altera o sentido da palavra, mas pelo contrário se  confirma.


Alain
(Tradução de José Ames)

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