“Eu hoje não poderia acordar de mais à minha desconfiança, pois que não se trata agora de agir, mas somente de meditar e de conhecer.”
(Meditações I.)
Não
resumirei nada desses célebres passos pelos quais Descartes, sentado ao canto
da sua lareira, acaba por se separar de todas as coisas que o rodeavam e quase do seu próprio corpo, para se
encontrar só no seu pensamento; duas vezes só, uma vez que dessa solidão e desse
silêncio nocturno, disso mesmo ele se retira. Esta oração do homem dos novos
tempos, que é em primeiro lugar oração a si, é nas Meditações que se vai
encontrar. Esta efusão, esta paz, esta força entrincheirada em si e que se move
toda segundo a sua lei interior, isso ultrapassa toda a nossa prosa, e mesmo os
nossos poetas. Não há nenhum resumo que dê o equivalente deste movimento
sublime. Mas melhor, dando-nos esta visão de Descartes meditando,
meditemos nisso, pela nossa vez, sem
negligenciar nenhuma circunstância, como esses discípulos que imitam o gesto e
a voz do mestre, e, sem o saberem, dão assim uma ajuda de corpo e natureza aos
seus primeiros pensamentos. Noite e silêncio; uma paz bem governada estende-se
em volta: as coisas familiares estão no lugar. Descartes levanta-se, caminha
até à janela, deita um olhar à rua, distingue homens nos seus mantos, esses
mesmos que Rembrandt desenha, volta ao seu sofá, livre de pressa e de receio.
Certamente isso é de considerar. Porque acontece que os homens duvidem das
coisas, e se toquem a si próprios como para acordarem; sim, mas numa extrema
infelicidade, ou num tumulto humano, ou frente a alguma grande convulsão da
natureza. Em tais circunstâncias, Descartes seria antes um homem de mão, como se
viu, Descartes, aos olhos de quem a irresolução era o maior dos males. Mas,
agora que medita, não é uma inquietação que o possui, nem nenhuma espécie de
tremor. Não está diante da Esfinge, nem em nenhuma encruzilhada em que seja
preciso decidir. Todas as paixões, pelo contrário, estão apaziguadas; a bela
prosa é disso testemunha. Notemos bem este movimento; ele escolhe para essa
dúvida hiperbólica o tempo em que está seguro de tudo. Eis o traço; ele
dúvida porque quer. É a marca de
Descartes em todas as suas pesquisas, mesmo geométricas, mesmo físicas,
que só reconheça o belo título de
pensamento aos pensamentos que dirige e
que forma como por decreto. A sua dúvida não está de maneira nenhuma abaixo da
crença, mas acima. Ele assegura-se primeiro; e depois duvida do que crê;
experimenta esta solidez do mundo, não a abala. A vertigem seria coisa do mundo
e paixão da alma; a irresolução, na mesma. Nada de parecido aqui. Bem antes,
como resistiria frente às ameaças do mundo, ei-lo agora que se recusa a própria
confiança, e que desfaz fio a fio, com precaução, estas coisas tão bem tecidas.
Aqui, o olhar do físico; aqui a existência nua diante do pensamento nu. Não é
numa tempestade que os verdadeiros turbilhões se mostram, mas antes neste
pedaço de cera, que ele maneja, que aproxima do fogo. Encontrar-se-á, nesta
célebre análise, ainda um exemplo dessa dúvida conduzida, procurada, governada.
De resto, qualquer objecto que seja é verdadeiro e suficiente; e aquele mesmo que
dorme exprime a natureza toda inteira, sem qualquer risco de erro; mas não para
ele. Observar, é recusar este todo do mundo, dar-se ar de alguma maneira, e
recuo. Nada aparece senão pela dúvida; e, seguindo esta ideia, teremos para
dizer que o célebre Método, em todos os seus passos, só é pela dúvida, que
permite a escolha segundo o espírito. No menor pensamento de Descartes está
este despertar, este receio de sonhar segundo o verdadeiro. Ainda melhor,
todavia, neste primeiro passo, que vai deliberadamente até à suposição dum
espírito absolutamente enganador, todo o poder do espírito é tentado uma vez. O
entendimento é aí ultrapassado, o que é entender; o espírito descobre-se enfim
a si mesmo sem outra função nem meio a não ser a dúvida, a indubitável dúvida.
“Se ele me engana, eu existo”, tal é o seu primeiro pensamento de Deus. Porque
não é pouco ter essa ideia, de que ele poderia muito bem me enganar. Ele tem
esse poder de me enganar, seja; mas eu tenho o poder de desconfiar. Isso basta.
Eu sou espírito.
Descartes
marca aqui um tempo de paragem. É preciso imitá-lo. É preciso meditar sobre
esta riqueza e pobreza ao mesmo tempo. É aí que será sempre preciso voltar. Mas
riqueza? Qual riqueza? Tudo o que é naturalmente crido é deposto do nível de
pensamento. Todas essas fiéis aparências, sim, e toda essa ordem que alimenta o
nosso corpo, mas que não tem mandato para governar os nossos pensamentos.
Estamos privados de chamar verdade ao que agrada ao nosso corpo; é uma falsa
riqueza que com isso perdemos. Olhemos, nós,
mais de perto; ganhamos com isso o crer como se deve. A natureza é
suficientemente forte, e de todo o modo é preciso que nela nos fiemos, não,
todavia, até ao ponto de a deixarmos
governar os nossos pensamentos. Quero ainda aqui voltar ao homem, que, no Discurso
do Método, se mostra tão bem de pé. Esta crença de religião, Descartes
fia-se nela, tanto como nos costumes, como nas leis; mas também ele não conduz as suas investigações por
aí. Não nos dá desculpas de mau pagador; não quer razões nenhumas. “Conservar,
escreve ele neste manual do homem de acção, que eu citava, conservar a religião
na qual Deus me fez a graça de nascer.” Disse primeiro e no mesmo tom:
“Obedecer às leis e aos costumes do meu país.” Tudo isto é muito sério, por
este partido de crer que vem de bem saber o que é examinar. A primeira
sabedoria, e que transparece mesmo na geometria, é de não examinar tudo. E é
sem dúvida por uma fraca ideia do entendimento, sempre mesclada de imaginação
nos nossos ambiciosos pensamentos, que não cessamos de aplicar o entendimento a
tudo. Há pois uma arte de crer, que Montaigne também sabia, embora por uma
dúvida menos conduzida, menos activa, menos forte, enfim por uma reflexão difusa. Aqui o espírito ousa bem
mais, e, por uma separação e uma recusa sem exemplo, apoia a arte de pensar na
arte de crer, ambas definidas pela própria separação, violenta uma vez,
violenta sempre. Esta precaução leva longe.
É
preciso seguir agora a dúvida em acção, a dúvida criadora da ordem. Na verdade,
nos nossos menores pensamentos, o que faz com que avancemos e ganhemos alguma
coisa é sempre que, duvidando do que aparece, rebaixamos o que nós pensávamos
primeiro ao nível do que merece ser apenas
crido. A marcha da reflexão é sempre de depor o que ocupava a nossa
visão, e de o colocar sob os nossos pés como faxinas. Mas é a geometria que dá
disso o melhor exemplo, e o mais fácil, sobretudo nos seus começos. Porque a
imaginação, embora disciplinada, não cessa de se divertir com as figuras, e de
nos oferecer as suas provas agradáveis, que são, porém, apenas crenças. Descartes
não desprezava este socorro das figuras, como se pode ver nas Regras para a
direcção do espírito; e ele disse mais de uma vez explicitamente que, na
matemática, a imaginação e o entendimento estão sempre juntos. Mas por isso é
tanto mais atento em recusar as provas de imaginação. Segui esta ideia de
acordo com os vossos conhecimentos de aluno. Notai que as primeiras proposições
do geómetra são daquelas em que qualquer um pode crer; e a primeira opinião
aqui é que não é necessário tanto esforço para demonstrar o que cada um vê
facilmente. Ora, é sobre isso que é preciso duvidar, e severamente duvidar, sem
o que bem se pode aplicar a geometria, mas não se pode de modo nenhum
inventá-la. É a dúvida renovada, a dúvida hiperbólica, que faz ser a recta. Todos
os nossos pensamentos correctos que dizem respeito à recta supõem que
rejeitemos continuamente o que o traçado nos queria dizer, o que não cessa de
nos dizer, e que tem um ar de verdade. Donde também esse belo escrúpulo de
perguntar expressamente o que o auditor aceitaria sem dificuldade. E a regra
das regras, que é de nunca deixar entrar na definição senão o que aí uma vez se
recebeu, faz aparecer essa disciplina de espírito pela vontade, que está acima
do entendimento, e que esclarece o entendimento, enquanto que a figura, remetida
para as coisas, e puramente coisa, regula os movimentos da imaginação e mantém
o corpo em respeito. Tal é o geómetra em ordem de batalha. Reencontremos, no
primeiro juízo do metafísico, essa disciplina das forças inseparáveis mantidas
no seu nível, imaginação, entendimento, vontade, que sustenta sempre o
verdadeiro geómetra.
Recolhamos,
pois, esta lição de força. Sobre o duvidoso, é preciso crer; a dúvida não
acrescentará nada aí, nem nada esclarecerá. É decidir, é tomar partido. Lede a
segunda regra de moral, no Discurso, encontrareis Descartes numa
floresta, onde, porque tudo é duvidoso segundo a natureza, o espírito toma um
partido, sem mais, sem sombra de prova; e isso mesmo é uma razão de perseverar.
Pelo contrário, na própria segurança que a natureza nos dá, nesse quarto bem
fechado, nessa cidade bem policiada, no momento desse sono agradável que a
vigília mesma nos oferece, e desse sonho de olhos abertos, quando se mostram as
provas do costume, quando o partido descido ao corpo, oferece um aspecto de
razão, é então que o espírito recusa, e assim começa a ser para si.
De
maneira que é o próprio objecto que traz a dúvida, digamos mesmo a ideia, tanto
quanto ela é objecto e se mostra. Este grau da ideia ao espírito, este passo
espantoso, este recuo, esta oposição de si pensado ao si pensante, é o método,
e é a alma da alma.
Alain
(Tradução de José Ames)
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