“Como fomos crianças antes de sermos homens.”
(Princípios I, 1)
Uma
vez que se trata aqui da conduta da vida, que é o que interessa mais a um
homem, e uma vez que toda a natureza humana se encontra agora reunida como num
quadro, o leitor quererá saber que uso deve fazer das suas paixões, e que
remédio para os seus excessos Descartes propõe. Encontrar-se-á mais do que um,
se se ler atentamente o Tratado; e estas lições de sabedoria são tão
fortes, tão naturalmente conduzidas, enfim tão bem no seu lugar, que hesito em
trazê-las aqui aos pedaços, cortadas desse belo tecido em que ciência, juízo e
grandeza de alma estão em toda a parte entrelaçados. Segundo a minha opinião,
esta revista das paixões da alma, este movimento e este passo sobretudo que se
imita de Descartes lendo-o, é o principal remédio para as paixões e o mais
eficaz. Todavia, se é útil prometer e anunciar, eis aqui, seguindo a ordem das
ideias que foram acima expostas, como se poderia resumir esta sabedoria
cartesiana, demasiado pouco conhecida.
A
força duma paixão, o começo, o paroxismo, o apaziguamento, o retorno dependem
em primeiro lugar desses movimentos da vida, sobre os quais não temos qualquer
acção directa. Mas não é pouco se nessas
tempestades corporais reconhecermos a natureza material como ela é, quer dizer,
sem desígnio nem pensamento algum, sem nada de misterioso nem de fatal, uma
parte empurrando a outra. É já afastar de si e ter como que longe da vista esse
turbilhão tão próximo, esse turbilhão de sangue e de espíritos animais. É
medi-lo, é julgá-lo, e de alguma maneira nos arranjarmos com ele como com o
tempo que faz. Temos um longo hábito de viver num mundo que não tem respeito e
que é bem mais forte do que nós, no qual, no entanto, encontramos passagem.
Feliz aquele que encontra esta mesma natureza cega, indiferente, manuseável mais
ou menos como todo o mecanismo, nas suas próprias cóleras, nos seus ódios, nas
suas tristezas, e até nos seus desesperos. Tanto mais que, se nós não temos
nenhum poder sobre o nosso coração, nem sobre o curso dos espíritos, temos uma
acção directa sobre os movimentos dos nossos membros, seja para os regular,
seja para os reter. O hábito e o exercício contribuem muito para desenvolver
este poder; é claro que, por este meio, nós modificamos indirectamente e mesmo
muito os movimentos involuntários da vida, pois que tudo está ligado nesta máquina
de músculos e de nervos. Ninguém ignora que uma acção difícil, e que se sabe
fazer, é o que há de mais eficaz contra o medo. E, como diz Descartes com
força, e não sem o desprezo que convém, uma vez que se consegue realmente
adestrar um cão de caça, contra os seus instintos naturais, a não fugir ao
disparo e a não se lançar sobre a caça, quem nos impede de empregar a mesma
indústria e as mesmas astúcias a adestrar-nos a nós mesmos? É por este método,
que se pode dizer atlético, que o homem polido permanece senhor pelos menos dos
seus gestos. Mas é preciso saber, e é o que o Tratado nos ensina, que
por este meio puramente exterior, se chega também a mudar muito os movimentos
interiores, quer dizer a própria paixão. Porém, é no que não se quer crer
enquanto não se tiver compreendido bem que as paixões dependem dos movimentos
corporais muito mais do que dos pensamentos.
São
os nossos pensamentos, com efeito, que nos importunam; o homem apaixonado não
diz que o seu coração bate demasiado rápido, mas desenrola diante de si uma sequência de brilhantes e persuasivas
razões. Nesse estado, ele não pode julgar. O menos que pode fazer, se sabe que
a paixão o engana, é abster-se de julgar. Pode frequentemente mais, se recordar
as máximas familiares, e nas quais muitas vezes reflectiu quando estava livre
de paixão. Os estóicos ensinavam esta parte da sabedoria, que não é pouco, mas
também que não é tudo. Descartes, homem vivo, homem de primeiro movimento, não
conta muito com isso nas crises, e ensina-nos que já é muito não se acreditar
em si mesmo, e pelo menos julgar que não se está em estado de julgar. No que é humano e próximo de nós. Se me é permitido
trazer à luz uma ideia que lhe está sempre presente e que há o risco de o estar
menos para nós, acrescentarei que a fé em si próprio, e a certeza que se
triunfará no fim, desde que se queira, é a mais forte contra essa aparência de
fatalidade, que é, poder-se-ia dizer, a constante resposta das paixões à
reflexão. Tais são as nossas armas contra os pensamentos brilhantes e loucos
que o movimento dos espíritos entretém em nós.
Quero
chamar a atenção do leitor para duas ideias ainda, mas que são, essas, muito
difíceis, e que Descartes não explicou nada. Que haja paixões favoráveis à
vida, como o amor e a alegria, e outras que nos estrangulam pelo contrário por
dentro, como o ódio e a tristeza, é um dos pontos mais importantes do Tratado,
mas não dos mais difíceis. Estamos advertidos. Mas estaremos armados? Dependerá
de nós experimentar o amor ou o ódio? Um acontecimento, uma acção, mostram-se.
Conforme contrariem o nosso próprio ser,
ou pelo contrário, o estendam e desenvolvam, nós teremos paixões felizes ou
infelizes. Aqui brilha diante dos olhos, ao menos um curto momento, essa
observação de Descartes que as mesmas acções, às quais nos conduz o ódio, podem
também resultar do amor, pois que afastar de si um mal, é também na realidade
atrair a si o bem que lhe é directamente contrário. Spinoza, que comenta aqui
utilmente o seu mestre, ensina que vale mais alimentar-se por amor da vida do
que por medo da morte, e punir, se se é juiz, pelo amor da ordem do que por ódio
e cólera diante do crime. Da mesma maneira, direi eu, vale mais educar a
criança pelo amor do que ela tem de bom em si mesma do que por uma tristeza ou
uma cólera que se pode sentir ao vê-la má ou tola. O amor da liberdade é também mais são do que o ódio que se acalenta tão
facilmente pelo tirano. Estes exemplos, e tantos outros que se poderiam
inventar, não abrem no entanto um caminho fácil. A só considerar os motivos,
não vai longe do ódio ao amor; mas a considerar o regime do corpo, segundo a
visão admirável de Descartes, vai muito longe do ódio ao amor. Sem dúvida
Descartes, e Spinoza depois dele, quer dizer que não é pouco, se se mudam os
motivos, e que por este meio o humor triste pelo menos não é apoiado pelos
nossos pensamentos. Mas será o bilioso libertado por isso dessa maneira azeda
de amar que muitas vezes é a sua? E não se poderia dizer, ao contrário dos
nossos filósofos, que a mesma paixão, quer seja dita amor ou ódio por aquele
que a experimenta, se traduz frequentemente, segundo os humores e a saúde, por
afecções que não respondem em nada às opiniões? Este comentário não belisca a
descrição spinozista, em que é pressuposto que todo o curso das paixões depende
da necessidade universal. Em Descartes, uma vez que ele jurou governar-se,
quereríamos compreender como é que um juízo orientado de outro modo, mas que
não muda a acção, disporia de outra maneira o corpo. Sem dúvida é preciso
distinguir a acção real, como bater, dessas acções imaginárias, mas já
esboçadas no corpo, e que acompanham quase todos os nossos pensamentos. E essas
acções são muito diferentes no justiceiro, conforme ele pense em destruir ou em
fundar, em prejudicar ou em socorrer. Esta ideia é boa de seguir, todavia
parece-me que Descartes nos deixa aqui sem socorro. Mas é talvez, como quis
explicar mais acima, porque nós não pensamos a união da alma e do corpo como
seria preciso.
Enfim,
gostar-se-ia de ler no Tratado que todas as paixões são boas e até as
mais violentas, desde que se saiba governá-las bem. Cada um sente de facto que
sem as paixões, e mesmo conservadas, não haveria sábio. Descartes mostrou
fortemente, e sem duvida foi o primeiro no mundo, que os movimentos do amor e
do ódio são úteis à conservação do nosso corpo. Mas não é ainda dizer o
bastante. Descartes, tal como o vejo, homem de primeiro movimento, decidido,
grande viajante, curioso de todos os espectáculos e sempre em busca de percepções,
Descartes devia saber e sentir melhor do que qualquer homem que o espírito não
começa nada, e que a primeira partida das nossas virtudes, das nossas resoluções,
e mesmo dos nossos pensamentos está nos abanões da natureza, não uma vez, mas
sempre. O que se vê pelo menos neste belo estilo, em que a frase retoma,
corrige e acaba sempre um movimento de infância. E é por esta arte de descobrir
sempre de novo o que ele sabe, que se assegura tão bem de si mesmo. Bom
companheiro nisso, e sobretudo no Tratado. Prontamente acima de nós no
menor dos seus pensamentos; mas logo ele volta. Donde me parece que só em lê-lo
se toma algum ar e algum movimento desta grande alma.
Alain
(Tradução de José Ames)
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