“Todavia eu tenho de considerar aqui que sou homem.”
(Primeira Meditação)
Que
o curso dos nossos pensamentos dependa muito desses movimentos que se fazem
maquinalmente no corpo, é o que cada um experimenta numa febre, num medo, numa
cólera. Que em contrapartida, a vontade possa mudar grandemente o corpo, pelo
poder que tem de o mover e de o reter, é o que conhecem aqueles que dominaram o
medo e governaram o seu corpo em acções difíceis, e é o que Descartes nunca põe
em dúvida. E cada um sabe bem que, nos casos ordinários, pode estender o braço,
levantar-se, caminhar, se o quiser; mas cada um sabe também que, desde que
negligencie o querer e fique na irresolução, o corpo encarrega-se de fugir, de
se esquivar, de tremer, e mesmo de tentar, seja por movimentos habituais, seja
só pelo movimentos da vida. O problema humano encontra-se assim posto em cada
um. Só a extrema doença e o extremo terror podem reduzir o homem ao estado de
máquina pura. E, como esse limite da vontade depende muito também do que se
ousa, é preciso pois, sempre, sem nos preocuparmos com o limite, que nos
governemos a nós mesmos e o melhor que pudermos. É por isso que Descartes, indo
aqui ao fundo do problema, chama de generosidade, no seu Tratado das Paixões,
o sentimento que se tem do livre arbítrio, junto, segundo a sua forte
expressão, à firme resolução de nunca lhe faltar. Por esta visão intrépida e
sem precedente, Descartes é homem de acção, e mestre de prática para todo o
futuro humano; porque, quaisquer dúvidas que possamos formar com respeito à
força da vontade, essas dúvidas só têm sentido e limites sob a condição de se
tentar com toda a coragem. Se apenas se trouxesse à luz uma vez esta ideia
real, é uma razão suficiente para escrever sobre Descartes depois de tantos
outros.
Que
a alma aja sobre o corpo, e o corpo sobre a alma, é pois um facto do homem. Mas
é apenas um facto. A primeira coragem e a mais profunda coragem é se segurar
aí. Tentemos construir uma representação mecânica desta união; é claro que não
o poderemos, porque um dos termos, o pensamento, compreende, envolve, e duma
certa maneira contém o outro, o corpo; o outro e o universo em, volta. Este
imenso poder, que mede os lugares e as distâncias, não se pode reduzir a
enganchar-se como uma coisa a este pequeno mecanismo. Enfim o que concebe a
mecânica repele a relação mecânica. É preciso um corpo para empurrar ou ferir
um corpo; a acção mecânica joga-se de parte a parte. Esta alma, que conhece o
seu próprio corpo, o mundo e Deus, não pode conhecer que empurre o corpo como
um dedo empurra uma engrenagem, nem se vê alojada no corpo como um piloto
invisível. Se se pensar bem nisso, há uma contradição ridícula em encerrar a
alma no corpo, nesse mesmo corpo que ela
conhece limitado e rodeado de tantas outras coisas. Como é que o que encerra à
partida todos os lugares possíveis, que faz deles a comparação, para quem o
longe e
o perto estão juntos, quer dizer em relação, que nunca separa sem
juntar, que nada pode pensar fora de si, sem o pensar por isso mesmo em si, que
só conhece o limite superado, que é enfim o todo do todo, e mesmo contra o todo
dos possíveis, como é que este árbitro universal estaria prisioneiro numa
parte, e limitado a ela? Ligado a ela, sim; mas não é a mesma coisa. Que a
sequência dos nossos pensamentos dependa deste saco de pele, cujos limites nos
são tão familiares; que não possamos contemplar o todo senão do posto em que
estamos, que esta posição não possa ser mudada a não ser através de movimento e
trabalho, com esforço e risco, sabemo-lo primeiro confusamente, pela intimação
da dor, e não cessamos nunca de o aprender.
Mas essa dependência não se parece nada a esta condição dos corpos, que
é que cada parte seja limitada e movida pelas outras. O nosso corpo está
submetido a esta lei da existência, ideia que Spinoza desenvolverá amplamente;
é por este atrito e esta usura que nós seremos expulsos algum dia da
existência; mas não é nada assim que um pensamento se segue a um pensamento;
porque é o todo do universo que se torna outro na nossa representação, enquanto
que no nosso corpo uma parte expulsa a outra. E é o que a experiência fará
finalmente sentir àqueles que procuram sem preconceito. Todavia não se saber onde
está a alma, não se poder dizer se a vontade, a memória, a combinação são aqui ou
ali, não é nada ainda, e é apenas sabedoria forçada. É preciso saber que estas
questões não têm sentido e que toda a alma está ligada a todo o corpo. Sobre
isso, Descartes é amplo e suficiente, indo até a dizer, e mais de uma vez, que
é somente pela vida de sociedade, de divertimento, de acção
e de viagem, que se conhece a união da alma e do corpo. Aviso pois aos
homens de gabinete. À força de procurar, bem inutilmente, como isso é possível, eles esquecerão que tal
existe.
Porém,
Descartes não ignora essa relação singular que remete sempre para o cérebro
aquele que busca a sede da alma. Ele segue desde os olhos até ao cérebro o
caminho do choque ao longo dos cordões nervosos; sabe que o corte do nervo suprime a visão, o
tocar, a dor, segundo os casos; e, pelo contrário, sabe que se pode sofrer dum membro que já não
se tem. A alma parece-lhe pois unida mais especialmente ao cérebro, embora ele
não cesse de repetir a si próprio que a
alma está junta a todo o corpo indivisivelmente. Procura, pois, alguma parte do
cérebro em que todos os movimentos do corpo se venham reunir; crê encontrá-la
na glândula pineal, e, quanto a isso, nenhum fisiologista o seguirá; não impede
que, por esta vista, ele afaste completamente essa miragem das localizações
cerebrais que em vão ocupou tantos homens eminentes, e que enfim ele não se
canse de dizer que a alma não está mais nesta glândula do que em qualquer outro
lugar, que isso não tem sentido, e que é
preciso somente pensar que tal movimento da glândula, que reúne sempre todos os
movimentos do corpo, corresponde a uma certa mudança nos nossos pensamentos, e
que inversamente tal querer move essa glândula de tal maneira, e, por seu intermédio, o corpo inteiro sempre. Donde
ressai, se se prestar atenção, esta grande ideia que, como a alma não se
divide, e age toda sobre todo o corpo, ao contrário, nunca é tal pequeno
movimento duma parte do corpo que muda tal dos nossos pensamentos, mas que é
todo o corpo, indivisível também num sentido pelos nervos e o cérebro, que
traduz os movimentos vitais, o alimento, as batidas do coração, os gestos e as
acções em conjunto, por uma acção sobre a alma que não está em poder do
espírito representar. Não faltam fisiologistas, e principalmente na escola
francesa, que chegaram enfim, pelos caminhos da experiência tacteante, a tomar
essa ideia directriz como a melhor que eles conhecem, até a considerar o dualismo de Descartes como a verdade
experimental mais segura. Na verdade, trata-se menos aqui duma verdade de
experiência do que duma dessas pressuposições, como são as geométricas, que relevam do entendimento legislador e que
elas só podem dar um sentido a uma experiência qualquer. Assim o Príncipe do
Entendimento não acabou de governar os nossos pensamentos.
Como
é que a psicologia e a fisiologia assim juntas conduzem a uma doutrina das
paixões, a mais viva, a mais nova, a mais acessível ao leitor culto, a mais
obscura para os filósofos, é o que não é fácil de explicar mais brevemente, do
que o próprio Descartes. O Tratado das Paixões da alma, tão célebre e
tão pouco lido, é de todas as obras de Descartes aquela que se deixa menos
resumir. Obra de homem, tão fortemente limitada ao homem, de imediato acessível
a todo o homem preocupado em governar-se. De resto, ele não fez mais do que pôr
em ordem aquilo que propunha, nas suas cartas, à princesa Elisabete, contra os
desgostos, contra a ambição enganada, contra a fúria, contra a febre lenta,
enfim contra os tumultos duma alma orgulhosa, sempre em querela consigo mesma.
Mas quem então, neste mundo de iguais, todos promovidos ao pensamento, quem não
é príncipe e exilado? Eu anuncio, sem qualquer receio de me enganar, que o
leitor, se não estiver estragado pela mania de refutar, encontrará neste livro
espantoso luzes suficientes sobre a condição real do espírito humano, sobre o
jogo das emoções e dos sentimentos que não cessam de colorir os nossos
pensamentos, e, acima de tudo, sobre este companheiro difícil, sobre a
surpreendente mecânica que é o nosso corpo, tão perto de nós, tão nosso íntimo,
e tão estranho. Mas também este livro não é daqueles que se poderiam ler uma
vez e de que se guardasse o essencial na
memória. Seja na análise dos pensamentos, seja na descrição dos gestos e
dos movimentos secretos, é o detalhe que importa, é a força do estilo rústico e
belo que enleva. Digamos apenas aqui que se encontrará três coisas neste Tratado,
e que são inseparáveis, embora formando três ordens distintas. Uma fisiologia
das paixões, primeiro, que não pede nada aos pensamentos, e que depende somente
dos movimentos pelos quais o corpo humano cresce e se conserva; depois uma
psicologia das paixões que não pede nada aos órgãos, que faz conhecer que as paixões são paixões da alma; enfim uma
doutrina do livre arbítrio, sem a qual é preciso reconhecer que o nome mesmo de
paixão, tão enérgico, não teria sentido. Compete ao leitor atento manter estas
três ordens num todo que lhe representará fielmente a sua própria vida.
Alain
(Tradução de José Ames)
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