“É preciso, pois, concordar que eu não poderia sequer compreender pela imaginação o que é este pedaço de cera, e que só o meu entendimento o compreende.”
(Meditações II.)
Compreende-se
que eu me prive de citar, e de pôr aqui Descartes em pedaços. Algumas linhas
somente: “Tomemos por exemplo este pedaço de cera; ele acaba de ser retirado da
colmeia, não perdeu ainda a doçura do mel que continha, e retém alguma coisa
ainda do odor das flores de que foi recolhido…” É preciso ler toda a passagem
da Segunda Meditação, e mais de uma vez. Basta-nos agora reencontrar
Descartes vivo, Descartes diante da coisa, Descartes em quem percepção e
atenção nunca estão separadas. É um belo traço seu ter esperado voltar a
encontrar a neve para pensar dela alguma coisa, feliz então, segundo a sua
própria expressão, de que as ideias lhe caíssem do céu. Não está aqui um homem
que arranje as suas ideias pelo melhor, mas mais depressa ele pensa o universo
presente, e em nada mais pensa; como se
viu também nas suas meditações sobre a dúvida, em que é dos corpos presentes e
percebidos, o fogo, a candeia, os mantos, que a alma ressalta. Tal é a regra de
reflexão, sempre desconhecida. Mas trata-se agora de saber aquilo que eu penso
dum corpo real. E esta célebre análise do pedaço de cera consiste nisto,
que eu posso mudar a sua forma
manipulando-o, a sua solidez aproximando-o do fogo, até ver perecerem cor, odor e consistência, eu diria
até ver perdida esta cera, em vapor, em chama, em fumo. “A mesma cera permanece
ainda depois desta mudança? É preciso confessar que permanece; ninguém duvida disso, ninguém
julga de outra maneira.” A cera não é portanto este odor, esta cor, esta
consistência, esta figura. Os sentidos não a apreendem no seu ser; é o
entendimento que a deve perseguir. Mas não fora da percepção. O que quer que eu
deva pensar do pedaço de cera, “é o mesmo que eu sempre acreditei ser no
começo”. Mas que devo eu pensar disso?
Aqui
o leitor meditando cai como num buraco. É preciso não ter medo, mas antes,
libertados agora da imagem, seguir intrepidamente uma ideia de que ninguém
duvida. Eu queimo pois esta cera, ou então volatilizo-a; ela não se perde no
universo; mas o entendimento acompanha-a sempre. Os átomos, como nós dizemos,
de carbono e de hidrogénio, não são destruídos,
não entendemos com isso outra coisa
que isto, é que eles são dissociados ou divididos, irreconhecíveis em
novas combinações de que não temos talvez a ideia; mas enfim, os pedaços ou
fragmentos ou elementos desta cera, quaisquer que eles possam ser, estão
certamente nalguma parte, longe ou perto, em tal direcção ou em tal outra,
separados ou aglomerados, aproximando-se de tais elementos, afastando-se de
tais outros, contrariando ou favorecendo aqui ou ali algum movimento de fogo ou
de vapor, ou então de novo agarrados em
qualquer sólido, folha de árvore ou concha. Eu perdi-os de vista, não sei dizer
precisamente o que eles são nem onde estão, mas eles são partes deste universo;
não saíram dele. Repito, com o nosso filósofo: “ Ninguém duvida, ninguém julga
de outra maneira.”
Eles
estão em qualquer parte, aqui ou ali; não posso vencer este pensamento. Nenhum
deles está ao mesmo tempo aqui e acolá; e é dizer que eles caem sob dimensões
determinadas, uma certa relação de direcção e de resistência é verdadeira a
cada instante entre eles e as outras coisas. Tal é o seu ser, do qual não os
posso despojar. Que é pois esta existência que pode ser quebrada e dispersa de
mil maneiras, mas que não cessa de concorrer com todas as outras coisas,
empurrando e empurrada, comprimindo e comprimida?
Aqui
olhemos bem. A coisa extensa de Descartes fez escândalo aos olhos de quase
todos os pensadores. Digo bem aos olhos; porque, sob o nome de extensão, eles
querem representar-se uma vestimenta sem rasgão que recobrisse todas as coisas,
ou então um espaço vazio que as contivesse todas. Ora, dizem eles, isso é
apenas uma forma da nossa representação, e como que uma relação lançada duma
coisa a outra, segundo a qual elas são julgadas longe ou perto, grandes ou
pequenas. Ora, pois que é preciso despojar esta extensão das cores, dos sons,
dos contactos, como a análise acima exposta nos convida a fazer, e que é
preciso mesmo negar da coisa real toda a forma determinada que lhe pertencesse,
fica alguma forma indeterminada e oca, como seria o espaço dos geómetras, onde
todas as formas e todos os movimentos são igualmente possíveis. É um pouco
demasiado forte, pensam eles, dizer que
a matéria se reduz a isso e é apenas essa forma vazia. No que eles se deixam
conduzir mais uma vez pela imaginação. Entre outras coisas que surpreenderão
muito tempo, Descartes disse, e mais duma vez, que os matemáticos exercem
principalmente a imaginação. Isso convida-nos a formar aqui não a imagem da extensão,
mas a própria ideia da extensão, e pelo entendimento apenas, quer dizer, a pensar o exterior
absolutamente, unicamente a existência material, enfim a coisa nua. Ora, nós
estávamos aí, sem abandonar um único momento a ideia comum, a ideia de que ninguém
duvida; nós estávamos aí, mas com a condição de tirar completamente a ideia
para fora da imagem. Que é pois esta existência exterior? Que devo pensar em
rigor, se a dispo, como diz energicamente Descartes, e a considero nua? O que
encontro, é a extensão absolutamente, quer dizer o que é exterior no pleno
sentido da palavra, e, se se ousa dizer, essencialmente exterior. Quando
dizemos que a nossa cera, mesmo perdida em fumo e vapor, está certamente nalguma
parte, queremos dizer que ela está numa relação de vizinhança e de troca com
outras coisas, de modo que seja mudada pelas suas mudanças, e elas reciprocamente
pelas suas. A isso se limita o seu ser; ela também só é o que é por esta
dependência recíproca entre as suas partes; e é isso que a mecânica nos representa e nos permite
imaginar. Mas é preciso ainda ultrapassar estas imagens, em que pomos alguma
coisa de nós mesmos, enfim formar agora a própria ideia da existência. E esta
ideia consiste nisto, que nenhuma coisa material, como tal, tem uma natureza
interior e própria, mas que, pelo contrário, toda a coisa material é
absolutamente dissolvida nas suas partes e nas partes das suas partes, cada uma delas não tendo
outra propriedade a não ser as modificações que ela recebe das vizinhas e, gradualmente,
de todas.
Os
atomistas, bem antes de Descartes, apreenderam esse carácter da coisa; e todo o
seu esforço foi de dizer que o átomo não é nada por ele mesmo, e pelo contrário
recebe do choque dos outros todas as suas propriedades, de tal maneira que a ciência
das coisas acaba por formar combinações, gravitações, corrente e fluxo de
átomos. Ora, a seguir em Descartes rigorosamente, na sua severa análise,
reconhece-se que o átomo é como que um ser auxiliar, e, propriamente
falando, um socorro de imaginação.
Deixa-se-lhe solidez e forma; mas na solidez e forma encontra-se ainda a
relação exterior, ou relação de composição. A coisa reduzida a si, ou
existência nua, é que nunca qualquer das suas partes é alguma coisa em si, mas
que ao contrário toda a coisa é exterior,
de modo que a mais pequena parte a cada momento só é o que é, pelo
fluxo, a fricção, a pressão de todas as outras coisas. Mais uma vez, ninguém
pensa de outra maneira, se é que pensa. Mas a imaginação persuade-nos sempre
que o peso está na coisa pesada ela mesma, e inerente a ela, que a cor está na
coisa colorida, e inerente a ela. No entanto cada um sabe, desde que seja um
pouco instruído, que o peso deste pedaço
de chumbo muda do pólo para o equador, e mesmo, reparando bem, segundo a lua; e
cada um sabe igualmente bem que tal cor é apenas uma maneira de reenviar a luz,
e que depende do fluxo da luz também, de
modo que se a luz não tivesse raios amarelos, o ouro seria negro. É preciso
chamar de qualidades ocultas estas qualidades que se supõem inerentes a tal
parte da matéria, e que deveriam subsistir ainda no interior da coisa, quando
tudo, em volta, fosse mudado. Não há tais qualidades, os físicos sabem-no: mas
Descartes foi sem dúvida o único que formou a ideia que as exclui
absolutamente. A existência é aqui pensada como tal, e a necessidade pura
mostra-se, pela primeira vez talvez, bem distinta da fatalidade; porque nada
está dito e nada está pensado nessa poeira turbilhante que usa enfim todas as
coisas, belas ou feias, num mesmo atrito, conforme a lei de ferro que submete
não importa qual ser a tudo o que não é ele. Nós não acabamos de formar esta
ideia viril, pela qual a existência do mundo é enfim colocada. É aqui que
encontra o seu termo, por uma forte contemplação, essa dialéctica interminável
que com os nossos sonhos quereria fazer um mundo. É que seria preciso formar a
ideia da existência pura, sem nenhuma mistura. E, uma vez que as qualidades
ocultas voltam sempre pelo império da imaginação, esta análise do pedaço de
cera soará sempre como o mais belo poema. Porque a ideia mitológica deixa
escapar a beleza do mundo, tão profundamente sentida por todos. E, ao contrário,
só a ideia deste mar continuamente sacudido e desenrolado, e de todo o universo
em volta, exterior também a ele mesmo, sem projecto e sem pensamento algum,
toca em fim o sublime pressentido pelos poetas, segundo o sentimento duma
verdadeira grandeza, dir-se-ia corneliana, que supera essa falsa grandeza.
Direi
pouco do movimento, e somente para assinalar que Descartes esteve sempre atento
em retirá-lo de alguma maneira da coisa movida para o repartir em redor, ou
antes para o pensar como uma relação entre a coisa e outras coisas. Será
surpreendente encontrar nos Princípios, e sem nenhuma ambiguidade nem
restrição, uma doutrina ainda hoje nova, segundo a qual o movimento é apenas uma relação entre um
corpo e os corpos vizinhos. Esta ideia agrada à primeira vista, pelos jogos de
imaginação que lhe estão relacionados; mas ela ultrapassa em breve a medida dos
espíritos medianos, por isto que as qualidades ocultas ou inerentes tendo de
ser negadas também aqui, é preciso que a força viva, ou o impulso da massa,
seja desligada da coisa movida e reportada ao campo circundante. Porque supor
num corpo que se move uma força íntima, e como que um movimento concentrado e
em reserva, é mesmo querer pensar que é realmente este corpo que se move, e é
esquecer a lei da existência, segundo a qual uma mudança é determinada
inteiramente pela situação e a mudança dos objectos em volta. Toda a força
inerente é mitológica, como toda a qualidade inerente é mitológica. A potência
do cálculo, e a fidelidade à fé jurada, são sem dúvida os nossos únicos
recursos se queremos aqui vencer completamente a antiga imagem dum desejo na
flecha que voa. Deixo aos heróis do entendimento esta ideia difícil; admira-me
somente que Descartes, sem a ter seguido muito longe, pelo menos a tenha
formado. É mais fácil compreender porque é que os Cartesianos resistiram às
ideias dos Newtonianos no que respeita a acção à distância. Na verdade essas
forças centrais eram apenas resumos, e eu não penso que a doutrina cartesiana,
segundo a qual uma parte não é movida ou deslocada senão pelas vizinhas,
encontre hoje contraditores. Se se olhar agora para estes átomos de hoje, tão
complicados como mundos, concluir-se-á, parece-me, que a nossa física é toda
cartesiana; mas talvez, conforme estas explicações, e por muito insuficientes
que elas sejam, se esperará compreender que não podia ser de outra maneira.
Alain
(Tradução de José Ames)
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