terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

IMAGINAÇÃO, ENTENDIMENTO, VONTADE






“A vontade só ou só a liberdade do franco arbítrio que eu experimento em mim ser tão grande, que não concebo sequer a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa; de maneira que é ela principalmente que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus.”


( Meditações IV)


  
Uma vez que é preciso voltar ao conhecimento, e antes de dizer alguma coisa do célebre método, não é mau juntar sob a reflexão três ordens, em vez de duas  e depois duas. O que interessa aqui todo o homem, não é tanto opor dois a dois estes três termos, como apreender essa contínua passagem do inferior ao superior, que faz todos os nossos pensamentos. Porque talvez nunca se compreenda bem que a imaginação não é o entendimento, enquanto não se tiver ultrapassado o entendimento. E é uma lei muito escondida, mas de que se apreendem pelo menos os efeitos, que aqueles que querem ficar  no meio termo imediatamente caem abaixo. É preciso pois fazer, e mais de uma vez, como que uma revista destas três ordens, através das quais Pascal tão alto se elevou, mas que estão em cada linha de Descartes como uma criação contínua.

Primeiramente, a situação do espírito humano é tal  que exprime à partida e sempre as mudanças e as vicissitudes do corpo humano, e que primeiro ele só encadeia segundo o movimento dos humores, o que é imaginar. Mas, em segundo lugar, o espírito humano exprime também a natureza das coisas, desde que se liberte, tanto quanto isso é possível, do impedimento que resulta das afecções do corpo humano, e é compreender. Por exemplo, o sol é, em primeiro lugar e sempre, esse movimento que partiu do olho e se repercute em todo o corpo; e, de todas as vezes que um raio de sol nos ofusca, voltamos aí; mas enfim o astrónomo mede o sol,  remete-o para a sua distância, e tenta mesmo dizer de que gás é feito. Todavia é preciso compreender, e é o terceiro ponto, que esta purificação não se faz sozinha, e como que por um mecanismo que estaria bem montado em Descartes e menos bem em quase todos; mas, pelo contrário, que toda a força do querer  trabalha no conhecimento, o que é julgar. Estas três noções estando reunidas e mantidas em ordem, de modo a que permaneçam distintas tal como é preciso, chegar-se-ia, talvez, a perceber uma teoria do conhecimento que está muito longe de ter sido toda desenvolvida, mas que se apresenta pelo menos como um resumo irrepreensível. E é por isso que não se acabou de refutar Descartes, nem de voltar a Descartes. Como se vê nas Respostas, ele repete sempre a mesma coisa, e não sem impaciência, porque não vê o meio de fazer parecer fácil o que é difícil, por isso as nossas fracas objecções o deixam inteiro, e  ele continua à nossa espera, podia dizer-se.

A alma estando intimamente junta a um corpo vivo que reage energicamente e sem cessar diante do que o conserva e do que o ameaça,  esses movimentos não podem deixar de se traduzir por vivas afecções na alma, que são prazeres, dores, receios. Mas, porque a alma é indivisível, essas afecções da alma são também pensamentos. Quer dizer que a alma se representa primeiro e sempre um universo segundo as reacções do corpo. Por exemplo, do facto de que um gato nos  arranhou na nossa infância, ou de que um alimento por qualquer acidente nos desagradou,  desconfiamos, a partir daí, desse género de animais e desse género de comida, julgando que os gatos são pérfidos animais, e que a salada é prejudicial à saúde. É do mesmo modo absolutamente que julgamos que a afecção do azul e do vermelho está na própria coisa, ou então o calor, ou então o peso. Na realidade, chegamos todos a corrigir alguns desses erros.

Descartes conta que os rostos femininos cujos olhos fossem vesgos lhe davam um certo prazer, até ao dia em que se lembrou que uma amiga da sua infância e ternamente amada, tinha também esse defeito. Antes de ter feito esta reflexão, a alegria do filósofo era pois lançada como uma cor de beleza sobre certos rostos, sem que ele soubesse porquê. Aqui aparece uma causa dos nossos erros, que é que nós não compreendemos, ou que compreendemos mal, o que está no nosso juízo. Mas esta causa só é de privação; ignorar não é enganar-se.  E uma vez que nos podemos preservar do erro se suspendermos o nosso juízo, transparece que a causa positiva dos nossos erros é que, sem esperar saber, nos precipitamos a julgar. Assim na imaginação se mostra todo o pensamento, seja que eu lhe chame entendimento quando ele estima as formas e as distâncias do objecto que agrada ou desagrada, seja que eu lhe chame vontade quando ele se abalança a julgar que o que agrada ou desagrada é de facto útil ou prejudicial. Uma imaginação que não encerrasse nem ideia nem juízo não seria de todo um pensamento; seria preciso defini-la como um movimento do corpo humano somente; tal é a imagem nua. Eis já uma ideia de futuro, e à qual muitos regressam, é que a imagem que é apenas imagem não é nada no espírito.

A outra ideia, segundo a qual o entendimento concebe e a vontade julga, tem alguma aparência de artifício; porque o que é conceber sem julgar, e, como diz o prudente Spinoza, o que é representar-se um cavalo alado senão afirmar que um cavalo tem asas? A vontade estaria pois em toda a parte nas ideias; e, porque há pois uma necessidade nas ideias que define o entendimento, a vontade encontrar-se-á portanto também determinada. Para falar de outra maneira, nem tudo é livre no pensamento livre; e até, no que é eminentemente pensamento, já não há nada de livre; por exemplo, eu não posso pensar que duas linhas iguais no círculo não estejam à mesma distância do centro. Conheci bons espíritos que acabam sempre por esbarrar aqui, dizendo que não se pensa como se quer. Sabe-se que Descartes se manteve firme nisso, recusando submeter Deus às verdades. Mas quanto ao homem?

Em tais passagens, em que se suspeita que o espírito humano se armadilha a si mesmo, como diz Montaigne, conhece-se o preço dum autor no qual nos podemos fiar inteiramente. Eu conheço dois, Platão e Descartes. Tomemos pois de Descartes a coragem  que é precisa para manter em conjunto e firmemente duas ideias, sem ver primeiro como é que elas se acordam, sem nos apressarmos a sacrificar uma delas. Começando pelo entendimento, creio que é bom, para cada um experimentar  uma vez mais as melhores provas, seja de aritmética, seja de geometria, seja de mecânica, e de seguir mesmo na Analítica de Kant todo o sistema do entendimento, donde se sentirá que o entendimento é alguma coisa. E é muito importante que a mistura de imaginação, que se encontra sempre em tal ou tal prova, não nos imponha o que se poderia chamar uma dúvida de humor, ou uma dúvida de fantasia. Há aí uma certa vergonha em combater o entendimento, ficando abaixo do entendimento, o que é tomar a dificuldade de compreender por uma razão de duvidar. A verdadeira dúvida, como se disse mais acima, não está abaixo do entendimento, mas acima. Enfim, não se merece nunca duvidar de mais. Descartes sabia já mais coisas que qualquer homem no mundo, quando se lembrou de duvidar de tudo. No fundo,  pode muito bem ser, como Jules Lagneau o dava a entender, que a noção de liberdade falhe em quase todos, por uma noção menos preguiçosa da necessidade antagonista, do mesmo modo que é já claro que a liberdade prática é muitas vezes sem acção, por falta dum obstáculo primeiramente estimado segundo a sua invencível resistência. Só há espírito forte pelo saber, sendo Pascal  o modelo, mas muito pouco seguido no que  aprendeu, cedo de mais seguido no que desfez. Antes de duvidar, pois, estejamos seguros.

A outra ideia, porém, dum espírito livre em todos estes trâmites, não deve também ser esquecida. Isso não se deve. Porque, uma vez que há mal pensar e bem pensar, é que a melhor disposição nas ideias não aparece, pois, sozinha, e que é preciso que nos envolvamos. Levando mesmo a ideia  ao seu extremo, eu pergunto o que seria um pensador que pensasse realmente que o juízo se faz por ele mesmo e que  só há que esperar. Seria uma espécie de louco lúcido; mas estes dois termos repelem-se. Não há consciência no mundo a não ser que se recuse a aparência; ou então, para dizer doutra maneira,  só existe aparência se recusada. De facto, as mais poderosas ideias, e as mais precisas, só aparecem se se quiser. Sem considerar outro exemplo além da linha recta, é claro que ela não existe, que nunca é dada nem conservada, e que é apenas pensamento se se jurar. Este belo jogo de fazer a ideia e de a manter, até saber que ela perece toda pela menor negligência do que se deve a si próprio, é o jogo do verdadeiro geómetra. E aqueles que acreditam que as ideias existem e esperam por nós recaem na imaginação. É assim que acontece que contando bem eu perco os números, como sucede com as máquina de calcular, que não encerram qualquer número, mas somente caracteres e peças de mecanismo. Indo até ao ponto de perceber que não há recordação dum número, nem de nenhuma ideia, mas somente dum mecanismo correspondente, conhecer-nos-emos criadores ainda do que não pode ser outro; e tal é talvez a condição humana.

Homem, somente homem, isso talvez não tenha sentido. Este apelo a Deus livre, livre diante das verdades, livre de as fazer ser, livre de as fazer outras, é bem tocante num homem que é apenas homem. Porque donde sabe ele de Deus? Mas não é uma maneira de dizer que o juízo no homem está tanto acima do entendimento como o próprio entendimento está acima da imaginação? Nós só temos, na maior parte, uma fraca experiência do que é inventar. Não é como se se dissesse que  temos um fraco conhecimento de Deus? Parece-nos que a melhor ordem das ideias nos é dada na natureza, e que nós só temos que descobrir essa ordem; mas é sem dúvida mal orar, e adorar, como se diz, a criatura e não o criador. Se não nos enganarmos nesta determinação das ideias que vêm das coisas, e se soubermos remetê-la para a imaginação, adivinharemos, mesmo no pensamento do físico, uma espantosa liberdade. Eu quero  limitar-me sobre isso a relatar, a partir dos Princípios, alguns traços de Descartes, na verdade quase violentos,  e que nos convidam a procurar um Descartes bem acima das nossa provas comuns,  carregadas todas de matéria.  Causará espanto sempre ler, nos Princípios, que a ordem seguida de facto pelo criador não importa nada ao físico e que “se conheceria melhor qual foi a natureza de Adão e a das árvores do Paraíso se se tivesse examinado como é que as crianças se formam no ventre das suas mães, e como as plantas saem das suas sementes, do que se apenas se tivesse considerado tal como eram quando Deus as criou”. Eis de novo Descartes inteiro e Descartes ousando, e a experiência subordinada de longe à salvação do espírito. Partindo daí, talvez se chegue a compreender os paradoxos deste dogmático,  batendo como que a golpes redobrados sobre a nossa espessa couraça, quando anuncia nos seus títulos: “Que não é verosímil que as causas das quais se podem deduzir todos os fenómenos sejam falsas. Que a sua falsidade não impede que o que delas for deduzido seja verdadeiro.” Aqui aparece, se eu sei ver bem, a grandeza do espírito e o apelo ao Deus vivo.


Alain
(Tradução de José Ames)

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