segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A UNIÃO DA ALMA E DO CORPO





“Todavia eu tenho de considerar aqui que sou homem.”

(Primeira Meditação)




Que o curso dos nossos pensamentos dependa muito desses movimentos que se fazem maquinalmente no corpo, é o que cada um experimenta numa febre, num medo, numa cólera. Que em contrapartida, a vontade possa mudar grandemente o corpo, pelo poder que tem de o mover e de o reter, é o que conhecem aqueles que dominaram o medo e governaram o seu corpo em acções difíceis, e é o que Descartes nunca põe em dúvida. E cada um sabe bem que, nos casos ordinários, pode estender o braço, levantar-se, caminhar, se o quiser; mas cada um sabe também que, desde que negligencie o querer e fique na irresolução, o corpo encarrega-se de fugir, de se esquivar, de tremer, e mesmo de tentar, seja por movimentos habituais, seja só pelo movimentos da vida. O problema humano encontra-se assim posto em cada um. Só a extrema doença e o extremo terror podem reduzir o homem ao estado de máquina pura. E, como esse limite da vontade depende muito também do que se ousa, é preciso pois, sempre, sem nos preocuparmos com o limite, que nos governemos a nós mesmos e o melhor que pudermos. É por isso que Descartes, indo aqui ao fundo do problema, chama de generosidade, no seu Tratado das Paixões, o sentimento que se tem do livre arbítrio, junto, segundo a sua forte expressão, à firme resolução de nunca lhe faltar. Por esta visão intrépida e sem precedente, Descartes é homem de acção, e mestre de prática para todo o futuro humano; porque, quaisquer dúvidas que possamos formar com respeito à força da vontade, essas dúvidas só têm sentido e limites sob a condição de se tentar com toda a coragem. Se apenas se trouxesse à luz uma vez esta ideia real, é uma razão suficiente para escrever sobre Descartes depois de tantos outros.

Que a alma aja sobre o corpo, e o corpo sobre a alma, é pois um facto do homem. Mas é apenas um facto. A primeira coragem e a mais profunda coragem é se segurar aí. Tentemos construir uma representação mecânica desta união; é claro que não o poderemos, porque um dos termos, o pensamento, compreende, envolve, e duma certa maneira contém o outro, o corpo; o outro e o universo em, volta. Este imenso poder, que mede os lugares e as distâncias, não se pode reduzir a enganchar-se como uma coisa a este pequeno mecanismo. Enfim o que concebe a mecânica repele a relação mecânica. É preciso um corpo para empurrar ou ferir um corpo; a acção mecânica joga-se de parte a parte. Esta alma, que conhece o seu próprio corpo, o mundo e Deus, não pode conhecer que empurre o corpo como um dedo empurra uma engrenagem, nem se vê alojada no corpo como um piloto invisível. Se se pensar bem nisso, há uma contradição ridícula em encerrar a alma no corpo, nesse mesmo corpo  que ela conhece limitado e rodeado de tantas outras coisas. Como é que o que encerra à partida todos os lugares possíveis, que faz deles a comparação, para quem o longe  e  o perto estão juntos, quer dizer em relação, que nunca separa sem juntar, que nada pode pensar fora de si, sem o pensar por isso mesmo em si, que só conhece o limite superado, que é enfim o todo do todo, e mesmo contra o todo dos possíveis, como é que este árbitro universal estaria prisioneiro numa parte, e limitado a ela? Ligado a ela, sim; mas não é a mesma coisa. Que a sequência dos nossos pensamentos dependa deste saco de pele, cujos limites nos são tão familiares; que não possamos contemplar o todo senão do posto em que estamos, que esta posição não possa ser mudada a não ser através de movimento e trabalho, com esforço e risco, sabemo-lo primeiro confusamente, pela intimação da dor, e não cessamos nunca de o aprender.  Mas essa dependência não se parece nada a esta condição dos corpos, que é que cada parte seja limitada e movida pelas outras. O nosso corpo está submetido a esta lei da existência, ideia que Spinoza desenvolverá amplamente; é por este atrito e esta usura que nós seremos expulsos algum dia da existência; mas não é nada assim que um pensamento se segue a um pensamento; porque é o todo do universo que se torna outro na nossa representação, enquanto que no nosso corpo uma parte expulsa a outra. E é o que a experiência fará finalmente sentir àqueles que procuram sem preconceito. Todavia não se saber onde está a alma, não se poder dizer se a vontade, a memória, a combinação são aqui ou ali, não é nada ainda, e é apenas sabedoria forçada. É preciso saber que estas questões não têm sentido e que toda a alma está ligada a todo o corpo. Sobre isso, Descartes é amplo e suficiente, indo até a dizer, e mais de uma vez, que é somente pela vida de sociedade, de divertimento,  de acção  e de viagem, que se conhece a união da alma e do corpo. Aviso pois aos homens de gabinete. À força de procurar, bem inutilmente,  como isso é possível, eles esquecerão que tal existe.

Porém, Descartes não ignora essa relação singular que remete sempre para o cérebro aquele que busca a sede da alma. Ele segue desde os olhos até ao cérebro o caminho do choque ao longo dos cordões nervosos;  sabe que o corte do nervo suprime a visão, o tocar, a dor, segundo os casos; e, pelo contrário,  sabe que se pode sofrer dum membro que já não se tem. A alma parece-lhe pois unida mais especialmente ao cérebro, embora ele não cesse de  repetir a si próprio que a alma está junta a todo o corpo indivisivelmente. Procura, pois, alguma parte do cérebro em que todos os movimentos do corpo se venham reunir; crê encontrá-la na glândula pineal, e, quanto a isso, nenhum fisiologista o seguirá; não impede que, por esta vista, ele afaste completamente essa miragem das localizações cerebrais que em vão ocupou tantos homens eminentes, e que enfim ele não se canse de dizer que a alma não está mais nesta glândula do que em qualquer outro lugar, que isso não tem sentido,  e que é preciso somente pensar que tal movimento da glândula, que reúne sempre todos os movimentos do corpo, corresponde a uma certa mudança nos nossos pensamentos, e que inversamente tal querer move essa glândula de tal maneira, e, por  seu intermédio, o corpo inteiro sempre. Donde ressai, se se prestar atenção, esta grande ideia que, como a alma não se divide, e age toda sobre todo o corpo, ao contrário, nunca é tal pequeno movimento duma parte do corpo que muda tal dos nossos pensamentos, mas que é todo o corpo, indivisível também num sentido pelos nervos e o cérebro, que traduz os movimentos vitais, o alimento, as batidas do coração, os gestos e as acções em conjunto, por uma acção sobre a alma que não está em poder do espírito representar. Não faltam fisiologistas, e principalmente na escola francesa, que chegaram enfim, pelos caminhos da experiência tacteante, a tomar essa ideia directriz como a melhor que eles conhecem, até a considerar  o dualismo de Descartes como a verdade experimental mais segura. Na verdade, trata-se menos aqui duma verdade de experiência do que duma dessas pressuposições, como são as geométricas,  que relevam do entendimento legislador e que elas só podem dar um sentido a uma experiência qualquer. Assim o Príncipe do Entendimento não acabou de governar os nossos pensamentos.

Como é que a psicologia e a fisiologia assim juntas conduzem a uma doutrina das paixões, a mais viva, a mais nova, a mais acessível ao leitor culto, a mais obscura para os filósofos, é o que não é fácil de explicar mais brevemente, do que o próprio Descartes. O Tratado das Paixões da alma, tão célebre e tão pouco lido, é de todas as obras de Descartes aquela que se deixa menos resumir. Obra de homem, tão fortemente limitada ao homem, de imediato acessível a todo o homem preocupado em governar-se. De resto, ele não fez mais do que pôr em ordem aquilo que propunha, nas suas cartas, à princesa Elisabete, contra os desgostos, contra a ambição enganada, contra a fúria, contra a febre lenta, enfim contra os tumultos duma alma orgulhosa, sempre em querela consigo mesma. Mas quem então, neste mundo de iguais, todos promovidos ao pensamento, quem não é príncipe e exilado? Eu anuncio, sem qualquer receio de me enganar, que o leitor, se não estiver estragado pela mania de refutar, encontrará neste livro espantoso luzes suficientes sobre a condição real do espírito humano, sobre o jogo das emoções e dos sentimentos que não cessam de colorir os nossos pensamentos, e, acima de tudo, sobre este companheiro difícil, sobre a surpreendente mecânica que é o nosso corpo, tão perto de nós, tão nosso íntimo, e tão estranho. Mas também este livro não é daqueles que se poderiam ler uma vez e de que se guardasse o essencial na  memória. Seja na análise dos pensamentos, seja na descrição dos gestos e dos movimentos secretos, é o detalhe que importa, é a força do estilo rústico e belo que enleva. Digamos apenas aqui que se encontrará três coisas neste Tratado, e que são inseparáveis, embora formando três ordens distintas. Uma fisiologia das paixões, primeiro, que não pede nada aos pensamentos, e que depende somente dos movimentos pelos quais o corpo humano cresce e se conserva; depois uma psicologia das paixões que não pede nada aos órgãos, que faz conhecer  que as paixões são paixões da alma; enfim uma doutrina do livre arbítrio, sem a qual é preciso reconhecer que o nome mesmo de paixão, tão enérgico, não teria sentido. Compete ao leitor atento manter estas três ordens num todo que lhe representará fielmente a sua própria vida.


Alain
(Tradução de José Ames)

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