sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O ANIMAL






“Porque em nós só existe uma alma, e esta alma não tem em si qualquer diversidade de partes; a mesma que é sensitiva e razoável, e todos os seus apetites são vontades.”
(Tratado das Paixões)



Aqui ressoa a força do espírito, e essa força de recusa que lhe é própria. Porque crer que o nosso cão pensa, sente, e quer, é o nosso lote, como é o nosso lote crer que o peso desta bola de chumbo está nela. E mesmo é preciso dizer que a aparência de censura ou de súplica nos olhos dum animal familiar está entre as mais tocantes, e realmente invencível de vencer completamente. Por isso se pode apostar que o leitor rejeitará com uma espécie de cólera o célebre paradoxo do animal máquina, tal como é apresentado no Discurso. É que ele aqui só está fundado sobre razões exteriores, e que parecerão sempre fracas, se não se presta atenção a que  as difíceis meditações do filósofo respeitando à coisa pensante e à coisa extensa conduziam directamente aí e aí conduzirão sempre. Mas é uma ocasião também de estimar pelo seu justo preço o severo entendimento, porque é a ideia de humanidade que aqui se mostra, e que se separa. Uma caridade, se se ousa dizer, que vai até ao animal  será sempre fraca, por isto que a simpatia assim estendida, e ainda fortalecida pelo juízo do espírito, não dispensa o homem de exercer o seu poder de defesa e de conquista, o que, por um raciocínio familiar a todos, porá em questão a própria humanidade. Em lugar do que, seguindo o heróico juízo cartesiano, é pela nossa força, e não pela nossa fraqueza, que respeitaremos o homem. Eu peço então que usando de franqueza consigo mesmo, o leitor remeta aqui a crença para o seu nível, e que não pense aqui segundo os acasos, mas segundo as verdadeiros noções. Que reponha pois no espírito a própria oposição do espírito e do corpo. O espírito é indivisível, e mostra-se facilmente superior a toda a imensidade das coisas, pois a ultrapassa logo e sem dificuldade; o corpo é pelo contrário absolutamente dividido, mas antes essencialmente divisão, e sem nenhum pensamento, nem nada que se pareça. Descartes tinha pois que recusar um qualquer sentido a essa expressão comum de que uma alma está num corpo. Como seria de outra maneira?  Como é que o que pensa todos os corpos e as suas diferenças, e as suas distâncias, e as suas relações, estaria encerrado nos limites dum corpo? Mas, mais rigorosamente ainda,  digamos que num corpo, e pela noção mesma de corpo, tudo é fora e exterior, ao ponto da própria natureza dum corpo nunca lhe ser interior; tal é o princípio do mecanismo, De modo que, mesmo que Descartes quisesse abrir uma excepção para os corpos vivos, conforme a sua estrutura e as suas surpreendentes acções, não o poderia. Esta ideia, severamente mantida, assegurou ao filósofo mais de dois séculos de avanço nessas difíceis pesquisas sobre a natureza humana, em que as nossas próprias paixões nos tapam a vista.

Era preciso pois considerar o mecanismo do corpo vivo como o íman, onde é preciso notar que uma criança suporia muito facilmente simpatias e antipatias, o que seria reconhecer, em qualquer pretensa força vital,  ou alma vegetativa, ainda uma dessas qualidades ocultas, definidas como inerentes ao corpo, e definidas também segundo o que se trata de explicar, como é a virtude dormitiva do ópio, mas como o é também o calor num corpo quente, o peso na massa, e a própria massa, conforme o juízo dos ignorantes. E é preciso convir que o instinto, nos nossos dias, é ainda para muitos homens uma propriedade inerente aos corpos vivos; mas é talvez porque eles não superaram primeiro realmente as dificuldades da física, imaginando ainda o calor como um ser migrador que passa dum corpo a outro. Descartes não se podia enganar aí, sempre atento ao que ele pensava em cada um dos seus pensamentos. Melhor talvez do que qualquer outro, e nos séculos de homens por vir, ele separou o que é sentimento na cor, e destacou-o da coisa, contra o que o sentimento nos aconselha, e mesmo nos impõe, dizendo que este sol, centro dum turbilhão, donde são dirigidas todas as pressões que fazem luz aos nossos olhos, é apenas situação e regime de movimento, sem esse brilho e esse calor que todos lhe reenviam no seu hino de gratidão. Era reconduzir a nós prazer e sofrimento, e enfim toda a alma à nossa alma. Semelhantemente, não querer procurar como é que o íman atrai o íman ou o repele, mas buscar somente qual é o invisível turbilhão cujo choque e remoinho instigam os ímanes dum lado e do outro, não é vencer uma aparência bem poderosa, e aqui negar energicamente uma espécie de alma mineral? A alma dos animais não é de outra espécie. Pensar o amor e o desejo nesses movimentos dos animais, como em não importa que movimento,  é não pensar nada. Homero dizia que a flecha deseja a ferida; quem venceu completamente esta metáfora, venceu todas as outras, e toda a mitologia. Desde que os corpos vivos são corpos, caem sob a noção de corpo, recebem apenas a relação exterior, ou, se se quiser, mecânica, e tudo está dito. Fica por explicar a nutrição e o movimento dos vivos pela combinação de partes mais ou menos finas, mais ou menos móveis, segundo essa ideia directriz que a estrutura, o movimento, a situação, deverão dar conta de tudo. Descartes levou esta fisiologia positiva bem mais longe do que se disse. Depois de Harvey, e num tempo em que esta descoberta era entregue aos disputadores, ele reencontrou a circulação do sangue e descreveu as válvulas do coração. Se se enganou no mecanismo dos batimentos do coração, mais uma vez se enganou como é preciso, querendo explicar a emergência brusca do sangue por uma dilatação devida ao calor; era sempre submeter a biologia à física. Todavia, porque não reconheceu um músculo no coração, e porque se representou sumariamente a contracção muscular, é por aí sobretudo que os seus pontos de vista de fisiologia estão ultrapassados. Quanto ao sistema nervoso, pelo contrário,  em que há mais a conceber do que a observar, ele disse o principal, explicando muito bem, pela rápida e invisível circulação de corpúsculos nos nervos, esse encaminhamento do choque desde os sentidos até ao cérebro, e, na volta, essa irradiação para os músculos, segundo caminhos que dependem da situação e do costume ao mesmo tempo, o que dá conta das reacções. Tal é, sumariamente, o animal máquina.

O homem-máquina é disso uma consequência, e toda a teoria das paixões, tanto quanto ela depende do corpo humano, é conduzida segundo esta suposição. Na verdade, o medo, a cólera, os movimentos do amor, o riso, as lágrimas, fazem sentir a cada um de nós, da maneira menos equívoca, que os nossos pensamentos estão ligados, de facto, a movimentos que não dependem mais de nós do que os movimentos da vida. Que eu trema, que fuja, que me irrite, que bata, isso não requer mais motivos, pensamentos,  uma vontade, do que se a pupila do olho se retrai diante duma luz viva. Sabe-se por de mais que o governo de si não vai sem grandes dificuldades, muitas vezes até insuperáveis; e isso explica-se  bastante bem pela íntima dependência que nos liga a esse animal  máquina de forma humana, o qual reage primeiro como  vive, e sem a nossa permissão. Mas também não se deve supor nenhuma malícia, nenhum género de alma inferior, nenhum pensamento separado e como que perdido, enfim, nada do que o espírito preguiçoso reúne sob o nome de inconsciente. Se se reflecte sobre esta doutrina, que se arrisca a ser sempre popular, encontrar-se-á um erro amado. O animal foi por muito tempo adorado, por esse pensamento que se lhe supunha; a amizade que não se pode sempre impedir de mostrar para com os animais familiares é também uma espécie de culto. Uma tendência bem mais forte leva-nos a supor pensamentos no nosso semelhante conforme as suas acções; todavia, o mais rápido exame faz compreender que é preciso refreá-la, e que a justiça interdita supor nos nossos semelhantes outros pensamentos que não os que eles confessam, ou então outros que não sejam generosos e confessáveis. Mas nós não deixamos de supor em nós mesmos pensamentos segundo os nossos movimentos; assim compomo-nos um carácter a partir do humor, e um humor a partir de acções e reacções que nos são estranhas, e que resultam apenas das circunstâncias. Por exemplo, a partir dum brusco movimento diante de um homem que vejo pela primeira vez, gosto de pensar que o seu carácter e o meu se revelam como serão sempre, o que significa supor pensamentos dormentes que se afrontam sem a permissão do juízo. E, uma vez que é bastante claro que, desde que se supõem tais pensamentos, os temos realmente, este exemplo e tantos outros fazem compreender que é preciso escolher, e que se trata aqui bem menos duma busca da verdade do que duma polícia do espírito. Descartes escolheu portanto não ser, no seu humor,  senão coisa mecânica; e por este decreto as nossas paixões são remetidas para a ordem das coisas. São sempre movimentos, manejáveis mais ou menos conforme se conhecem, como são os movimentos da natureza à nossa volta. E é aqui o lugar de notar que a filosofia de Descartes está completamente purgada de fatalidade. Compreendê-lo-emos por esta observação que a fatalidade consiste  numa mistura indigesta do espírito e do corpo, em que o pensamento é como uma peça surda e cega num mecanismo, e em que, em contrapartida, as forças mecânicas participam dessa sequência, dessa obstinação e mesmo dessas astúcias que são próprias do pensamento. A oposição entre a liberdade e a necessidade não se muda em correlação a não ser que desfaçamos primeiro esta má mistura.


 Alain
(Tradução de José Ames)

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