segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A DÚVIDA






“Eu hoje não poderia acordar de mais à minha desconfiança, pois que não se trata agora de agir, mas somente de meditar e de conhecer.”


(Meditações I.)








Não resumirei nada desses célebres passos pelos quais Descartes, sentado ao canto da sua lareira, acaba por se separar de todas as coisas que o rodeavam  e quase do seu próprio corpo, para se encontrar só no seu pensamento; duas vezes só, uma vez que dessa solidão e desse silêncio nocturno, disso mesmo ele se retira. Esta oração do homem dos novos tempos, que é em primeiro lugar oração a si, é nas Meditações que se vai encontrar. Esta efusão, esta paz, esta força entrincheirada em si e que se move toda segundo a sua lei interior, isso ultrapassa toda a nossa prosa, e mesmo os nossos poetas. Não há nenhum resumo que dê o equivalente deste movimento sublime. Mas melhor, dando-nos esta visão de Descartes meditando, meditemos  nisso, pela nossa vez, sem negligenciar nenhuma circunstância, como esses discípulos que imitam o gesto e a voz do mestre, e, sem o saberem, dão assim uma ajuda de corpo e natureza aos seus primeiros pensamentos. Noite e silêncio; uma paz bem governada estende-se em volta: as coisas familiares estão no lugar. Descartes levanta-se, caminha até à janela, deita um olhar à rua, distingue homens nos seus mantos, esses mesmos que Rembrandt desenha, volta ao seu sofá, livre de pressa e de receio. Certamente isso é de considerar. Porque acontece que os homens duvidem das coisas, e se toquem a si próprios como para acordarem; sim, mas numa extrema infelicidade, ou num tumulto humano, ou frente a alguma grande convulsão da natureza. Em tais circunstâncias, Descartes seria antes um homem de mão, como se viu, Descartes, aos olhos de quem a irresolução era o maior dos males. Mas, agora que medita, não é uma inquietação que o possui, nem nenhuma espécie de tremor. Não está diante da Esfinge, nem em nenhuma encruzilhada em que seja preciso decidir. Todas as paixões, pelo contrário, estão apaziguadas; a bela prosa é disso testemunha. Notemos bem este movimento; ele escolhe para essa dúvida hiperbólica o tempo em que está seguro de tudo. Eis o traço; ele dúvida  porque  quer. É a marca de Descartes em todas as suas pesquisas, mesmo geométricas, mesmo físicas, que  só reconheça o belo título de pensamento aos pensamentos que  dirige e que forma como por decreto. A sua dúvida não está de maneira nenhuma abaixo da crença, mas acima. Ele assegura-se primeiro; e depois duvida do que crê; experimenta esta solidez do mundo, não a abala. A vertigem seria coisa do mundo e paixão da alma; a irresolução, na mesma. Nada de parecido aqui. Bem antes, como resistiria frente às ameaças do mundo, ei-lo agora que se recusa a própria confiança, e que desfaz fio a fio, com precaução, estas coisas tão bem tecidas. Aqui, o olhar do físico; aqui a existência nua diante do pensamento nu. Não é numa tempestade que os verdadeiros turbilhões se mostram, mas antes neste pedaço de cera, que ele maneja, que aproxima do fogo. Encontrar-se-á, nesta célebre análise, ainda um exemplo dessa dúvida conduzida, procurada, governada. De resto, qualquer objecto  que seja  é verdadeiro e suficiente; e aquele mesmo que dorme exprime a natureza toda inteira, sem qualquer risco de erro; mas não para ele. Observar, é recusar este todo do mundo, dar-se ar de alguma maneira, e recuo. Nada aparece senão pela dúvida; e, seguindo esta ideia, teremos para dizer que o célebre Método, em todos os seus passos, só é pela dúvida, que permite a escolha segundo o espírito. No menor pensamento de Descartes está este despertar, este receio de sonhar segundo o verdadeiro. Ainda melhor, todavia, neste primeiro passo, que vai deliberadamente até à suposição dum espírito absolutamente enganador, todo o poder do espírito é tentado uma vez. O entendimento é aí ultrapassado, o que é entender; o espírito descobre-se enfim a si mesmo sem outra função nem meio a não ser a dúvida, a indubitável dúvida. “Se ele me engana, eu existo”, tal é o seu primeiro pensamento de Deus. Porque não é pouco ter essa ideia, de que ele poderia muito bem me enganar. Ele tem esse poder de me enganar, seja; mas eu tenho o poder de desconfiar. Isso basta. Eu sou espírito.

Descartes marca aqui um tempo de paragem. É preciso imitá-lo. É preciso meditar sobre esta riqueza e pobreza ao mesmo tempo. É aí que será sempre preciso voltar. Mas riqueza? Qual riqueza? Tudo o que é naturalmente crido é deposto do nível de pensamento. Todas essas fiéis aparências, sim, e toda essa ordem que alimenta o nosso corpo, mas que não tem mandato para governar os nossos pensamentos. Estamos privados de chamar verdade ao que agrada ao nosso corpo; é uma falsa riqueza que com isso perdemos. Olhemos, nós,  mais de perto; ganhamos com isso o crer como se deve. A natureza é suficientemente forte, e de todo o modo é preciso que nela nos fiemos, não, todavia, até ao ponto de  a deixarmos governar os nossos pensamentos. Quero ainda aqui voltar ao homem, que, no Discurso do Método, se mostra tão bem de pé. Esta crença de religião, Descartes fia-se nela, tanto como nos costumes, como nas leis; mas  também ele não conduz as suas investigações por aí. Não nos dá desculpas de mau pagador; não quer razões nenhumas. “Conservar, escreve ele neste manual do homem de acção, que eu citava, conservar a religião na qual Deus me fez a graça de nascer.” Disse primeiro e no mesmo tom: “Obedecer às leis e aos costumes do meu país.” Tudo isto é muito sério, por este partido de crer que vem de bem saber o que é examinar. A primeira sabedoria, e que transparece mesmo na geometria, é de não examinar tudo. E é sem dúvida por uma fraca ideia do entendimento, sempre mesclada de imaginação nos nossos ambiciosos pensamentos, que não cessamos de aplicar o entendimento a tudo. Há pois uma arte de crer, que Montaigne também sabia, embora por uma dúvida menos conduzida, menos activa, menos forte, enfim por uma  reflexão difusa. Aqui o espírito ousa bem mais, e, por uma separação e uma recusa sem exemplo, apoia a arte de pensar na arte de crer, ambas definidas pela própria separação, violenta uma vez, violenta sempre. Esta precaução leva longe.

É preciso seguir agora a dúvida em acção, a dúvida criadora da ordem. Na verdade, nos nossos menores pensamentos, o que faz com que avancemos e ganhemos alguma coisa é sempre que, duvidando do que aparece, rebaixamos o que nós pensávamos primeiro ao nível do que merece ser apenas  crido. A marcha da reflexão é sempre de depor o que ocupava a nossa visão, e de o colocar sob os nossos pés como faxinas. Mas é a geometria que dá disso o melhor exemplo, e o mais fácil, sobretudo nos seus começos. Porque a imaginação, embora disciplinada, não cessa de se divertir com as figuras, e de nos oferecer as suas provas agradáveis, que são, porém, apenas crenças. Descartes não desprezava este socorro das figuras, como se pode ver nas Regras para a direcção do espírito; e ele disse mais de uma vez explicitamente que, na matemática, a imaginação e o entendimento estão sempre juntos. Mas por isso é tanto mais atento em recusar as provas de imaginação. Segui esta ideia de acordo com os vossos conhecimentos de aluno. Notai que as primeiras proposições do geómetra são daquelas em que qualquer um pode crer; e a primeira opinião aqui é que não é necessário tanto esforço para demonstrar o que cada um vê facilmente. Ora, é sobre isso que é preciso duvidar, e severamente duvidar, sem o que bem se pode aplicar a geometria, mas não se pode de modo nenhum inventá-la. É a dúvida renovada, a dúvida hiperbólica, que faz ser a recta. Todos os nossos pensamentos correctos que dizem respeito à recta supõem que rejeitemos continuamente o que o traçado nos queria dizer, o que não cessa de nos dizer, e que tem um ar de verdade. Donde também esse belo escrúpulo de perguntar expressamente o que o auditor aceitaria sem dificuldade. E a regra das regras, que é de nunca deixar entrar na definição senão o que aí uma vez se recebeu, faz aparecer essa disciplina de espírito pela vontade, que está acima do entendimento, e que esclarece o entendimento, enquanto que a figura, remetida para as coisas, e puramente coisa, regula os movimentos da imaginação e mantém o corpo em respeito. Tal é o geómetra em ordem de batalha. Reencontremos, no primeiro juízo do metafísico, essa disciplina das forças inseparáveis mantidas no seu nível, imaginação, entendimento, vontade, que sustenta sempre o verdadeiro geómetra.

Recolhamos, pois, esta lição de força. Sobre o duvidoso, é preciso crer; a dúvida não acrescentará nada aí, nem nada esclarecerá. É decidir, é tomar partido. Lede a segunda regra de moral, no Discurso, encontrareis Descartes numa floresta, onde, porque tudo é duvidoso segundo a natureza, o espírito toma um partido, sem mais, sem sombra de prova; e isso mesmo é uma razão de perseverar. Pelo contrário, na própria segurança que a natureza nos dá, nesse quarto bem fechado, nessa cidade bem policiada, no momento desse sono agradável que a vigília mesma nos oferece, e desse sonho de olhos abertos, quando se mostram as provas do costume, quando o partido descido ao corpo, oferece um aspecto de razão, é então que o espírito recusa, e assim começa a ser para si.

De maneira que é o próprio objecto que traz a dúvida, digamos mesmo a ideia, tanto quanto ela é objecto e se mostra. Este grau da ideia ao espírito, este passo espantoso, este recuo, esta oposição de si pensado ao si pensante, é o método, e é a alma da alma.

Alain
(Tradução de José Ames)

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