“Só há em nós uma alma, e essa alma não tem em si qualquer diversidade de partes; a mesma que é sensitiva é razoável, e todos os seus apetites são vontades.”
(Paixões 47)
Nem
todo o homem está ainda nesta sábia administração de forças da vida. A lei aparece, mas o governo não se
mostra. Nesta alma, que é só ajustamento, unidade do corpo, reflexo, nada
pensa, porque nada duvida; e porque nada pensa, nada também sofre. A ponta
extrema da dúvida e a mais alta recusa, o Descartes enfim das Meditações,
é o comum pensamento. Não há nenhum género de consciência que não seja toda a
consciência. Não há sofrimento surdo. Mecanismo de corpo ou mecanismo de alma é
sempre como é; só há desordem recusada. A mais pequena paixão quer portanto uma
grande alma, não serva. Nós concebemos um louco, quer dizer um homem que se
toma absolutamente tal como é; mas ele não pode sabê-lo ele próprio; ele está
todo no facto consumado. Ora, essa recusa de ser consumado, de ser facto,
Descartes nos adverte que a chamaria também magnanimidade, virtude, diz ele,
pouco conhecida na escola; mas a palavra
generosidade parece-lhe ainda melhor. Não é aqui uma fria coragem, e que
se retira, como parece algumas vezes a virtude estóica, é uma positiva riqueza
e uma força de ousar. Chama-se comummente
livre arbítrio; mas, uma vez que é preciso avançar com as palavras mais
falantes, eu nomeá-la-ia fé. Isso para desviar a atenção do leitor dessa
subtilezas de escola, invencíveis, mas também fora do lugar, referentes ao
livre arbítrio; contra as quais proponho
somente uma observação não menos subtil, que Renouvier julgava suficiente, é
que, se se pudesse provar o livre arbítrio, ele seria então necessariamente, e
faria parte das inevitáveis consequências. Não há nada de mais absurdo; mas
também não há armadilha em que tantos pensadores tenham sido melhor apanhados.
Esta noção do livre arbítrio não está a este nível; é duma outra ordem; é
preciso tomá-la como ela é. A palavra generosidade é a melhor aqui, porque
melhor nos aguilhoa, porque nos aproxima de nós, e mesmo porque nos faz descer
até à nossa cólera mais baixa, onde com efeito o querer se encontra, desde que ela
seja conhecida. O homem reconhece então que, a partir do momento em que é para
si mesmo, não é homem por metade. Seguramente, é generoso pensar. Mas generoso
exprime ainda outra coisa; é uma firme resolução que repousa apenas em si. A
quem não ousa pensar, a quem não ousa crer que se pode querer, como provar que
é livre? É uma razão para se fiar em si. Esta posição é corneliana. Polieuto,
pelo mesmo movimento de Descartes, eleva-se até Deus pela resolução de ser
completamente homem. Donde se vê que um estilo e uma época são alguma coisa, e
que, preliminarmente à ordem, há momentos de alta solidão.
Tomemos
o herói como guia. O que é o herói, se não é o homem que escolhe acreditar em
si? Mas é preciso tomar partido e manter o partido; porque só porque delibero,
e porque examino se posso, a necessidade me apanha. Segundo a natureza das
coisas, tudo se faz pelas causas, e essa experiência não cessa nunca de nos
provar que nós não mudamos nada, que não fazemos nada, que não podemos nada.
Uma grande alma não tem que vencer senão essas provas; mas tem de vencê-las;
porque é vil viver de acordo com tais provas; e até, olhando bem, é apenas isso
que é vil. Não é vil ser-se vencido algumas vezes; mas é vil decretar, se se
pode assim dizer, que o seremos sempre. O que o herói se ordena a si mesmo, é
portanto crer e ousar. A virtude é em primeiro lugar um pensamento, e todo o
herói é filósofo. Mas sem dúvida apenas Descartes soube bem o segredo do herói,
a saber que o pensamento supõe também generosidade. Conhece-se essa doutrina
das Meditações, segundo a qual é a vontade que julga, e que é a vontade
que duvida. Não adianta resumir Descartes; o que é útil, é exprimir de outra
maneira estas mesmas ideias, ou de ir até elas por outros caminhos. Considerai
apenas que um pensamento que resultasse duma mecânica de entendimento, da mesma
maneira que a máquina de contar faz uma soma, já não seria verdadeira nem
falsa; seria um produto da natureza. Descartes foi o geómetra que compreendeu
que a geometria não é um produto da natureza, e que uma linha recta só é por
vontade, e sustentada como que por um juramento. E do mesmo modo a sua dúvida
não é uma dúvida vergonhosa nem de fraqueza; é uma dúvida generosa, e de força;
e essa dúvida é o que esclarece toda a prova do mundo, e em primeiro lugar a
prova do geómetra. É preciso confessar que Descartes não se dignou explicar-se
muito sobre isso. Por isso é no Tratado das Paixões que esta orgulhosa
posição é inteiramente esclarecida. Mas é preciso ler de perto, o orgulho, a
baixeza, e a humildade virtuosa; aperceber-se-á depois da generosidade, a
caridade, que corre da mesma fonte. Pascal está aí inteiro; não falta nada das
três ordens, tão justamente famosas. Mas este género de espírito, que é o
espírito, aparece-me em Descartes na verdadeira dimensão, por isto que ele
adere às três ordens em conjunto, e fortemente, preocupado em cumprir a sua
condição de homem, corpo, entendimento, vontade.
Perguntou-se
se Descartes não seria iniciado na confraria mística dos Rosa-Cruz. Pode ser
que ele tenha inquirido sobre esses segredos; é certo que os dominou, por esta vista de geómetra, que
reconhecia as três ordens juntas na própria geometria. Assim havia só um
mistério no mundo, que era a união da alma e do corpo. Deixo ao leitor seguir
esta ideia que a alma, não recebendo
qualquer distinção de partes, só pode ser unida indivisivelmente a todo o
corpo, o que afasta todas as ligações do género mecânico e leva a compreender
enfim o que disse Descartes mais do que uma vez, que “é usando apenas a vida e
as conversas normais que se aprende a conceber a união da alma e do corpo”. Mas
quando se está assim neste ponto de mística razoável, não se pode recusar que
as mais altas diligências do espírito estejam incorporadas, e possam
directamente alterar esta física do corpo, tão estreitamente ligada aos
movimentos do universo mecânico. Que haja assim comunicação da generosidade com
a alegria, e da alegria com a saúde, é o que Descartes exprime fortemente à
princesa Elisabeth, como já se viu. Estas preciosas cartas merecem todas serem
lidas e meditadas. Quero dar ainda aqui alguns extractos, que servirão para
fazer entender que o milagre do livre arbítrio não se depara com os seus
limites, desde que evitemos querer representá-lo como uma engrenagem acabada e
que agisse mecanicamente. Eis primeiro como que um esboço do herói. “Parece-me
que a diferença que existe entre as grandes almas e as que são baixas e
vulgares consiste principalmente em que
as almas vulgares se deixam levar pelas
suas paixões, e só são felizes ou infelizes conforme as coisas que lhes sucedem
são agradáveis ou desagradáveis, enquanto que as outras têm raciocínios tão
fortes e tão poderosos que, se bem que também tenham paixões, e até
frequentemente mais violentas que as do comum, a sua razão permanece apesar
disso senhora…”
Mas
eis uma aplicação ousada da regra, e que prolonga até aos segredos do corpo a
acção do livre arbítrio. “A causa mais ordinária da febre lenta é a tristeza; e
a obstinação da fortuna em perseguir a vossa casa dá-vos continuamente motivos
de contrariedade, que são tão públicos e tão retumbantes, que não é necessário
usar de muitas conjecturas, nem ser muito versado nos assuntos, para julgar que
é nisso que consiste a principal causa da vossa indisposição; e é de temer que
vós não possais ser completamente libertada, a não ser que, pela força da vossa
virtude, torneis a vossa alma contente, apesar das desgraças da fortuna.”
Estes
textos são justamente célebres. Eis aqui dois outros que fazem ver, o que
esclarecerá completamente a posição do homem livre, que a alegria assim
conquistada pelo livre juízo importa também
às acções. “Como a saúde do corpo e a presença dos objectos agradáveis
ajudam muito o espírito a expulsar de si todas as paixões que participam da
tristeza, e dar entrada àquelas que participam da alegria; assim reciprocamente,
quando o espírito está cheio de alegria, isso contribui muito para que o corpo
se encontre melhor, e que os objectos presentes pareçam mais agradáveis; e
mesmo também, ouso crer que a alegria interior tem alguma força secreta para
tornarmos a fortuna mais favorável.” Esta última fórmula marca maravilhosamente
o que pode a fé nos negócios deste
mundo. Eis a mesma ideia expressa de outro modo, e talvez ainda melhor. “Vossa
Alteza me permitirá… desejar-lhe principalmente satisfação de espírito e
alegria, como sendo não somente o fruto que se
espera de todos os outros bens, mas também muitas vezes um meio que
aumenta as graças que se têm para os adquirir.”
O
comentário aqui não teria fim. Todos os equívocos que dizem respeito ao
optimismo vêm de não se o tomar como voluntário, e se querer encontrar as suas
provas, como se procura, não menos inutilmente, provas do livre arbítrio. O que
é sobretudo de notar, é Descartes em acção, e envolvido no mundo, em tudo nosso
semelhante e nosso próximo amigo. De resto, aquele que chamou generosidade ao
sentimento do livre arbítrio, e que o coloca no número das paixões, diz
bastante, só por isso, para fazer entender que o querer está incorporado e
participa da criação continuada. Em resumo, as três ordens estão juntas, e fazem
um único homem, indivisível. Mesmo os erros de imaginação são pensamentos, sem
o que não seriam para ninguém; um espectro, ou apenas o sol a duzentos passos,
é o “Eu penso” que o sustenta; e o “Eu penso” é sempre, nos nossos menores
pensamentos, aquilo que é nas célebres Meditações. O centro, o forte e o
reduto da minha própria existência está neste poder de duvidar, que faz as
provas. Por este andamento ousado, e que ninguém recusa, o sobrenatural é posto no seu lugar,
não abaixo do homem, nem fora dele.
A
religião de Descartes é simples e ingénua no seu exterior; no seu interior, e
pelo sentido novo que ele encontra em velhas provas, ela é quase impenetrável.
É a partir do rude e amigável Tratado que se pode compreendê-la; pois é
porque o homem pode e deve salvar-se a si mesmo, é somente por aí que Deus aparece. Segundo o conjunto do Tratado das
Paixões, será evidente para o leitor que Descartes nunca põe em dúvida que
o livre arbítrio em cada um seja eficaz; mas é preciso lê-lo de muito perto se
se quiser compreender que a dúvida nisso não é razoável pois que na própria
acção ela decide contra. Duvidar metafisicamente da sua própria vontade, coisa
tão comum, é exactamente faltar de vontade. E seguindo esta ideia, e voltando a
Descartes mais de uma vez, apreender-se-á finalmente a doutrina prática em toda
a sua amplidão, que encerra que uma tal
dúvida não é permitida. Aqui nós tocamos
quase essa mística positiva segundo a qual o primeiro objecto da fé é a própria
fé. Aqui nós vemos em obra esta religião secreta.
Alain
(Tradução de José Ames)
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